Madeira, big picture e as aventuras da SlashWoman
A geração slasher existe e veio para ficar. Constituída por uma espécie de super-heróis das carreiras diversificadas, têm várias kriptonite. É preciso ver a “big picture”.
Por Patrícia Araújo, CEO da Plimm Happy Store/Docente Universitária – IPAM/ Universidade Católica Portuguesa
Prestes a aterrar na fantástica ilha da madeira, vendo a ilha toda de uma vez só, tive aquela clara sensação de big picture, competência difícil de conseguir no quotidiano mas cada vez mais desejada. Ser capaz de subir ao topo da montanha e de captar o sentido geral da paisagem tão bem como nos detalhes que a definem é um atributo tão raro como fundamental. E ser capaz de uma visão integral e alargada é, actualmente, uma das competências mais valorizadas nas organizações, nas novas carreiras e no nosso próprio life design.
Quase em simultâneo fiz uma integração e reflexão de toda a minha carreira pessoal e vida pessoal, desta que começou por ser uma criança que cresceu entre o comércio tradicional e um cinema onde o seu avô era projeccionista, da jovem que adorava línguas, mas que escolheu a psicologia como carreira dado o fascínio pelo funcionamento humano. A psicóloga que se especializa em recursos humanos, carreiras e organizações devido às suas inquietações sobre o futuro do trabalho e que, mais tarde, sente necessidade de aprofundar competências e torna-se instrutora de ioga e de mindfulness. A professora que decide ser investigadora e docente após terminar o doutoramento, a profissional do mundo das organizações que se apaixona pelo mundo digital e, regressando ao retalho, decide abrir uma loja online. Uff, pensei por fim: sou slasher!
A expressão já existia no seio dos investigadores sobre carreiras diversificadas, mas cada vez ganha mais força e sentido. Não se consegue precisar quem a usou pela primeira vez, mas cito o autor Torrão (2013) por ter sido a primeira vez que me recordo de ler algo sobre o tema em língua portuguesa. Por slash (em português, ‘barra’), entenda-se que não nos conseguimos apresentar profissionalmente sem usar barras: escritora/ psicóloga/ consultora organizacional/ CEO de loja online/ professora/ investigadora/ instrutora de Ioga, etc. Correndo o risco de acharem que são demasiados “eus” e acharem arrogante essa individualização, acreditem que a geração slasher existe e veio para ficar.
As carreiras unidirecionais estão a dirigir-se ao seu fim natural. Obviamente que a tecnologia e a globalização em muito contribuíram para essa realidade. Mas determinados traços de personalidade e características humanas contam imenso. Realço aqui três: Openess to new experiences (abertura a novas experiências), um dos traços do Modelo Big Five da personalidade humana. Alguns estudos apontam que os portugueses tipicamente não são dos povos que possuem este traço muito desenvolvido; a Hardiness ou Hardy Personality (Kobasa, 1979), conceito já antigo que descreve a capacidade de uma pessoa lidar com eventos stressantes e encará-los de forma positiva. Ou, noutras palavras, acreditar que a mudança (e não a estabilidade) é o modo default da vida e que isso se constitui como uma oportunidade motivadora (ao invés de ser percecionado como uma ameaça à segurança). Uma pessoa com uma Hardy Personality adora a mudança e o desafio, enquanto que outra, com menor nível de hardiness na mesma situação de vida, estará a deprimir ou desesperar porque será arrancada da sua estabilidade e segurança. E, por fim, uma dimensão cultural de Hofstede denominada ‘Aversão à incerteza’, na qual os portugueses cotam resultados elevados (Preda, 2012), demonstrando que somos um povo que lida muito mal com o risco e com a instabilidade.
Os slashers tiveram obrigatoriamente de desenvolver todas estas competências e mais duas muito especiais: uma magnífica gestão do tempo e uma constante curiosidade e aprendizagem ao longo da vida. Hoje considero-me privilegiada por poder fazer esta integração e obter esta fantástica big picture das carreiras diversificadas.
As slashwomen e os slashmen são, de alguma forma, os super-heróis que se adaptaram, que procuraram sempre mais competências, que tomaram iniciativa e empreenderam, os tais ‘polivalentes’ de que se falava há umas décadas, que qualquer empresa ficaria felicíssima por empregar.
Porém, qualquer super-herói tem a sua kriptonite. E no caso dos slashers, há diversos tipos de kriptonites. Além das carreiras de slashers serem frequentemente marcadas por instabilidade, fluxo de trabalho imprevisível e precariedade, existe uma outra kriptonite difícil de ultrapassar: conforme os contextos em que nos encontramos, temos de ter especial cuidado com as slashes com que nos apresentamos aos outros.
Passo a exemplificar: Vou a uma empresa para fazer uma consultoria de desenvolvimento organizacional e não ‘convém’ referir que sou instrutora de ioga, pois isso é percepcionado frequentemente como uma ambiguidade que os outros não conseguem integrar. Tenho uma loja online e quando estou em contextos ligados ao empreendedorismo ou ao e-commerce, por vezes, evito referir que sou investigadora e professora universitária se não, passado alguns minutos, caio em rótulos fáceis de que ‘sou uma académica’ e, logo, demasiado teórica. Já para não falar no velho desafio dos psicólogos: se eu referir que sou psicóloga em algum dos outros contextos, corro o forte risco da pessoa começar a desabafar porque acredita que os psis estão sempre em ‘modo consulta psicológica’.
Se referirmos demasiadas slashes, corremos o risco dos outros acharem que ‘temos a mania’ ou ‘estamos em todas’, pois nem sempre eles conseguem ‘ver a ilha toda de uma vez só’.
À medida que os dias passavam nesse Funchal florido e cheio de madeirenses que parecem ficar mais simpáticos de cada vez que lá vou, crescia o sentimento de que ser slasher é uma honra. Sinto-me cada vez mais capaz de aceitar novos desafios, porque sou quem sou e não sou o que faço. A cada passo, caminho em direção de fazer o que gosto e isso influencia quem eu me torno. E a cada dia que adiciono uma barra/ slash sinto-me mais capaz, mais adaptável, mais motivada e vejo a minha carreira e a minha vida como se da “Black Mirror” (essa série fa-bu-lo-sa) se tratasse.
Cada barra/ slash da minha vida é um episódio diferente e, frequentemente não tem relação (pelo menos aparente!), como episódio anterior. Mas quando assistimos à big picture da série toda (que lança apenas aproximadamente 6 episódios por ano) compreendemos, num insight, no que trata a série e conseguimos até fazer o exercício de tentar antever o que esta abordará de seguida.
Assim é a vida de um slasher. Sem uma definição apenas. Sem uma carreira apenas. Sem uma organização apenas. Em 40 anos de vida, já colaborei com 45 organizações diferentes, em tantas slashes que já nem consigo contar.
No último dia da minha visita à Madeira, decidi ir até Porto Santo, pedalar pela ilha e entrar aleatoriamente num bar em cima da praia para beber algo fresco. Depois de dois dedos de conversa, uma madeirense pergunta “Então o que é que faz?”. Cá está: a última kriptonite. Em alguns momentos, sentimo-nos induzidos para uma definição. Só uma. Como se fossemos indecisos. Temos múltiplos interesses. Ou como refere a investigadora e oadora TED, Emilie Wapnick, “We are multipotencialites” (antigamente denominados polímatas).
Somos, em certa medida, os novos homens e mulheres renascentistas que durante tanto tempo foram admirados, mas que, nas últimas décadas, parecem ter sido um pouco descurados ou até desvalorizados.
Aliás, se visitarem algum perfil ou biografia do Leonardo da Vinci ou encontram imensas slashes (cientista/ matemático/ engenheiro/ inventor/ anatomista/ pintor/ escultor/ arquitecto/ botânico/ poeta/ músico) ou encontram simplesmente “Leonardo da vinda, Polímata”. Leonardo era, sem dúvida, um slashman. E você? Já é reflectiu sobre as suas slashes?
Veja também este artigo.