Assembleias gerais virtuais: um “novo” paradigma de governo societário?

«A pandemia vulgarizou o teletrabalho, a telemedicina, a telescola, entre muitas outras necessidades à distância, na mesma medida em que levou as sociedades comerciais e os accionistas a recorrer a uma possibilidade até então negligenciada.» Mas várias questões de levantam.

Por João Lupi, advogado da TELLES

 

Em 2006 assistimos a uma reforma do direito societário que teve como estandarte a promoção da desburocratização, a simplificação e modernização da vida das empresas. E foi nesse contexto que foi introduzida a possibilidade de realizar assembleias gerais de forma parcial ou totalmente virtual, desde que verificados determinados requisitos.

Até então as reuniões de assembleias gerais de sociedades comerciais em Portugal realizavam-se obrigatoriamente na respectiva sede social, admitindo-se a possibilidade de o presidente da mesa escolher outro local na eventualidade das instalações não permitirem a reunião em condições satisfatórias, desde que dentro da comarca judicial. O Código das Sociedades Comerciais vigente à data tinha sido preparado antes da afirmação da internet em Portugal, inclusivamente da própria banalização dos computadores pessoais, pelo que urgia aproveitar o potencial da tecnologia no governo das sociedades.

Com efeito, a referida reforma sujeitou a possibilidade de realizar estas reuniões através de meios telemáticos à inexistência de proibição nos estatutos da sociedade, admitindo-se sempre que estes sejam omissos, e ainda à obrigação da sociedade assegurar a autenticidade das declarações e a segurança das comunicações, bem como de proceder ao registo do seu conteúdo e dos respetivos intervenientes.

A telemática é a comunicação à distância por intermédio de serviços informáticos e tecnologias assente numa rede de telecomunicações que permite o processamento, compressão, armazenamento e transmissão de grandes quantidades de dados, em curto prazo de tempo e entre utilizadores localizados em diferentes espaços. E os meios telemáticos actualmente compreendem complexos e sofisticados sistemas de multimédia, que acompanham as rápidas evoluções tecnológicas.

A possibilidade de realizar reuniões com recurso a estes meios foi conceptualmente introduzida para facilitar a respectiva realização e facilitar a participação dos intervenientes, designadamente mediante recurso meramente parcial a estes meios, permitindo a participação daqueles que porventura estivessem impedidos de participar presencialmente. Foi uma medida relativamente descurada sem grande acolhimento no governo da grande maioria das sociedades.

No entanto, revela-se no actual contexto uma necessidade, em face das restrições e recomendações de distanciamento que a pandemia COVID-19 impõe. E a necessidade aguça o engenho. Aliás, uma das medidas extraordinárias que foi desde cedo implementada foi o alargamento dessa possibilidade no actual contexto a entidades públicas e privadas, independentemente dos estatutos o proibirem.

E a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários recomendou no dia 20 de Março de 2020 a realização de assembleias gerais através de meios de comunicação à distância, por ser aquela que melhor assegura a compatibilização dos interesses em causa.

A recente experiência demonstra ser uma solução que tem vindo a ser privilegiada por uma importante parte do tecido empresarial, entre o qual se destacam várias sociedades admitidas a negociação em mercados regulamentados. No entanto, o recurso a meios telemáticos suscita diversas questões que a lei não esclarece e os ensaios ainda não permitem colmatar.

Desde logo saber quais os meios telemáticos admitidos e como cumprir a imposição de registar o conteúdo e participações, sem descurar os inevitáveis riscos de cibersegurança e associados ao tratamento de dados pessoais. Por outro lado, subsistem outros aspectos de natureza formal, sem esquecer a possibilidade de existirem accionistas infoexcluídos que não devem ser descurados.

Existem, ainda, aspetos de índole tecnológica passíveis de revelar constrangimentos, designadamente no que respeita a viabilização da participação efectiva nas suas diversas vertentes, o exercício de poderes de condução da reunião que cabem ao presidente da Mesa da Assembleia Geral e a capacidade de suportar a participação de números elevados de participantes, sobretudo em sociedades com o capital disperso.

Apesar de não resultar da letra de lei que os meios telemáticos devam ser multimédia e audiovisuais, o actual estado da arte justifica que seja interpretado sistemas de videoconferência, por ser aquele que mais condições reúne para viabilizar os direitos consagrados aos acionistas e mais garantias oferece no cumprimento das obrigações impostas.

Já no que respeita o cumprimento da imposição de registar o conteúdo da reunião e das participações, consideramos que a mesma deverá ser entendida como o registo integral da reunião por intermédio da gravação, contrariamente às restantes modalidades de realização para as quais apenas se exige que seja lavrada uma ata e lista de presenças nos termos legais, as quais permanecem obrigatórias neste modelo de reuniões.

Poder-se-ia questionar a bondade desta solução, que entendemos ser justificada pelos riscos que comporta associados à cibersegurança, designadamente no que respeita a formulação de votos. A gravação permitirá ser valorada como meio de prova ou perícia, em face de eventuais impugnações com fundamento em interferências.

Assume particular relevância o direito de participação na assembleia geral, que se desdobra em vários direitos concretos tais como o direito a entrar, a estar presente e a assistir aos trabalhos da assembleia, o direito a nela solicitar e receber informações atinentes com a ordem dos trabalhos, o direito a intervir com exposições atinentes com a ordem dos trabalhos e a emitir declaração de voto.

Entendemos que o recurso a meios telemáticos apenas deve ser legitimado quando não resulte qualquer limitação aos direitos dos accionistas elencados, sobretudo no que respeita o direito de voto, seja pela exigência de ser previamente exercido, seja pela impossibilidade de alterar o seu sentido no decurso da reunião. A sociedade deve assegurar aos acionistas a possibilidade intervir plenamente na reunião, permitindo-se-lhe colocar questões, fazer propostas e votar.

Igualmente importante é a efectivação dos poderes de condução da reunião que cabem ao presidente da Mesa da Assembleia Geral, o que julgamos apenas ser possível através de funcionalidades da plataforma que vier a ser utilizada e que permitam presidir a sessão adequadamente e agir enquanto moderador, designadamente admitir participantes, acautelar a disciplina entre os mesmos e evitar designadamente a sobreposição de intervenções.

Permanecem aspectos de índole formal por acomodar a esta “nova” dinâmica, tal como a formalização de atas, que nas sociedades por quotas devem ser assinadas por todos os sócios e para as quais entendemos dever aceitar-se a assinatura do sócio que assumir a presidência da sessão. Já relativamente à obrigação determinar na convocação o local da reunião, sob pena de a mesma não se considerar convocada, admitimos como possível que essa indicação seja aceite como indicação da plataforma utilizada para o efeito.

A cibersegurança é uma preocupação transversal às novas tecnologias. E é imprescindível que a sociedade garanta a segurança da videoconferência, evitando terceiros de participar e interferir no bom andamento dos trabalhos e nas intervenções dos participantes, atestar a qualidade e a identidade dos mesmos e evitar cópias individuais da sessão. Essas garantias dependerão em larga medida da própria plataforma utilizada e das respectivas características técnicas, mas também de mecanismos implementados pelo presidente da Mesa da Assembleia Geral e própria sociedade, tais como atribuição de senhas e contrassenhas ou outras formas de acesso às reuniões, autenticação das identidades e expressão dos votos.

As soluções aqui expostas colocam dificuldades associadas às obrigações vigentes no âmbito de tratamento de dados pessoais. Para que se proceda à sugerida gravação da reunião, mostra-se recomendável que a convocatória incorpore uma política de privacidade, através da qual se informe os participantes que a reunião será gravada por motivos de imposição legal e as finalidades prosseguidas, que a mesma será mantida durante o prazo de impugnação das deliberações que ali forem tomadas, identifique o responsável pelo tratamento e recolha dos dados, bem como quais os direitos que assistem aos participantes e forma de exercício, entre outros.

Sabemos que a internet não é uma rede ininterrupta e consistente, sendo inevitável ocasionalmente ocorrerem falhas ou entropias. A isto acresce a capacidade da própria plataforma utilizada para suportar a participação de todos os intervenientes, circunstância que assume particular relevância em face de elevados números de participantes. A adaptação a esta nova dinâmica implica reforçar as infraestruturas e plataformas tecnológicas, com vista a assegurar a qualidade do serviço.

Uma significativa população de Portugal é hoje envelhecida, a qual tipicamente carece de capacitação no âmbito das novas tecnologias e que enquanto accionistas podem não dispor de meios e capacitação para participar por essa via. No entanto, esta solução não coloca em causa o princípio da igualdade de tratamento dos sócios e, como se viu, o actual quadro legal prevê-a expressamente, pelo que salvo melhor opinião a eventual exclusão de accionistas que se encontrem nas referidas circunstâncias de reuniões exclusivamente virtuais não é susceptível de integrar só por si uma causa de impugnação da deliberação.

Nunca como agora sentimos tanta necessidade de recorrer às tecnologias da informação e comunicação. E o recente pacote legislativo “digital” assim o comprova, ao conter três diplomas dedicados ao priorizar esta matéria: o Plano de Acção para a Transição Digital, a criação da Estrutura de Missão Portugal Digital e das Zonas Livres Tecnológicas, visando a capacitação e inclusão digital das pessoas, a transformação digital do tecido empresarial e digitalização do Estado.

A pandemia vulgarizou o teletrabalho, a telemedicina, a telescola, entre muitas outras necessidades à distância, na mesma medida em que levou as sociedades comerciais e os accionistas a recorrer a uma possibilidade até então negligenciada.

O paradigma mudou. A digitalização já era uma prioridade estratégica comum à maioria dos operadores económicos e o atual contexto veio acentuar essa necessidade.

É expectável que testemunhemos um excepcional avanço na digitalização global e se assista à adopção de novos modos de interacção entre os operadores económicos coadjuvados por ferramentas tecnológicas, acompanhado de estimulantes desafios jurídicos e práticos. E a intervenção do legislador na densificação de alguns dos temas aqui destacados poderá certamente contribuir para a estabilidade do governo societário.

 

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