Da paixão ao abismo – O impacto indirecto da COVID-19 na saúde psicológica dos atletas

Foi em Março de 2020 que o mundo teve consciência que mudar era inevitável. Perante os dados alarmantes que surgiam de todo o mundo e a ausência de conhecimento, cura e vacina para a doença as medidas de confinamento e isolamento social foram-se multiplicando pelo mundo fora e afectando todas as actividades. Volvido quase um ano, os números em Portugal estão piores do que nunca. E o desporto também tem sido bastante afectado.

Por Liliana Pitacho,  Patrícia Palma e Pedro Correia, docentes e investigadores do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa e do Centro de Administração de Políticas Públicas (CAPP-ISCSP).

 

A pandemia COVID-19 trouxe ao mundo do desporto mudanças incomparáveis, mudanças nas competições com a interrupção dos campeonatos, mudanças nas rotinas desportivas com o acesso negado ao ambiente de treino e aos colegas de equipa, e uma incerteza generalizada sobre a retoma de actividade.

Enquanto se alertava e consciencializava a população mundial da necessidade de praticar exercício físico individualmente em casa ou ao ar livre durante o confinamento com o objectivo de manter a saúde mental de todos, os atletas que fazem do desporto a sua rotina viram-se obrigados a parar.

Muito se discutiu sobre o impacto financeiro desta medida quer para os clubes quer para todas as empresas envolvidas na indústria desportiva. Foram inúmeros os artigos e peças nos media a discutir o assunto, mas pouco se refletiu ou discutiu sobre o impacto desta paragem e desta incerteza naqueles que são o centro da actividade desportiva, os atletas!

Os atletas de competição iniciam muitas vezes a actividade desportiva ainda na infância, mais do que uma actividade física ou um hobby este desporto passa a ser um modo de vida. É em função da modalidade que se constroem a rotina, é neste espaço que muitas vezes encontram o seu núcleo de relações próximas e é também através da prática regular diária que muitos atletas aprendem a fazer a sua gestão emocional. Mas e quando tudo pára?

Com o objectivo de analisar o impacto indirecto da COVID-19 na saúde psicológica dos atletas foi realizado um estudo que contou uma amostra de 1492 atletas de 8 modalidades colectivas, entre jovens dos escalões de formação e atletas dos escalões de competição. De forma resumida, os resultados obtidos são expressivos e bastante preocupantes. Mais de 50% dos atletas evidencia níveis patológicos de stress durante a interrupção. Mais de 75% considera estar mais infeliz que antes. E, adicionalmente, mais de 40% dos atletas apresenta perturbações do sono com risco elevado para a saúde.

Estes resultados são agravados pelos cortes salariais que ocorreram durante a interrupção. Adicionalmente verificou-se que são escassos os clubes que proporcionam apoio psicológico aos seus atletas (13,3%), sendo que mais de 50% dos atletas alega não ter qualquer tipo de apoio do clube nem sequer contacto com elementos do clube durante a interrupção.
Estes resultados têm impacto quer na saúde e desenvolvimento individual dos envolvidos, mas também claramente na sua prestação desportiva/competitiva. Quer os níveis elevados de stress quer às perturbações do sono conduzem a quebras nos níveis de concentração do individuo, tornando-o entre outras coisas mais propenso a comportamentos de risco de acidentes. Além disso, são muitas as investigações que têm demonstrado o impacto do stress percebido dos atletas na sua vulnerabilidade às lesões e a lesões desportivas mais graves. Adicionalmente, quer os elevados níveis de stress quer as perturbações do sono estão claramente associadas a quebras de produtividade, ou seja, do rendimento desportivo.

Da mesma forma que as alterações metabólicas provocadas pelas perturbações do sono conduzem a fadiga e falta de energia, provocando também uma maior lentidão na recuperação física dos atletas. Destaca-se, ainda, a relação entre o stress e os problemas ou doenças cardíacas e cerebrovasculares, a fragilidade do sistema imunitário, dores musculares devido à tensão provocada, problemas sexuais e diabetes.

As alterações provocadas pelos níveis de stress percepcionado não se restringem às alterações físicas, afecta também a função cognitiva e comportamental dos indivíduos. Nomeadamente, maior irritabilidade, depressão, falta de concentração e memória, ansiedade e poderá conduzir ao consumo de substâncias estupefacientes.

Por sua vez, as perturbações do sono podem também conduzir a ansiedade, depressão, fadiga, irritabilidade, baixa concentração, quebras de aprendizagem, quebra de rendimento, desenvolvimento de distúrbios respiratórios, cardíacos e até psíquicos.

Por outro lado, a felicidade está claramente associada a níveis mais elevados de resiliência que perante situações adversas poderá servir de “amortecedor” destes impactos negativos. Contudo, a quebra de felicidade coloca os atletas numa situação ainda mais fragilizada.

Estes dados obrigam a discutir sobre medidas a implementar quer para mitigar os efeitos quer para prevenir situações semelhantes. O arranque dos campeonatos das modalidades não colocou um fim nesta situação preocupante, até porque os atletas da formação continuam ainda hoje sem competir e com os treinos condicionados. Além disso, a instabilidade e incerteza mantém-se para todos. O receio de novas interrupções paira constantemente no ar pelo que não se prevê que os níveis de stress diminuam de forma significativa num período rápido, o que poderá colocar os atletas em competição com uma pressão adicional à competitiva. Exemplo disto é a incerteza que surge a cada semana onde podemos assistir sistematicamente a jogos adiados devidos a casos positivos que obrigam a nova paragem e ao isolamento e quarentena das equipas.

Urge pensar numa estratégia de intervenção consertada entre diferentes entidades, desde os clubes, associações, federações e entidades estatais na área desportiva por forma a criar ações e ferramentas protetivas destes atletas desde a formação á competição.

Resta-nos ainda alertar para que hoje a incerteza e insegurança não se cinge apenas à área desportiva, a incerteza laboral, o receio de novos lay-offs ou despedimentos assola a mente de todos, pelo que estes resultados aqui apresentados poderão também ser ilustrativos da saúda psicológica de outros trabalhadores. Este facto deverá colocar também as organizações empresariais sobre aviso iniciando também estas um processo de mitigação e intervenção das consequências indirectas da COVID-19.

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