A urgente regulação das plataformas digitais

As novas formas de organização de trabalho necessitam de uma regulação que transpareça a sua realidade, de natureza diferente, não bastando só uma “adaptação” da regulação actual.

Por Joana Enes, advogada do Departamento de Trabalho da CCA

 

Em Espanha, a confusão está instalada. Os tribunais de Madrid e Valência foram chamados a pronunciar-se no último ano, por quatro vezes, sobre a relação estabelecida entre as plataformas digitais de entregas como a Deliveroo e a Glovo e os colaboradores que efectuam as entregas – os “riders”. Duas decisões foram favoráveis às plataformas e as outras duas aos “riders”, caracterizando-os como trabalhadores por conta de outrem.

Tal como em Portugal, questões clássicas se impõem decidir para caracterizar uma relação laboral: quem controla o serviço? Quem decide o local e o horário em que são prestados? Quem decide as tarifas? Existe poder disciplinar? Há um controlo sobre a actividade prestada? E se houver um gravoso acidente de trabalho? Quem tinha a efectiva obrigação de transferir o risco para a seguradora?

Estas clássicas questões caracterizadoras de uma relação laboral parecem já desajustadas a estas novas realidades, uma vez que as relações estabelecidas entre as plataformas digitais e os seus colaboradores revelam uma nova dinâmica e as motivações de quem a elas recorre são muito díspares.

As constantes apreciações são um forte entrave ao desenvolvimento destas novas formas de trabalhar, já consideradas como o “driver” do crescimento económico e do progresso social.

Ursula Huws, professora da Universidade de Hertfordshire, refere que «os novos empregos tendem a ser criados para diferentes pessoas, em diferentes partes do mundo, e sob condições de trabalho muito diferentes das antigas». E é este precisamente o desafio.

As novas formas de organização de trabalho necessitam de ser acompanhadas de uma regulação que transpareça a sua realidade, em constante actualização e mudança, não se bastando só uma “adaptação” ou “reformulação” da regulação actual, uma vez que esta tem subjacente uma realidade totalmente diferente.

Salvaguardando as condições basilares e de protecção social que concretizam os direitos fundamentais de qualquer trabalhador e que se devem a todo o custo e cada vez mais preservar, as necessidades e aspirações dos trabalhadores da era digital são necessariamente diferentes. A flexibilidade e a autonomia são alguns motivos que levam já hoje alguns trabalhadores a prestar trabalho em plataformas digitais.

Importa, sobretudo, que esta realidade encontre respostas adequadas no ordenamento jurídico, sobretudo no que respeita à regulação da relação estabelecida com estes “trabalhadores”, por forma a, por um lado, não travar o crescimento económico e, por outro, salvaguardar os direitos e protecção daqueles.

Existe já uma Directiva do Parlamento Europeu submetida à aprovação do Conselho “relativa a condições de trabalho transparentes e previsíveis na União Europeia” nos termos da qual se tenta garantir que os trabalhadores, incluindo os das plataformas digitais, beneficiem de uma maior previsibilidade e clareza no trabalho. Esta directiva foi elaborada para enquadrar novas formas de emprego, tentando dar respos- ta aos desafios da digitalização. Contudo, a directiva exclui do âmbito da sua aplicação os “genuínos trabalhadores por conta própria”, donde resulta que a discussão que hoje se verifica se irá manter, mesmo após a sua aprovação, mantendo-se a “confusão instalada”.

Estas novas realidades, que se vão difundir às mais diversas áreas do saber e profissões, exigem uma resposta eficaz ao nível da sua regulação, que permita o equilíbrio entre o crescimento económico e a inovação tecnológica, e sempre conferindo uma real protecção aos seus trabalhadores. Talvez isso implique um repensar mais ousado e uma busca de soluções também elas inovadoras.

Na minha opinião, a solução poderá passar pela criação de um regime próprio e “híbrido”, algo que se situe entre o trabalhador por conta de outrem e o trabalhador independente, encontrando um equilíbrio entre direitos e deveres de ambos os regimes existentes.

 

Esta artigo foi publicado na edição de Julho/ Agosto da Human Resources.

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