Dia Mundial das Doenças Raras. Desconhecimento e estigma no mercado de trabalho são os “alvos a abater”. Conheça dois testemunhos na primeira pessoa e mais um de uma especialista

Hoje assinala-se o Dia Mundial das Doenças Raras. Actualmente, estão identificadas mais de 6000 doenças raras, que se estima afectarem 6%–8% da população mundial, ou seja cerca de 300 milhões de pessoas.

 

Desde o passado dia 1 de Fevereiro, as empresas com mais de 100 trabalhadores passaram a estar obrigadas a integrar pessoas com incapacidade igual ou superior a 60%, no seguimento da entrada em vigor da Lei das Quotas de Integração de Pessoas com Deficiência.

 

A Human Resources Portugal conversou com Patrícia Santos e José Pedro Rodrigues, que partilharam a sua experiência enquanto portadores de uma Doença Rara (Atrofia Muscular Espinhal e Distrofia de Duchenne respectivamente), dos desafios com que se defrontaram na sua integração no mercado de trabalho e como têm superado as limitações impostas pela doença no exercício da sua actividade; e também com Ana Isabel Gonçalves, vice-presidente da APN – Associação Portuguesa de Neuromusculares.

Por Tânia Reis 

 

Patrícia Santos, de 29 anos, reside em Lisboa e tem Atrofia Muscular Espinhal desde a nascença. É bancária desde Outubro de 2017 e está integrada no departamento de Pós-Venda Leasing. Vinda de um curso de Turismo, teve receio de não se adaptar à Banca, mas a sua integração foi melhor do que esperava e «foi óptima».

 

Que desafios encontrou? E como foram superados?

O banco onde trabalho tem, já por si, uma política de integração muito boa, contudo foram necessários alguns “ajustes” … No meu caso concreto, por exemplo, não consigo alimentar-me sozinha e o banco contratou uma “cuidadora” para me dar (a mim e a outros colegas com necessidades especiais) todo o apoio nesse sentido. Foi feita uma adaptação a uma secretária de modo a ficar à altura específica para eu poder trabalhar sentada na minha cadeira de rodas que é mais alta do que uma “cadeira de escritório” normal. Como não tenho mobilidade suficiente para poder mexer no telefone fixo, foi-me facilitado um aparelho que me permite atender as chamadas através do pc com um auricular.

 

Que desafios enfrenta diariamente na sua vida profissional?

Tento sempre “contornar” os desafios, mas há alguns que não consigo: por exemplo, a minha deslocação até ao emprego é feita em viatura própria e adaptada, o que obriga a que outra pessoa da família se desloque tanto para me ir levar como para me ir buscar.

 

De que forma a Atrofia Muscular Espinhal condiciona a sua actividade profissional? Como supera essas limitações?

A Atrofia Muscular Espinal caracteriza-se por “falta de força” que tanto afecta os músculos de movimentos, assim como outros músculos, por exemplo da parte respiratória. Quando me constipo, e por ficar mais afectada respiratoriamente, fico dependente de máquinas que me ajudam a superar a situação e fico, por isso, impossibilitada de me deslocar para o Banco, nessas alturas fico em teletrabalho.

 

Que medidas adoptou a empresa onde trabalha actualmente para o seu acolhimento e integração?

A empresa sempre se mostrou disponível para qualquer tipo de adaptação necessária, seja a nível de infraestruturas como a nível humano e social.

 

Que conselho(s) daria às empresas que pretendem apostar na contratação de pessoas com deficiência?

O meu conselho passa por, acima de tudo, haver diálogo entre a empresa e a pessoa com necessidades especiais, pois só ela poderá especificar as suas necessidades, os seus receios e assim, em conjunto, poderem adaptar-se mutuamente.

 

Acredita que a Lei das Quotas de Integração de Pessoas com Deficiência é um passo positivo e pode resolver o problema? Justifique.

Sinceramente, não acredito que resolva a 100%, porque depende da vontade das empresas, mas pode ser um incentivo e o início de uma mudança nas mentalidades empresariais. Ainda há um grande estigma no que diz respeito à palavra “deficiente”. Há uma tendência em associar deficiência a incapacidade cognitiva, mas cada caso é um caso e cada deficiência também, pelo que há que analisar sempre o curriculum da pessoa independentemente das suas limitações. As mesmas podem nem sequer interferir no desempenho das funções.

 

Crê que as empresas, os trabalhadores e a sociedade em geral estão sensibilizados para o tema da integração das pessoas com deficiência? O que falta fazer?

A sociedade em geral começa a estar sensibilizada para estes casos, mas ainda há muito trabalho a fazer e mudanças na mentalidade. Somos um povo muito solidário e penso que, com a continuação da informação, as novas gerações já verão a deficiência como apenas mais uma característica e não como um defeito ou rótulo. Ainda temos muito caminho para trilhar: acessos (passeios, espaços públicos, serviços, etc), transportes (apesar de já haver alguns, muitas vezes estão desactivados, outros são demasiado dispendiosos), apoios, mas espero que pouco a pouco vão sendo neutralizados.

 

José Pedro Rodrigues tem 41 anos e vive em Santa Maria da Feira, com os pais. O diagnóstico de Distrofia de Duchenne foi confirmado aos quatro anos e anda de carreira de rodas desde o 5º ano do ciclo. Licenciado em Engenharia Informática e Computação na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto desde 2004, trabalhou em várias organizações. Em 2011, a Segurança Social atribuiu-lhe a pensão de invalidez absoluta, pelo que está impedido de trabalhar.

 

Como foi o seu percurso profissional?

A minha primeira interacção como o mundo profissional começou como a procura de estágio curricular em empresas do sector de desenvolvimento informático em 2004. Comparativamente com outros colegas, o número de opções compatíveis ficou bastante reduzido, sobretudo devido à falta de acessibilidade de muitos dos locais. Consegui ter um número mais reduzido de entrevistas.

Comecei por estagiar na Direcção de Sistemas de Informação de um banco, onde fui integrado como qualquer outro colega. No entanto, o local teve de sofrer pequenas alterações para garantir a acessibilidade aos espaços que seriam frequentados por mim, nomeadamente a substituição de degraus por rampas no acesso a determinadas salas. Devido a dependência de terceiros, também foi permitido o acesso do meu pai às instalações, para me auxiliar nas refeições e nas idas à casa de banho.

Terminei o estágio com uma nota de 19 valores, tendo a avaliação do banco sido bastante positiva. Após o estágio curricular, continuei a colaborar com o banco, apesar de com um vínculo laboral precário. Em 2006 esse vínculo terminou, por impossibilidade de manutenção dos termos do vínculo contratual à data.

No entanto, essa colaboração prosseguiu em moldes diferentes em 2007, quando me estabeleci por conta própria, prestando serviços empresariais de consultoria, com reuniões frequentes nas instalações do banco. Passado algum tempo, com a mudança de instalações da direcção de sistemas de informação, o novo local já não garantia as condições de acessibilidade necessárias e, apesar do esforço para encontrar soluções compatíveis, essas mostraram-se inviáveis a longo prazo.

A dificuldade em ter acessibilidade aos espaços das empresas para as quais poderia trabalhar, ou aos espaços dos seus clientes, assim como a dependência de terceiros, que me impedia de deslocar a minha residência para outros pontos do país, mostraram-se os principais desafios a encontrar trabalho por conta de outrem ou encontrar clientes com trabalho compatível com a minha formação e com a minha situação de dependência física.

Consegui ter alguns projectos de média duração, até que fiquei responsável por prestar serviços de coordenação de projectos da Associação Portuguesa de Neuromusculares, com a Direcção-Geral da Saúde e o Alto Comissariado da Saúde, alguns deles dando passos para a criação e reconhecimento do serviço de assistência pessoal, tendo coordenado um projecto piloto de assistência pessoal, financiado pela Direcção-Geral da Saúde.

Essa colaboração profissional terminou abruptamente, quando pedi para ter acesso à pensão de invalidez relativa, mas me foi atribuída a pensão de invalidez absoluta, por parte da Segurança Social. A atribuição da pensão de invalidez relativa permitiria compensar um pouco a redução de produtividade e capacidade para desempenhar as minhas funções, decorrente da dependência de terceiros para determinadas tarefas. Ao contrário, a atribuição da pensão de invalidez absoluta é, segundo a Segurança Social, incompatível com qualquer rendimento de trabalho, de forma irreversível.

Ao contrariar a opinião dada pelo médico que esteve na junta médica, a junta médica e as entidades de recurso na Segurança Social determinaram que a minha situação de saúde física já não era compatível com o exercício de qualquer actividade profissional. Assim, encerrei a minha actividade profissional em Dezembro de 2012.

 

Que principais desafios encontrou? E como foram superados?

A principal barreira que senti foi o desconhecimento, que originou situações de discriminação e preconceito relativamente às minhas capacidades de ser uma mais-valia, sem qualquer conhecimento pessoal inicial. Entretanto, quando essas barreiras iniciais não se colocaram, fui aceite integrado como alguém semelhante aos outros.

A nível das acessibilidades, quando as barreiras não eram demasiadas e existiu vontade, foram sempre possíveis de superar, quer assegurando directamente as condições de acessibilidade, quer encontrando modelos de trabalho compatíveis.

À medida que é a minha situação de dependência física foi aumentado, sem qualquer garantia de aumento do apoio de terceiros à medida do necessário, procurei ajustar a minha actividade profissional às minhas efectivas capacidades em cada ocasião.

As barreiras legislativas e legais mostraram ser as maiores, até agora intransponíveis. Possivelmente, a principal causa destas discriminações legislativas se devam ao desconhecimento da parte dos órgãos legislativos e governativos deste tipo de situações, que saem do padrão comum e maioritário da sociedade.

 

De que forma a Distrofia de Duchenne tem condicionado a sua actividade profissional?

Penso que o desconhecimento do que é a Distrofia Muscular de Duchenne e das suas reais implicações, alguns preconceitos da sociedade em geral relativos às pessoas com deficiência, e à sua capacidade para trabalhar e serem produtivos são uma parte das condicionantes que afectaram a minha vida profissional.

Por outro lado, a incapacidade física de executar sem auxílio determinados movimentos, o maior tempo necessário para executar determinadas tarefas, as questões logísticas das deslocações, idas à casa de banho, refeições e outras, e a progressividade da dependência física, são as principais dificuldades imediatas decorrentes da Distrofia Muscular de Duchenne.

 

Como tem superado essas limitações?

Actualmente, o início da implementação da assistência pessoal pode permitir a superação de muitas destas condicionantes, pois permite ultrapassar e a falta de produtividade por incapacidade física de realizar uma determinada tarefa.

 

Acredita que a Lei das Quotas de Integração de Pessoas com Deficiência é um passo positivo e pode resolver o problema? Justifique.

É o passo positivo, mas para ser efectivo, necessita de ser acompanhado por um conjunto de apoios adicionais que permitam superar as reais necessidades de apoio físico, intelectual ou outro que as pessoas com deficiência têm. Se eu, que necessito de apoio para ser levantado da cama, para ser transportado para o trabalho e para executar as tarefas físicas que o meu trabalho exige, tiver acesso a esse mesmo apoio, possivelmente conseguirei ser uma pessoa tão ou mais produtiva como qualquer outra. No entanto, sem esse apoio inicial, ficaria na cama, indefinidamente, apesar de qualquer quota.

 

Crê que as empresas, os trabalhadores e a sociedade em geral estão sensibilizados para o tema da integração das pessoas com deficiência? O que falta fazer?

Cada vez mais, as empresas os trabalhadores e a sociedade estão mais sensibilizados para as questões da integração de pessoas com deficiência, graças a um cada vez maior mediatismo que algumas pessoas têm vindo a ter, dando a conhecer outras realidades, que ajudam a desconstruir determinados preconceitos existentes na sociedade. Penso que são necessários cada vez mais exemplos concretos da realidade destas pessoas e de quem elas vive de uma forma directa.

 

Quais os principais entraves às pessoas com doenças raras e a integração no mercado de trabalho?

Para mim, um dos principais entraves a integração de pessoas com doenças raras do mercado de trabalho deve-se ao desconhecimento da sociedade relativamente à capacidade destas pessoas para trabalhar. Se, por um lado, é verdade que podem existir algumas limitações ao volume ou tipo de trabalho que pode ser desenvolvido, muitas vezes, isto pode ser contrabalançado com a dedicação e empenho que estas pessoas são capazes de demonstrar no desempenho do seu trabalho, assim como a vontade de poderem ser reconhecidas como pessoas activas e produtivas.

Por outro lado, muitas vezes, são as barreiras arquitectónicas e provocadas pela forma como a sociedade integra as pessoas com alguma diferença que não permitem a concretização da capacidade produtiva destas. A falta de acessibilidade aos transportes e espaços públicos, a rigidez dos processos e horários de trabalho, e a falta de apoio para superar as dificuldades provocadas pelas doenças raras, são alguns dos exemplos de uma maior ou menor discriminação a que muitas destas pessoas são sujeitas, que as impede de assumir o seu papel de pleno direito na sociedade da qual fazem parte.

 

O que podem (e devem) as empresas fazer para melhorar a jornada de trabalho a pessoas com doenças raras?

Reconhecer a mais-valia da diferença de experiência e perspectivas que estas pessoas podem trazer ao mundo empresarial poderá ser um dos primeiros passos. Procurar garantir a acessibilidade dos espaços ao maior número de pessoas também será benéfico, não só para estas pessoas, mas também para todos os trabalhadores e intervenientes no processo produtivo de cada empresa.

Encontrar formas inovadoras de flexibilização dos horários e formas em que o trabalho pode ser prestado, que permita a estas pessoas ter o acesso aos cuidados, de saúde e outros, que muitas vezes precisam, também poderá ser uma mais-valia para todos os envolvidos. Tentar encontrar o melhor do que cada um pode dar de forma a atingir os objectivos empresariais concretos e específicos de cada organização irá trazer sempre mais valias concretas e palpáveis à sua produtividade.

 

Ana Isabel Gonçalves é vice-presidente da APN – Associação Portuguesa de Neuromusculares, IPSS que dá apoio social, psicológico, técnico e humano a todos os portadores de doença neuromuscular e às suas famílias.

Como vê o tema da integração de pessoas com deficiência, nomeadamente com doenças raras, no mercado de trabalho?

A generalidade das pessoas com deficiência apresentam grandes dificuldades em se integrar profissionalmente, não só pelas barreiras arquitectónicas que encontram, como pelas necessidades específicas que possuem e que nem sempre a entidade patronal consegue ou pretende adequar-se.

No que concerne às pessoas com doenças raras, o desconhecimento das caraterísticas, a dificuldade em lidar com a evolução das doenças, levam as empresas a não integrar por receio do desconhecido. Por outro lado, também se verifica alguma falta de confiança nas pessoas com doenças raras, como as doenças neuromusculares, em se candidatar a anúncios de emprego.

 

Da sua percepção, quais as principais barreiras e desafios que estas pessoas encontram a nível profissional?

As principais barreiras e desafios com que as pessoas com doença neuromuscular se confrontam são maioritariamente barreiras arquitectónicas; além disso, quando integradas no mercado de trabalho, com o surgimento ou a evolução de uma doença neuromuscular, nem sempre se verifica a possibilidade de adaptar o seu posto de trabalho, horário ou funções às limitações advindas de uma doença neuromuscular; nem sempre lhes é possibilitado o teletrabalho, como forma de facilitar algumas deslocações a espaços menos acessíveis; a dificuldade em obter algum apoio para algumas actividades diárias por parte dos colegas de trabalho; entre outras.

 

Como podem as empresas colmatar essas dificuldades e o que devem fazer para promover a empregabilidade de pessoas com deficiência?

Acima de tudo, começarem por ver o grande potencial que muitas pessoas com deficiência têm e passar por contratá-las. Além disso, é importante integrar verdadeiramente as pessoas com deficiência, permitindo uma participação activa no crescimento da empresa e auscultação das mesmas para tornar a empresa acessível a qualquer pessoa com deficiência.

 

Acredita que a Lei das Quotas de Integração de Pessoas com Deficiência é um passo positivo e pode resolver o problema? Justifique.

Acreditamos que a Lei de Quotas é, de facto, um factor impulsionador na integração profissional das pessoas com deficiência, ainda que escasso para o número de pessoas com deficiência desempregadas, na medida em que apenas abrange empresas com mais de 75 trabalhadores nos quadros, devendo estas contratar 1% de pessoas com deficiência.

 

Crê que as empresas, os trabalhadores e a sociedade em geral estão sensibilizados para o tema da integração das pessoas com deficiência? O que falta fazer?

A APN tem desenvolvido alguns projectos em torno da empregabilidade das pessoas com deficiência, tanto no sentido de sensibilizar as empresas para a responsabilidade social, como em capacitar as pessoas com deficiência para o mercado de trabalho.

No entanto, consideramos necessário continuar a promover a inclusão das pessoas com deficiência nos locais de trabalho, impulsionando a adequação dos postos/funções de trabalho às capacidades das pessoas.

Verifica-se ainda algum desconhecimento sobre a existência programas de apoio às empresas para a contratação de pessoas com deficiência, como o Programa de Emprego e Apoio à Qualificação das Pessoas com Deficiência e Incapacidade do IEFP.

Portanto, a promoção da inclusão profissional das pessoas com deficiência passa pela capacitação, informação e sensibilização dos diferentes actores sociais sobre as capacidades das pessoas com deficiência e das diferentes limitações, valorizando a importância de uma empresa acessível e promotora de igualdade de participação e inclusão.

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