Carlos Lopes, OrCam Technologies: «Se queremos ter pessoas com deficiência capacitadas e integradas no mercado de trabalho, não podemos descurar a sua educação e formação»
Nasceu com uma deficiência congénita na visão, que foi perdendo lentamente, até ficar cego. Hoje, psicólogo de profissão, medalhado nos Jogos Paralímpicos e Campeão do Mundo e da Europa, Carlos Lopes é o primeiro embaixador português da OrCam Technologies. Através do OrCam MyEye, dispositivo portátil de tecnologia de assistência, consegue executar funções do dia-a-dia como ler, reconhecer cores, produtos de supermercado, dinheiro e caras, convertendo esta informação em áudio.
Por Tânia Reis
Considera-se uma pessoa realizada e já ultrapassou enormes obstáculos, mas o acesso à informação sempre foi um desafio. Ainda que tenha havido avanços significativos, hoje muitas páginas da Internet continuam inacessíveis a pessoas cegas. Um conjunto de actividades do quotidiano, como o simples acto de ler um jornal ou uma ementa num restaurante ficam, a partir de agora, resolvidas com este dispositivo.
Como foi o seu percurso de crescimento com uma deficiência congénita na visão?
Nasci com um problema de visão que, até mais ou menos aos meus 15 anos, me permitiu escrever com caneta normal, deslocar-me na rua e andar de bicicleta durante o dia, isto porque à noite e nos sítios com iluminação artificial nunca vi o suficiente para me orientar sozinho. Digo mais ou menos aos 15 anos, porque a minha perda de visão foi muito, muito lenta. Recordo os esforços dos meus pais, pessoas com reduzidas possibilidades económicas, para me levar a diferentes médicos afim de ter um verdadeiro diagnóstico da minha doença; recordo as suas esperanças numa qualquer cura milagrosa; recordo as suas dificuldades para aceitar que já não tinham um filho com baixa visão, mas sim um filho cego; recordo o dia em que decidi que já não podia andar mais de bicicleta na rua, pois tinha acabado de me esbarrar com uma senhora e portanto aquilo estava a ser demasiado perigoso para mim e para os outros; recordo os esforços estúpidos que fiz para fingir que ainda via um pouco; recordo os muitos riscos que corri quando ia de Alverca para Lisboa, já a frequentar a faculdade, nos dias escuros e à noite sem uma bengala; e recordo o dia em que, por minha decisão, comprei uma bengala e progressivamente me fui libertando da vergonha, dos complexos e dos sentimentos de inferioridade e passei a gostar e a acreditar em mim como sou!
Que desafios encontrou? E como foram superados?
Julgo que encontrei duas ordens de desafios. Por um lado, e como disse, o desafio de aceitar uma perda de visão progressiva durante a adolescência e, por outro lado, a inacessibilidade da informação. Durante o meu percurso escolar, incluindo universitário, foram raros os anos em que pude contar com os manuais escolares e, mesmo nesses anos, eles chegavam perto do final do ano lectivo. Estávamos numa época em que não existiam computadores nem acesso à Internet. O meu primeiro computador foi comprado com muito esforço quando estava no 4.º ano da licenciatura. Por isso, estudava pelos meus apontamentos em braille, transcritos da gravação das aulas, isto quando os professores o permitiam. Fiz muitos testes e exames com máquina de escrever!
Isso não o impediu de se licenciar em Psicologia. Por que escolheu essa área?
Sempre gostei das disciplinas da área das ciências e era também nestas disciplinas em que tinha as minhas melhores notas. Lembro com orgulho que a minha nota final de 12.º ano na disciplina de Biologia foi de 20 valores. Na altura, com pouquíssima informação, lembro-me de ter pensado que gostaria de um curso na área da saúde, mas que, como Medicina me estava vedado, pensei em Psicologia. Hoje, claro que gosto do que faço, mas talvez se voltasse atrás escolhesse Fisioterapia.
Que desafios enfrenta diariamente na sua vida profissional enquanto psicólogo?
Estou actualmente integrado no Núcleo de Infância e Juventude do Centro Distrital da Segurança Social de Coimbra e, nesse contexto, faço avaliação e selecção de candidatos à adopção, proponho candidatos do distrito de Coimbra para a adopção de crianças de todo o País e presto assessoria ao tribunal de família e menores no âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais para pais em situação de divórcio/separação. Pontualmente, colaboro com instituições de ensino superior ao nível da Psicologia do Desporto e realizo acompanhamentos individuais neste âmbito.
Se uma ou outra tarefa se revelar mais difícil de executar, conto sempre com a colaboração da minha equipa ou com a ajuda da tecnologia actualmente disponível.
A cegueira condiciona a sua actividade profissional? Como supera essas limitações?
Decerto que traz algumas limitações, por exemplo, não poder observar a expressão e a comunicação não verbal das pessoas com quem interajo. Ainda assim, acredito que tenho recursos para obter essas mesmas informações por outras vias. Existem vários tipos de tecnologia de assistência actualmente disponíveis para ajudar os cegos e os deficientes visuais em muitas profissões. Muitas – como é o caso do OrCam MyEye, são concebidas para transmitir, através de som, informações que seriam mais frequentemente recebidas visualmente. Isto ajuda enormemente em qualquer actividade profissional.
Além das tarefas de leitura sem necessidade de ligação ao Wi-Fi – o que torna a leitura de documentos confidenciais completamente privada, este dispositivo permite o reconhecimento facial das pessoas com quem me rodeio, algo bastante útil no local de trabalho.
Iniciou-se na corrida em 1988. Porquê esse desporto?
Sempre gostei de correr. Em criança, ainda com alguma capacidade visual, fazia corridas comigo mesmo para bater o meu recorde de tempo de casa para a escola. Depois, mais tarde, já um jovem universitário e quase cego, fiquei entusiasmadíssimo quando me disseram que havia a possibilidade de praticar atletismo com o apoio de um atleta-guia. E mais, que existiam jogos paralímpicos, campeonatos do Mundo e da Europa para atletas com deficiência visual. Poucos meses depois de ter começado a minha carreira desportiva, já treinava de segunda a sábado, cerca de duas horas por dia.
No seu vasto currículo, constam cinco presenças nos Jogos Paralímpicos, quatro Medalhas de Ouro e uma Medalha de Bronze. Foi ainda cinco vezes Campeão do Mundo e 10 vezes Campeão da Europa. Que principais lições retirou durante o seu percurso enquanto desportista?
Penso que, o muito que aprendi no desporto ao longo de 20 anos de treino e de competição, está hoje bem presente no meu modo de ser e de agir. Entendo ser hoje uma pessoa focada na concretização de objectivos, com capacidade para distinguir o essencial do acessório, perseverante e resiliente, uma pessoa que aprecia os desafios e a superação e que compreende que as conquistas, salvo raras excepções, não são imediatas, mas sim pressupõe trabalho ao longo do tempo, e que, tal como na competição, cada dia é único e importante.
É o primeiro embaixador português da OrCam Technologies. Por que decidiu associar-se à marca?
É com gosto, e com o sentimento de que esta parceria corporiza os meus esforços e os esforços de todas as pessoas com deficiência visual, no sentido do livre e fácil acesso à informação, que surgiu a minha colaboração com a OrCam MyEye.
Sou uma pessoa realizada e que já ultrapassou enormes obstáculos, mas o acesso à informação sempre foi um desafio. É verdade que houve avanços muitos significativos, mas também é verdade que há ainda hoje muitas páginas da Internet que não são acessíveis a sintetizadores de voz, e que há um conjunto de actividades do nosso quotidiano – o simples acto de ler um jornal, de ler uma ementa num restaurante – que hoje ficam resolvidas com este dispositivo. Assim, ainda hoje existia este travão no acesso à informação que o OrCam MyEye vem claramente resolver.
De que forma o dispositivo OrCam MyEye veio melhorar a sua vida?
O OrCam MyEye é, efectivamente, um equipamento que torna simples um conjunto de tarefas que antes poderiam ser impossíveis ou de difícil execução, como por exemplo ler um jornal, um livro ou, tão simplesmente, um menu em tempo real. Além disto, facilita tarefas do dia-a-dia como identificar produtos de supermercado, cores e notas.
Auxilia-me tanto num contexto de trabalho como num contexto de lazer, porque basicamente descomplica o acesso à informação – algo crucial e que antigamente não era possível de forma tão eficaz e que, actualmente, continua a ser muito limitado, já que existem sites que não estão desenhados para a acessibilidade de todos.
As tecnologias de inteligência artificial podem trazer benefícios especialmente para as pessoas com deficiência?
Sim, acredito que sim. Aliás, o OrCam MyEye é um bom exemplo disso mesmo. Acredito que a conjugação das ferramentas de GPS com as da inteligência artificial serão capazes de proporcionar à pessoa com deficiência visual uma boa descrição do que a rodeia e mesmo auxiliá-la na sua locomoção. Ao nível do acesso à informação, os ganhos são e serão evidentes com expressão positiva no acesso à educação, ao trabalho, à cultura e ao desporto.
Crê que as empresas, os trabalhadores e a sociedade em geral estão sensibilizados para o tema da integração das pessoas com deficiência? O que falta fazer?
Creio que hoje as empresas e a sociedade em geral estão efectivamente mais sensibilizadas para este tema, mas julgo que ainda muito numa lógica de solidariedade/ caridade. Importa, pois, que todos, e quando digo todos refiro-me também às pessoas com deficiência e às suas famílias, sejam intrinsecamente capazes de olhar para as pessoas com deficiência como alguém que, sim, tem uma limitação, mas que tem também muitas capacidades, capacidades estas que têm e devem ser potenciadas e valorizadas.
Acredita que a Lei das Quotas de Integração de Pessoas com Deficiência é um passo positivo e pode resolver o problema?
A chamada lei das quotas já se aplica às contratações na administração pública desde 2001 e agora, em 2019, com algumas adaptações, é estendida ao sector privado. Parece-me ser esta uma boa iniciativa no sentido da promoção da empregabilidade das pessoas com deficiência, uma área que, reconhecidamente, é francamente deficitária, mas, à semelhança do que vem sucedendo com a lei de 2001, se não forem adoptados mecanismos de fiscalização e verdadeiros instrumentos de controlo que permitam impedir subterfúgios e/ou esquemas para contornar a aplicação da lei, ela terá poucos resultados concretos e as pessoas com deficiência continuarão a ser discriminadas/ excluídas do mercado de trabalho.
Importa acrescentar que, a meu ver, as leis das quotas não devem ser perspectivadas como instrumentos legais que forçam a empregabilidade de pessoas “coitadinhas sem capacidades”. Devem sim ser olhadas como iniciativas legais que corporizam os princípios da igualdade de oportunidades e do humanismo e que, pela preponderância social de estereótipos negativos sobre a deficiência, se tornam necessárias por forma a discriminar positivamente uma população desde sempre discriminada em sentido contrário.
Em linha com este pensamento, e se queremos efectivamente ter pessoas com deficiência capacitadas e integradas no mercado de trabalho, não podemos de todo descurar a sua educação e a sua formação. Modelos educativos assentes no facilitismo, na permissividade e no comodismo são de todo contraproducentes e traduzem-se, no futuro, num comprometimento sério da integração dessas pessoas na vida profissional.