Algumas das maiores ameaças ao desempenho organizacional podem (e vêm) de dentro. Saiba como evitá-las

Há um manual escrito durante a Segunda Guerra Mundial que identifica práticas e padrões intemporais de comportamento humano que tornam as empresas vulneráveis à sabotagem (ainda que inadvertida).

 

Por Stefan Thomke, na MIT Sloan Management Review

 

Em 1944, a Agência de Serviços Estratégicos (ASS), antecessora da Agência Central de Inteligência (CIA) – chefiada pelo lendário William “Wild Bill” Donovan –, elaborou um manual secreto de trabalho no terreno para sabotar organizações inimigas. O manual incentivava “actos simples” de destruição que não exigiam formação, ferramentas ou equipamentos especiais, com o mínimo “perigo de ferimentos, detecção e represálias” e que, crucialmente, poderiam ser executados por “cidadãos comuns”.

A ASS identificou duas maneiras de prejudicar uma organização: danos físicos a equipamentos, instalações, transportes e meios de produção; e obstrução humana aos processos organizacionais e de gestão, levando a “decisões erradas e falta de cooperação”. Ambas as formas visavam a produtividade de uma empresa. A redução do moral dos colaboradores – sabotagem organizacional – foi considerada tão eficaz para diminuir a produção de uma organização como despejar areia nos sistemas de lubrificação das máquinas.

O manual de 32 páginas só foi tornado público em 2008 e incluía instruções precisas e pormenorizadas para os seus aprendizes, com base em suposições sobre o modo como grupos e organizações funcionavam. Como atestará quem lê hoje as recomendações, muitas delas ainda parecem verdadeiras. Havia uma abundância de oportunidades para sabotagem – e continua a existir – porque “uma decisão errónea pode ser simplesmente uma questão de colocar ferramentas num local em vez de noutro” ou “uma atitude de falta de cooperação pode envolver nada mais do que criar uma situação desagradável entre colegas, entrar em discussões ou exibir rispidez e estupidez”. Mais especificamente, o manual identificou o elemento humano como o mais vulnerável a interferências, pois as pessoas são “frequentemente responsáveis por acidentes, atrasos e obstruções gerais, mesmo em condições normais”. Parece familiar?

Obviamente, os sistemas de produção mudaram, em parte graças aos avanços nos métodos de produção, como equipamentos à prova de erros, e são mais difíceis de prejudicar do que eram há 75 anos. Actos simples como “destruir” a fiação de uma fábrica, deixar acumular sujidade e lixo para tornar um edifício mais inflamável e deixar as ferramentas de corte rombas para desacelerar a produção (todas as recomendações para uma sabotagem simples), não são algo com que os gestores de hoje se preocupem. Em vez disso, preocupam-se com violações de segurança cibernética que envolvem cidadãos comuns, como phishing de passwords, trolling e qualquer publicação de dados confidenciais da empresa. De facto, se Wild Bill Donovan encomendasse hoje o manual de sabotagem da ASS, provavelmente substituiria actos simples de danos físicos por ciberataques que o “cidadão comum” poderia realizar.

Mas eis o mais notável: quando se trata de actos de obstrução humana, o manual da ASS não teria de mudar muito. As instruções provavelmente afectariam tanto o desempenho de uma empresa hoje como quando o manual foi escrito, durante a Segunda Guerra Mundial. Pior ainda, enquanto o dano físico é necessariamente um acto deliberado, a obstrução humana aos processos organizacionais, na altura e agora, é muitas vezes inadvertida. Os “agentes” hoje podem agir de boa-fé e não estar totalmente cientes de todas as consequências. Na verdade, podem simplesmente seguir as chamadas boas práticas de gestão, como submeter decisões importantes a grupos grandes e diversificados para obter consenso, documentar cuidadosamente as discussões a fim de obter perspectivas para projectos futuros, e assim por diante.

 

Recomendações
Vejamos as seguintes recomendações da secção do manual de sabotagem sobre “Interferências gerais nas organizações e na produção”:

“Insistam em fazer tudo por meio de ‘canais’. Nunca permitam que sejam adoptados atalhos para agilizar decisões.”

“Façam ‘discursos’. Falem com maior frequência possível e por muito tempo. Esclareçam os “pontos” com longas histórias e relatos de experiências pessoais.”

“Quando possível, encaminhem todos os assuntos para comités, para ‘estudo e consideração adicionais’. Tentem fazer com que os comités sejam sempre em maior número possível – nunca me- nos que cinco.”

“Levantem questões irrelevantes com a maior frequência possível.”

“Exijam formulações precisas de comunicações, atas, resoluções.”

“Consultem os assuntos decididos na última reunião e tentem reabrir a questão da conveniência dessas decisões.”

“Peçam ‘cautela’. Sejam ‘razoáveis’ e peçam aos colegas que sejam ‘razoáveis’ e evitem a pressa, pois esta pode resultar em embaraços ou dificuldades mais tarde.”

“Preocupem-se com a adequação de qualquer decisão – levantem a questão de saber se a acção contemplada está dentro da jurisdição do grupo ou se pode entrar em conflito com a política de algum escalão superior.”

“Diminuam o moral e, com isso, a produção, sendo agradáveis para os colaboradores ineficientes; dêem-lhes promoções imerecidas. Discriminem contra colaboradores eficientes; reclamem injustamente do trabalho deles.”

“Realizem conferências quando há trabalho mais importante por fazer.”

 

Segundo o manual da ASS, essas práticas e padrões intemporais de comportamento humano tornam as empresas vulneráveis à sabotagem. Mais uma vez, parece tudo muito familiar. A lição aqui é que algumas das maiores ameaças ao desempenho organizacional podem e vêm de dentro. Numa época em que as empresas são instruídas a ser ágeis, a aprender com as experiências e a ser empreendedoras, ainda estamos vulneráveis a acções – deliberadas ou involuntárias – que resultam de comportamentos humanos intemporais e processos organizacionais que não mudaram muito no último século.

O Grupo Lego oferece um exemplo. Em 2004, as receitas da fabricante de brinquedos tinham caído, o moral estava baixo, os clientes estavam frustrados e a empresa estava quase na falência. O que correu mal? Não havia falta de factores externos que poderiam ser responsabilizados: canais de retalho consolidados, procura volátil por causa da mudanças nos brinquedos da moda e videojogos, aumento da concorrência global, descida da taxa de natalidade e assim por diante. Mas culpar factores externos na verdade fazia parte do problema. A verdade é que a empresa estava com mau desempenho por causa de problemas internos – uma forma de autossabotagem não intencional.

Sarar essas feridas exigia mais do que sistemas de negócios mais adequados e cadeias de abastecimento simplificadas; exigia uma noção dos processos humanos que atolavam a empresa. Assim, o novo CEO foi buscar um psicanalista que treinou os gestores para distinguirem entre o que está “acima da linha” (lógica expressa) e o que está “abaixo da linha” (emoções). As reuniões geralmente começavam com as pessoas a dizerem como se sentiam no momento, uma prática que afastou muitas discussões. Essas e muitas outras intervenções chegaram ao cerne daquilo que tornava os processos organizacionais potencialmente vulneráveis.

Talvez este seja o maior argumento do manual da ASS. As salvaguardas para proteger as empresas contra interferências físicas ou cibernéticas recebem mais atenção porque o seu impacto é visível (basta pensar nas recentes violações de dados na Capital One, Equifax e Facebook) e podem ser projectadas soluções para as resolver. Porém, as interferências humanas nos processos organizacionais, deliberadas ou involuntárias, geralmente são subtis e difíceis de detectar, e envolvem acções que ficam “abaixo da linha”.

De facto, ao partilhar as recomendações do manual com os gestores, descobri que a reacção delas geralmente começa com risadas (“vejo isso na minha empresa”), seguido de um reconhecimento sóbrio de que as organizações não mudaram muito desde 1944. Somos todos vulneráveis, e isso não é motivo para rir.

O artigo foi publicado na edição de Março da Human Resources, nas bancas.

 

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