Como neutralizar os neutralizadores da liderança?

Um grupo de estudiosos propôs-se analisar e discutir os neutralizadores de liderança nas organizações públicas. Com base nas respostas de um grupo de líderes em contexto, identificaram cinco regras simples para “neutralizar os neutralizadores”, evitando as suas consequências perniciosas.

 

Por Arménio Rego, professor catedrático e director do LEAD.Lab da Católica Porto Business School; e Miguel Pina e Cunha, professor da Nova SBE, detentor da cátedra da Fundação Amélia de Mello em Liderança; com colaboração de vários autores

 

Tendemos a considerar a liderança como um exercício pleno de agência. Acreditamos que os líderes têm espaço de manobra para fazer o que querem/têm de fazer – que são agentes das suas decisões e escolhas. A realidade não adere totalmente a essa crença. A acção dos líderes é afectada por diversos constrangimentos com os quais é difícil lidar. O reconhecimento dessa realidade originou a teoria dos substitutos e neutralizadores da liderança.

Os substitutos são características presentes nos liderados, na tarefa ou na organização, que tornam desnecessária ou irrelevante a acção dos líderes. Por exemplo, trabalhadores altamente competentes e motivados tornam desnecessárias muitas intervenções dos líderes. Outro exemplo: se a tarefa é altamente estruturada, devendo ser executada segundo procedimentos claros, as orientações do líder são redundantes, nada acrescentam e podem mesmo funcionar como ruído. A existência de substitutos tem diversas implicações, uma das mais relevantes é a seguinte: se um líder é incompetente e não pode ser removido, a solução pode passar pela criação de substitutos.

Os neutralizadores têm natureza distinta. Neutralizam a acção do líder, boicotam o efeito da sua intervenção. Por exemplo, a indiferença dos liderados a certas recompensas ou punições neutraliza as acções de recompensa e punição que o líder pretenda adoptar. Outro exemplo: quando os líderes da Administração Pública Portuguesa ficam impossibilitados de recompensar o mérito dos melhores funcionários, essa impossibilidade representa um neutralizador. Impede-os de adoptar acções potencialmente motivadoras. Assinala que mais dedicação ou menos dedicação pouco importa.

Naturalmente, este neutralizador não é apanágio exclusivo da Administração Pública. Muitos líderes de outros tipos de organizações lamentam-se da incapacidade de actuar como gostariam, fruto de neutralizadores. Acresce que os neutralizadores podem ser uma forma eficaz de neutralizar um mau líder. Retirar a um líder tóxico a competência para recompensar e punir empregados pode neutralizar as suas potenciais acções de liderança tóxica. Ademais, a existência de checks and balances que limitam a acção dos líderes é uma forma saudável de neutralizar potenciais efeitos perversos resultantes do abuso de poder. Sem freios e contrapesos, mesmos os melhores líderes podem transformar-se em líderes hubrísticos, arrogantes e soberbos. Em suma: o uso de neutralizadores pode ter um efeito positivo.

Não é esse, contudo, o nosso foco. O que aqui nos interessa é discutir neutralizadores que operam em organizações públicas. O Estado, sendo um accionista distante, é também um produtor de carga burocrática e normativa que pode neutralizar significativamente a actuação de quem lidera. Como resultado, os líderes podem chegar a um ponto de quase abdicação de liderar.

Todavia, baixar os braços agrava o problema. Por esta razão, analisámos as respostas de um grupo de líderes em contexto estatal a uma questão: como neutralizar os neutralizadores? O desafio foi identificar cinco regras simples que permitam ajudar a lidar com os neutralizadores de modo a evitar as suas consequências perniciosas. Eis as conclusões:

1. Evitar o conformismo. É fácil baixar os braços e assumir que é impossível fazer o que fazem os líderes: introduzir mudança. Mas pode ser mais frutífero introduzir mudanças e melhorias. Uma forma de o fazer consiste em descobrir o que se quer mudar. Escutar clientes (internos e externos) costuma ajudar. Não seguir esta regra conduz a fazer mais do mesmo. Isso é meio caminho andado para a desmotivação colectiva – de quem lidera e de quem é liderado.

O líder de uma organização pública que não está autorizado a promover ou recompensar materialmente os funcionários mais dedicados pode, eventualmente, criar melhores condições para a sua formação ou facultar-lhe horários de trabalho mais condizentes com as suas motivações.

2. Criar uma burocracia capacitadora. Para mudar é preciso compreender a burocracia. Adler e Borys introduziram a distinção entre burocracia capacitadora (a que introduz rigor) e burocracia coerciva (que obriga a fazer certas coisas de certa maneira). Quais as dimensões da burocracia que podemos abordar de modo a capacitar os liderados? Que regras e princípios podem ser erigidos para suportar mudança e capacitar os liderados? Que normas (formais e informais) de actuação podem ser desenvolvidas no sentido de estimular a criatividade? Quais são as regras “estúpidas” (que ganharam raízes e se transformaram em estorvo) que importa remover e substituir? A criação de uma burocracia capacitadora pode ser um bom substituto da liderança quando a mesma se releva incompetente.

3. Clarificar a missão. A descoberta da dimensão capacitadora da burocracia pode ser estimulada pela identificação de uma missão mobilizadora. O que pretendemos alcançar como equipa? Qual a razão de ser da nossa actividade? Quem são os beneficiários da nossa acção e como podemos contribuir para satisfazer as suas necessidades de modo mais apropriado? O que é que cada um de nós, como líder ou liderado, pode fazer para trabalhar em prol desse propósito? Sendo a missão clara, torna-se muito mais fácil o exercício da liderança.

4. Não lutar contra moinhos de vento. Nem tudo o que deve ser feito pode sê-lo. Importa não desperdiçar tempo e energias com impossibilidades. Pode haver algo de romântico na abordagem quixotesca da realidade – mas, sem pragmatismo, ninguém vai longe. A lamúria sobre o que não pode ser feito também não é a melhor forma de actuar: desmotiva quem lidera e quem é liderado.

5. Promover a microcriatividade. A tentativa de introdução de grandes mudanças pode gerar grandes resistências. Portanto, em vez de estimular toda a mudança de uma só vez, pode ser mais frutífero apreciar e estimular as pequenas mudanças ancoradas na microcriatividade: pequenas soluções para pequenos problemas.

Um problema recorrente nas organizações estatais, na perspectiva de quem lidera, é a falta de motivação dos liderados. A ênfase nas pequenas melhorias pode servir, pelo menos, para despertar o desejo de aprendizagem de alguns liderados. A sensação de que algo pode ser feito mobiliza energias – desde que os liderados se sintam reconhecidos pelos esforços de melhoria que pretendem introduzir. Daqui decorre um desafio: os actos de microcriatividade podem fracassar, pois incorporam riscos e incertezas sobre os seus efeitos. Punir esses esforços é uma forma de os matar. A criação de uma cultura de aprendizagem com o erro é, pois, crucial.

Estas cinco regras simples não são a panaceia para lidar com neutralizadores da liderança. Representam apenas um exercício de reflexão inacabado – e que deve ser adaptado a cada organização. O que importa reter é que, perante os neutralizadores da liderança, importa que os líderes não se autoneutralizem.

Uma nota adicional: as organizações públicas consomem recursos públicos, de todos nós, pelo que devem ser geridas com grande sentido de responsabilidade perante os cidadãos. Alguns constrangimentos são incontornáveis e mesmo virtuosos. O endeusamento da gestão privada, alegadamente melhor do que a gestão pública, é facilmente contraditado pelos escândalos empresariais que todos conhecemos. Acresce que uma boa parte da gestão pública é feita por gestores que vieram do privado. Portanto, neutralizem-se os neutralizadores da boa liderança e mantenham-se os que neutralizam potenciais perversidades.

 

Este artigo foi publicado na edição de Dezembro (nº. 120) da Human Resources, nas bancas.

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