A inflexibilidade dos horários (flexíveis?) das 9h às 18h

Confidenciava-me uma lojista numa cadeia de lojas têxteis que trabalhava agora todos os domingos. Na sua loja, três trabalhadores beneficiavam de um horário flexível e, contra a semântica, trabalhavam de segunda a sexta-feira, das 9h às 18h. Os demais trabalhadores asseguravam o funcionamento da loja nos outros períodos, com grave prejuízo dos seus compromissos familiares.

 

Por Sara Leitão, associada sénior do departamento de Laboral da DLA Piper ABBC

 

Este cenário repetir-se-á em várias empresas nacionais, confrontadas diariamente com a necessidade de acomodar pedidos de atribuição de horários (nada) flexíveis, apresentados ao abrigo do regime de horário flexível do trabalhador com responsabilidades familiares.

1. A lei confere ao trabalhador com filho menor de 12 anos ou com deficiência ou doença crónica o direito a trabalhar em regime de horário flexível, um mecanismo de protecção na parentalidade há muito previsto na lei laboral. Para o efeito, o trabalhador deve dirigir o pedido ao empregador, confirmando o cumprimento dos respectivos requisitos.

O empregador, que só poderá recusar o pedido com fundamento em exigências imperiosas do funcionamento da empresa ou na impossibilidade de substituir o trabalhador, caso este seja indispensável, deverá comunicar-lhe a sua decisão. Caso pretenda recusar a pretensão, deverá solicitar um parecer à Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), que se pronunciará em 30 dias. Se este parecer for desfavorável à recusa, o pedido só poderá ser recusado após decisão judicial que reconheça a existência de motivo justificativo para tal.

Este é, em traços gerais, o procedimento aplicável ao pedido de atribuição de horário flexível de trabalhador com responsabilidades familiares, que tem sido interpretado com mais amplitude do que a letra e o espírito da lei.

2. Embora a lei refira, com clareza, que o horário flexível é «aquele em que o trabalhador pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho» e que deve conter «um ou dois períodos de presença obrigatória, com duração igual a metade do período normal de trabalho diário», indicando «os períodos para início e termo do trabalho normal diário, cada um com duração não inferior a um terço do período normal de trabalho diário», o entendimento da CITE, da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e até de alguns tribunais tem sido diferente, subsumindo a este regime pedidos que mais não são do que simples pedidos de alteração do horário de trabalho.

Pedidos, como os que a CITE tem apreciado, de atribuição de um horário «de segunda-feira a sexta-feira, entre as 08h e as 17h, com descanso semanal ao sábado e domingo» (Parecer n.º 4/CITE/ 2020) ou «de segunda a sexta-feira, das 08h às 16h» (Parecer n.º 68/CITE/2020), não compreendem qualquer flexibilidade, reconduzindo-se antes a pedidos de alteração de horário, muitos com o objectivo último de garantir a exclusão de um horário em regime de turnos e a prestação de trabalho aos fins-de-semana.

3. Submeter pedidos desta natureza ao regime do horário flexível, que, por oposição à sua rigidez, permite acomodar os horários de início e termo da actividade às necessidades concretas do trabalhador em cada dia, com respeito pelo horário de funcionamento do estabelecimento e pelos horários dos demais trabalhadores, é desconsiderar o regime legal, tal como foi construído. Gera insegurança e incerteza, cria dificuldades em matéria de gestão de recursos, e transporta para os trabalhadores um encargo que não é seu.

Urge, assim, olhar para o regime e ponderar o seu alcance, delimitando o seu âmbito de forma clara, tendo em conta o propósito confesso deste mecanismo: introduzir na relação de trabalho a tão aclamada “flexibilidade”, permitindo ao trabalhador uma mais eficaz gestão do seu tempo, dentro dos limites impostos pelo funcionamento da empresa.

 

Este artigo foi publicado na edição de Junho (nº.138) da Human Resources, nas bancas.

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