Conversa de Presidentes. Raul Neto (Randstad) e Vasco Antunes Pereira (Lusíadas Saúde): O problema do mercado de trabalho na Saúde não está (só, nem sobretudo) na falta de pessoas

É inegável que a atracção e retenção de talento é um desafio transversal a todos os sectores, e o da Saúde não é excepção. Mas não é verdade que haja escassez de profissionais em todas as categorias. Se em alguns casos, não são de facto formados profissionais em quantidade suficiente, noutros é uma questão de (má) gestão e de (falta de) atractividade, não do sector, mas “regional”. E o tema não passa só pelos salários.

 

Moderação Ana Leonor Martins e Ricardo Florêncio Fotos Nuno Carrancho | Fotos NC Produções

 

A Human Resources desafiou Raul Neto, CEO da Randstad (à direita na foto), e Vasco Antunes Pereira, CEO da Lusíadas Saúde (à esquerda na foto), para reflectirem sobre o mercado de trabalho no sector da Saúde em Portugal. Numa conversa que decorreu no Pestana Palace, em Lisboa, os dois líderes falaram abertamente sobre os desafios do sector, contestando algumas ideias pré-concebidas. Mais do que falta de médicos e enfermeiros, Portugal tem falta de perfis técnicos, porque há uma «grave lacuna no investimento no ensino técnico». Depois há o tema dos mercados globais: temos recursos qualificados, mas, como não somos competitivos, eles saem. A solução, aqui, não passará pelo salário, mas por toda a proposta de valor. É aí que é preciso investir.

Deixam outro alerta: com o aumento da longevidade, a relevância do sector vai tornar-se ainda maior. E para vivermos mais, mas com qualidade de vida, os modelos têm de mudar. Porque se não mudarem, aí sim, não vamos ter recursos suficientes. Nem vai ser possível termos.

 

Que evolução e grandes mudanças se destacam no mercado de trabalho do sector da Saúde, em Portugal?
Raul Neto (RN): Há falta de pessoas, em todos os sectores, e o sector da Saúde não é diferente. E tem piorado ao longo dos anos. Há mais oferta de infra-estruturas, há mais hospitais, públicos e privados, mas não há mais médicos a trabalhar e os recursos não se desdobram. E não podem trabalhar mais horas.

Para além de não termos mais médicos, há um maior apelo à emigração. Há muitos jovens médicos – e não só – a emigrar. O que significa que estamos a desaproveitar a nossa capacidade formativa. Tudo isso contribui para o problema.

É óbvio que há uma maior necessidade de recursos, não só na parte médica, mas também – e sobretudo – nos técnicos especializados, nomeadamente os técnicos de diagnóstico. Vemos a ponta do icebergue com os médicos e, aqui e ali, com os enfermeiros, porque há mais ruído, mas Portugal tem uma grave lacuna no ensino técnico. Se tem, claramente, uma boa penetração no ensino universitário, há um problema evidente ao nível do ensino técnico, não há formação técnica.

O nosso sistema educacional foi montado, nos últimos 10, 20, 30 anos, para o ensino universitário, para a melhoria das ditas qualificações médias, para trabalharmos para a estatística, não para a necessidade do País.

 

Isso acaba por ser muito uma questão cultural, de sermos um “país de doutores e engenheiros”
RN: Do ponto de vista familiar, de orientação educacional, até se pode entender, mas estatisticamente, se olharmos por exemplo para os salários, que são mais elevados nestas funções, não faz sentido. A questão é, qual é a necessidade do País face ao ensino se promove.

E é assim em todos os sectores. Nomeadamente com a evolução, há necessidade de profissionais com outras qualificações, técnicas, e não existem. Estão a ser formados nas próprias instituições, na maioria dos casos.

VAP: Sim… E complementando o que o Raul começou por dizer, se olharmos para os médicos, para o rácio por habitante, verificamos que Portugal não está assim tão mal, não estamos na cauda da Europa, como noutros temas. Não temos um problema de falta de médicos, o que temos é um problema de qualidade da gestão na Saúde.

Continuamos a abrir hospitais e a modernizar o SNS [Sistema Nacional e Saúde], mas, em paralelo, não fechamos instituições que deviam estar fechadas, e o que acontece é que os mesmos médicos “não esticam”. Temos o exemplo das maternidades, que é muito mediático. Há seis, sete anos, as maiores maternidades do País eram todas públicas. Hoje, são privadas. Isto significa que as pessoas, podendo escolher, têm optado pelo privado. Isto, por si só, não afecta o tema dos recursos humanos, porque há hospitais públicos, principalmente os mais recentes, que já têm uma proposta de valor para o cliente final idêntica à dos privados, com todas as condições. Mas continuam a concorrer, em termos de recursos, com hospitais que já não deviam estar a funcionar. Desde 2010, temos, potencialmente, mais 30 salas de parto. E quantas fechámos? Nenhuma. Para uma população igual, dobrámos a oferta. Com os mesmos recursos.

 

Então não há falta de médicos?
VAP: Quando se diz, nas notícias, que não há médicos nas maternidades, o que acontece é que não há médicos para todas as maternidades. Mas também não há pacientes. É verdade que há carência de recursos em certos locais, mas se olharmos para o assunto estatística e demograficamente, e de forma genérica, percebemos que devíamos era ter menos hospitais. Os médicos que temos, para a nossa população, chegam.

Tenho um enorme sentido crítico sobre a eficiência, porque, no final do dia, a minha função é criar valor. Isso pressupõe que tudo o que fazemos tem de ser sustentável economicamente, a longo prazo. E mais de 50% da minha estrutura de custos é em recursos humanos. É a única indústria em que a linha de custo com as pessoas é equiparada a consultoras e a escritórios de advogados. Por isso, é um tema que me é muito sensível.

Hoje em dia, o encargo de Saúde, em Portugal, é maior que todo o IRS junto. Ou seja, o IRS de todas as pessoas em Portugal não paga a Saúde que nós temos. E sendo que Portugal tem o maior consumo privado de Saúde da Europa.

 

E se procuram tanto o privado, é porque o público não dá resposta às suas necessidades
VAP: Ia chegar a esse ponto. Há uns anos, não havia uma demanda, como existe hoje, pela saúde privada. E não havia tanta oferta, porque o sector se pauta pelas leis de mercado, pela oferta e pela procura. As pessoas compram seguros de saúde porque querem usá-lo. Por alguma razão é. Estamos simplesmente a satisfazer a procura. No sector público, não é isso que estão a fazer. Estamos a dotar de meios humanos organizações que não têm procura, apenas por uma bandeira política. Enquanto assim for, vamos continuar a ter problemas.

 

Fez a ressalva de que há carência de profissionas em certos locais… Fora dos centros urbanos, há escassez de profissionais de saúde, é isso?
VAP: Há regionalismo, sem dúvida. Mas não tem só a ver com os centros urbanos… Mas, mais uma vez, é um tema de oferta e procura. Em Lisboa e no Algarve, não há enfermeiros, porque não há escolas suficientes para a procura. Já no Norte, há muitas escolas de enfermagem, a oferta é maior do que a procura. Assim, em Lisboa, estamos a receber muitos enfermeiros do Porto. Mas quando começam a ter filhos e a precisar do apoio da estrutura familiar, querem voltar. No Algarve, é muito mais dramático: não têm recursos porque tem poucas escolas, em qualquer das áreas.

O tema do ensino técnico, então, é escandaloso. Não há técnicos em Portugal. Desses, sim, há falta. Está no topo da nossa agenda. Está invertido com o tema médicos, ao qual temos dado muita atenção nos últimos anos, e eles existem, mas quando olhamos para as funções técnicas, altamente necessárias, em todo o percurso do doente, vemos uma curva invertida. Não existem em Portugal. Estamos a levar técnicos do Porto para o Algarve, estão lá dois dias, e voltam.

RN: É quase o jogo do gato e do rato… Se não existem, onde os vamos buscar? Ou há abertura para criar condições adicionais para o empregador final captar essa mobilidade ou é impossível. Se não há recursos no local, tem de haver atractividade no local – e isso não tem só a ver com remuneração. Tem a ver, por exemplo, com a sustentabilidade familiar já referida; a proximidade da rede escolar, a actividade económica, por causa do emprego do cônjuge, e estes ecossistemas não existem. Se não conseguirmos criar no Algarve um ecossistema semelhante, a nível de serviços e tecido empresarial, ao que Conversa de Presidentes temos nas regiões Norte e Centro, o problema vai subsistir. Temos muita diferenciação de mercados, com o Norte sobretudo industrial, Lisboa serviços, Turismo no Algarve… Isso levanta problemas quando queremos promover a mobilidade.

VAP: Não podia estar mais de acordo, mas é uma realidade que está a ser mitigada. Estamos entre dois cenários: um cenário histórico, que é exactamente o que acabou de referir, e outro – que já se vê no Algarve, a passos muito largos – que é a criação dessa rede, porque o mercado o está a exigir. Estão a florescer as infra-estruturas necessárias, como escolas, para as pessoas se fixarem lá. Há uns anos, estava “montado” só para Verão, com uma infra-estrutura hoteleira bestial, mas pouco mais. Hoje já não é assim.

RN: Esse esforço tem sido feito também muito puxado por uma população estrangeira, que é residente e tem poder de compra, e não por aquilo que é necessidade de migração local.

 

Leia a entrevista na íntegra na edição de Março (nº. 171) da Human Resources, nas bancas.

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