Entrevista. A Psicologia da Pandemia: especialistas explicam como compreender e enfrentar a COVID-19

Compreender o impacto da pandemia Covid-19 na esfera laboral é essencial numa altura em que a segunda vaga se instala um pouco por toda a Europa, Portugal incluído. 

 

Por Sandra M. Pinto 

 

O livro “A Psicologia da Pandemia – Compreender e Enfrentar a COVID-19” recentemente publicado pela editora Pactor vem dar resposta a uma série de questões que se colocam aos cidadãos e aos especialistas.

Em entrevista exclusiva à Human Resources, o psicólogo forense Mauro Paulino, coordenador do livro, e a psicóloga clínica Laura Alho, uma das autoras,  esclareceram, além do impacto, as reações emocionais e comportamentais que esta pandemia está a originar nos profissionais que acabam por se reflectir no universo do trabalho.

 

Quase metade (49,2%) dos portugueses classifica o impacto psicológico da pandemia de covid-19 como “moderado a severo”, segundo um estudo desenvolvido pela Mind – Instituto de Psicologia Clínica e Forense divulgado em Abril passado. Sete meses depois do estudo é vossa convicção que este número aumentou?
Mauro Paulino – Com o aumento de casos nesta segunda vaga, é possível que o número aumente. Não pelo desconhecimento acerca da pandemia, mas pelas novas readaptações, desafios e pelo número de infectados e mortes estar a aumentar diariamente, o que pode criar um medo colectivo e um isolamento disfuncional. Tenha-se presente de que a Organização Mundial de Saúde já revelou que o cansaço, a fadiga da pandemia já atinge 60% da população. Ou seja, existe um sentimento de sobrecarga, por nos mantermos constantemente vigilantes, e de cansaço, por obedecermos a restrições e alterações na nossa vida, como então a conhecíamos. Ainda que seja natural sentir ansiedade e preocupação perante um evento desta magnitude, importa realçar que quando a situação começa a fugir do controlo e a comprometer o bem-estar, deve-se procurar ajuda especializada.

 

Quais os principais factores de risco?
Mauro Paulino – Podemos indicar vários factores de risco associados a uma maior vulnerabilidade ou bem-estar psicológico reduzido, na sequência da pandemia, nomeadamente factores sociodemográficos, como viver sozinho, nível educacional reduzido, ser estudante ou não ter filhos. A existência de antecedentes médicos é também de considerar, em particular perante diagnóstico de perturbação psiquiátrica ou uso de substâncias, sendo sabido que a exposição a traumas está, igualmente, associada a um aumento do abuso de substâncias. Questões psicológicas como baixa autoestima, aumento de stress, baixa autoeficácia e conhecimentos limitados sobre a Covid-19 constituem também factores de risco. Quanto a factores relacionados com o trabalho, associados a um aumento do risco de depressão e ansiedade, surge o facto de se trabalhar como profissional na linha da frente e ter mais de 10 anos de experiência profissional. Acresce o desemprego, o medo em relação ao futuro, o medo de contágio, as perdas familiares devido ao vírus e em circunstâncias muito específicas, que nem sempre permitem rituais de despedida.

 

Quais os principais sintomas associados a este impacto psicológico?
Laura Alho – As respostas psicológicas, ao nível do impacto da pandemia na saúde mental, envolvem essencialmente sintomas depressivos e de ansiedade, bem como níveis de stress consideráveis. As pessoas andam mais tristes, mais apreensivas, mais preocupadas e inundadas de informação nem sempre concordante ou baseada em evidências. Um cenário que era para durar 15 dias dura há vários meses, não sendo possível prever o seu fim, o que gera inseguranças e pode suscitar menor motivação para o cumprimento das orientações e comportamentos de protecção.

 

A quantidade e a qualidade da informação partilhada influenciam as reações psicológicas dos indivíduos?
Laura Alho – Com certeza! A quantidade porque, ao estar constantemente a ouvir-se falar do mesmo, gera por si só preocupação e cria um mindset de medo; ou em algumas pessoas gerar um estado de saturação tal, que desligam ou deixam de discernir o essencial do periférico. A qualidade, ou ausência dela, porque pode reforçar medo ou respostas pouco eficazes. Às vezes, a comunicação social passa horas a falar da pandemia sem acrescentar nada de significativo, razão pela qual se deve escolher dois momentos por dia para receber actualizações de notícias e optar por um ou dois canais de informação credíveis para o fazer. É necessário cuidar de nós mesmos e evitar a exposição a informação não apropriada e não confiável, com notícias falsas ou notícias carregadas de sensacionalismo e em experiências não baseadas em dados reais. Depois, vemos nas redes sociais uma série de publicações que são completamente falsas, mas que são partilhadas por milhares de pessoas que acreditam estar a divulgar uma verdade. Tudo isto gera pânico individual e colectivo e contribui claramente para o exacerbar de reacções psicológicas. Como uma estratégia de autocuidado, as pessoas devem acompanhar os factos e não os rumores e a desinformação; devem procurar informação credível, razão pela publicámos o livro “A Psicologia da Pandemia – Compreender e Enfrentar a Covid-19”, como forma de preencher uma lacuna importante na literatura nacional, relativamente a conhecimento científico, escrito de forma clara e acessível a todos os cidadãos.

 

A pandemia coloca um holofote sob os distúrbios psicológicos relacionados com o trabalho. Qual o impacto da pandemia na relação de gestores e colaboradores?
Mauro Paulino – Mais que colocar um holofote sob as perturbações psicológicas relacionadas com o trabalho, a pandemia deve consciencializar para a necessidade de prevenção e de intervenção atempada com elementos de risco, evitando o agravamento ou descompensações de patologias anteriores. Não podemos perder de vista que, actualmente, estamos a falar de uma maior responsabilidade que passa pela necessidade de continuar a fazer as coisas funcionarem contra a maré. Enquanto uns estão focados no que ainda está por vir, outros estão focados em se adaptarem às novas necessidades para manterem postos de trabalho e níveis de produtividade. Criam-se novas responsabilidades e exigências profissionais. Gestores e colaboradores são, antes de mais, pessoas e não peças a explorar. Nunca podemos perder esse foco. E como qualquer pessoa, também têm desgaste físico e psicológico. Nesta sequência, espera-se que as entidades e as direcções de Recursos Humanos, percebam a necessidade de acautelar a saúde mental dos seus, caso contrário, arriscam-se que toda a estrutura colapse. Pessoas deprimidas, ansiosas, desgastadas, infelizes produzem menos; má saúde psicológica pode custar às empresas três vezes mais do que a Ponte Vasco da Gama; o que justificará um investimento preventivo, e, portanto, sábio, em serviços de cuidado psicológico e saúde emocional, como por exemplo linha telefónica num registo de intervenção em crise, consultas psicológicas online, disponibilização de conteúdos psicoeducativos preparados por profissionais habilitados para tal, ou até mesmo a monitorização dos níveis de sintomatologia dos colaboradores. Se lhes medem a temperatura, porque não medir a intensidade dos sintomas de ansiedade, depressão e identificar atempadamente os colaboradores em maior sofrimento?

 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) oficializou o burnout como doença crónica em 2019. Por que é o burnout um dos grandes problemas da pandemia?
Mauro Paulino – O burnout é, antes de mais, uma resposta a uma exposição prolongada de stress em contexto laboral. É um dos riscos psicossociais que mais afecta as organizações. Estamos a falar de mais de 40 milhões de trabalhadores afectados em toda a União Europeia. O stress ocupacional é o segundo problema de saúde relacionado com o trabalho mais reportado na Europa. Considerando todas as alterações nas rotinas familiares, mas também laborais das pessoas, associadas a novas exigências, à carga de trabalho, aos conflitos e má relações entre colegas ou superiores, à dificuldade de equilibrar a vida pessoal e profissional, já que se trabalha de casa, e ao risco de vários postos de trabalho cessarem, é compreensível que tudo isto cause um desgaste mais acentuado, potenciando situações de burnout. Quando sentimos que as nossas necessidades e o nosso bem-estar e/ou qualidade de vida podem estar comprometidos, isso gera em nós a obrigação de dar respostas quase imediatas ao trabalho e a ausência de preparação para a mudança aumentam seguramente os níveis de stress, acabando por criar uma desmotivação crescente e levar a um esgotamento, caso não haja procura de ajuda proactiva antes de se chegar ao limite. As próprias empresas devem estar atentas aos comportamentos dos seus colaboradores porque, sem eles, não existe empresa.

 

Qual o papel aqui desempenhado pela psicoeducação?
Laura Alho – Tem um papel crucial, especialmente se a psicoeducação for promovida preventivamente, como se pretende. A psicoeducação permite dar a conhecer às pessoas, através da sensibilização e de informação credível, quais os impactos de uma determinada situação e quais as ferramentas ao seu dispor. No fundo, é simplificar o problema de forma a que a pessoa o perceba e saiba lidar com ele de uma forma adaptativa e funcional. Neste caso em particular, a psicoeducação deveria ser feita nas empresas, quer para as chefias quer para os colaboradores. O conhecimento individual e colectivo sobre um determinado fenómeno ajudar a reduzir o seu impacto negativo. O ensino de uma técnica de relaxamento ou de controlo respiratório, ou a explicação relativamente a fenómenos psicológicos, cujo entendimento da pessoa esteja por algum motivo bloqueado, como por exemplo em questões de ansiedade, luto ou comportamentos de saúde e bem-estar.

 

Há profissionais mais sujeitos à sindrome ou pode ela atingir transversalmente qualquer profissão?
Mauro Paulino – Ela pode surgir em qualquer profissão, visto que depende de fatores comuns a várias profissões, como por exemplo a carga de trabalho, a falta de autonomia e controlo sobre as tarefas, exigência emocional, horários de trabalho contínuos e excessivos, conflitos e má relações entre colegas e superiores hierárquicos. Todavia, existem estudos que demonstram que profissionais de saúde, professores ou profissões que exijam contacto constante com pessoas ou com turnos de trabalho, aumentam o risco de burnout. Aliás, através das evidências científicas disponíveis, é altamente provável que o burnout entre profissionais de saúde, professores e educadores aumente consideravelmente durante e após a pandemia. Em Portugal, do Serviço Nacional de Saúde trabalharam mais de 1,163 milhões de horas extraordinárias nos primeiros seis meses de 2020, um aumento de 17% face ao mesmo período do ano passado. Tenha-se também presente que à medida que o mundo encarava um abrandamento das suas atividades diárias, em consequência de um novo vírus que forçava a adoção de medidas de distanciamento social, a fim de reduzir a possibilidade de contágio, os profissionais de saúde avançaram no sentido oposto, enfrentando múltiplos desafios sem precedentes.

 

Quais os sintomas mais comuns da síndrome de burnout aos quais os profissionais devem estar mais atentos?
Laura Alho – O burnout não aparece de rompante, vai dando sinais. A pessoa começa a negligenciar as suas próprias necessidades, começa a aumentar as suas ambições (motivada pela novidade e pelos frutos que poderá ter) e começa a aceitar todo o tipo de tarefas que lhe são incutidas. Quando começa a não conseguir dar resposta, a frustração que sente atribui aos outros e nunca a si próprio, dando pretextos para, por exemplo, não ter cumprido prazos. Afasta-se do seu círculo social e tudo gira à volta da esfera laboral. Impacienta-se com tudo e tem pouca tolerância a críticas. Começa a sentir ansiedade e alguma sintomatologia depressiva que, eventualmente, o levará a um colapso mental e físico, não estando capaz de dar resposta a coisas simples. Portanto, sempre que haja mudanças de comportamento e respostas emocionais (irascibilidade, sintomas ansiosos, discurso depressivo), podem ser sinais de alarme para os outros.

 

A síndrome pode ser confundida, muitas vezes, com outros problemas emocionais. Assim, como identificar a síndrome de burnout?
Laura Alho – Convém explicar que o burnout é uma síndrome contextualizada ao local de trabalho, enquanto outros problemas emocionais podem advir de outras fontes e, inclusivamente, de psicopatologias. Por exemplo, o burnout é muito confundido com a depressão. Mas a depressão é uma doença psiquiátrica, com critérios de diagnóstico bem definidos. Embora existam características semelhantes entre elas, há três factores que caracterizam o burnout que são: a exaustão emocional (desgaste físico e emocional), a despersonalização (a pessoa torna-se mais “autómata” e menos responsiva socialmente, menos empática com os outros) e a ineficácia no trabalho, que conduz à desmotivação, falta de interesse. O que era antes um desafio, passou a ser um fardo.

 

A prevenção desempenha um papel crucial. Quais as melhores estratégias dos colaboradores para prevenir o problema?
Mauro Paulino – A prevenção não apenas desempenha um papel crucial, como está demonstrado que é mais eficaz e menos dispendioso investir na prevenção, do que reagir aos problemas quando já estão instalados. Por isso, os colaboradores devem procurar estar atentos às suas mudanças de humor e de comportamentos. E quer quem atribui a tarefa, quer quem a acolhe, serem realistas, para que a sua execução não exija uma alteração de tal forma significativa que comprometa o bem-estar do colaborador, ou um comprometimento, que muitas vezes é constante, do equilíbrio entre a vida familiar e profissional. Além disso, deverão ter uma rotina diversificada além do trabalho como, por exemplo, actividades que possam promover a descarga emocional e recarregar baterias. Pensar, escrever ou partilhar também sobre três coisas boas que aconteceram durante o dia pode também ajudar que a pessoa se sinta bem. Garantir as necessidades básicas e procurar autocuidar-se, como descansar, alimentar-se, fazer exercício, manter o contacto seguro (videochamadas, telefone) com familiares e amigos ou realizar actividades de lazer desempenhará um papel preventivo.

 

E os gestores, que medidas podem e devem eles tomar com o objectivo de minimizar o problema?
Mauro Paulino – Terem em mente mais do que nunca que estão a lidar com pessoas, cujas exigências individuais, familiares e comunitárias são constantes. Uma postura empática e de preocupação genuína, numa visão de win-win, contribuirá para um melhor clima organizacional, que terá repercussões positivas na produtividade e nos níveis de bem-estar do colaborador. Processos de liderança eficazes e de qualidade envolvem a antecipação, o planeamento e a operacionalização de cenários futuros, a curto e longo prazo. A própria organização da empresa e a distribuição de tarefas deve ser feita de forma a não sobrecarregar e a motivar os trabalhadores. Quando a estrutura organizacional o permite, a contratualização de serviços psicológicos que podem incluir linhas telefónicas de apoio, a disponibilização de consultas online e monotorização preventiva de sintomatologia psicopatológica, os benefícios serão ainda mais potenciados. Logo, a psicoeducação e a disponibilização de serviços de psicologia aos seus colaboradores podem ser duas vias de prevenção. Recorrer ao conhecimento e contributos da ciência psicológica será crucial. Uma actuação flexível e baseada em estratégias diferenciadoras contribuirá para a manutenção da produtividade e bem-estar da organização, dos próprios gestores, mas também dos trabalhadores. Trabalhadores motivados são mais produtivos e menos propensos a desenvolverem esta síndrome ou outras doenças.

 

Que intervenções devem ser tomadas nesta fase?
Mauro Paulino – Falando de saúde mental, estamos inevitavelmente a falar de intervenção psicológica e do contributo dos psicólogos. A intervenção psicológica no contexto de pandemia tem como principal objectivo intervir o mais precocemente possível, evitando, desde logo, que as pessoas desenvolvam respostas desadaptativas, impedir a cronificação de sintomas e sua possível evolução para perturbações psiquiátricas, como salvaguardamos no livro. As linhas telefónicas para cuidado psicológico e saúde emocional, as consultas online e a disponibilização e conteúdos psicoeducativos constituem iniciativas fundamentais de intervenção.

 

Assim que foi decretado o primeiro Estado de Emergência foi implementado o teletrabalho obrigatório. O mesmo continua a ser uma das medidas em vigor para interromper o avanço da pandemia. Será que veio ele para ficar?
Laura Alho – Para muitas empresas, o teletrabalho não constituiu nenhuma novidade. Embora a procura da palavra “teletrabalho” no Google tenha aumentado exponencialmente nas primeiras semanas da pandemia, sendo uma das temáticas mais procuradas online, o teletrabalho teve as suas origens na década 1970, devido à crise do petróleo. Para a maioria de nós é uma novidade e, pela quantidade de produção científica sobre o assunto, e pela necessidade de adaptação das empresas, para que possam sobreviver, parece-nos que o teletrabalho vai permitir que a economia não estagne completamente. Acreditamos que esta modalidade possa continuar para muitas empresas, mesmo depois da pandemia. Alerte-se ainda assim que, apesar de vários autores se concentrarem na definição que vincula o teletrabalho à ideia de trabalhar em casa e o cenário pandémico reforçar essa ideia, o teletrabalho envolve apenas trabalhar fora das instalações do empregador com o apoio das TICs e, portanto, pode ocorrer em vários locais (por exemplo, casa, jardim), usando diferentes tecnologias e com diferentes frequências.

 

Quais os factores que influenciam directamente o teletrabalho?
Laura Alho – É possível identificar quatro factores que influenciam o teletrabalho e que estão directamente relacionadas com a sua viabilidade e eficácia, concretamente factores individuais, factores de trabalho, factores organizacionais e factores familiares. Em traços gerais, a idade, o estado civil, o agregado familiar, a experiência prévia com esta modalidade de trabalho ou a novidade na sua implementação, as condições ou ausência delas na habitação, as características do serviço de internet, a funcionalidade da intranet ou plataforma do serviço, a capacidade de gestão de tempo, o ambiente familiar ou conjugal, entre outras. É por isso que o teletrabalho coloca desafios a vários níveis, nomeadamente às organizações, aos colaboradores (incluindo aqueles que sempre sonharam trabalhar em casa) e às suas famílias.

 

Qual foi o impacto inicial do home office nos colaboradores?
Laura Alho – Da nossa realidade, foi um misto de surpresa, de negação e desafio. Negação, porque não estávamos habituados a essa realidade e, de repente, vemo-nos a ter formações específicas para usarmos determinadas plataformas e softwares que nunca tinham sido usados antes. Há sempre uma certa relutância, sobretudo pelo tempo extra dedicado à aprendizagem. No entanto, depois da coisa se automatizar, e depois de se aceitar as inegáveis diferenças entre o trabalho presencial e o teletrabalho, o método acaba por fluir. Foram sendo também publicadas várias vantagens, algumas delas não muito consensuais, uma vez que maior autonomia de horário, por vezes, significa até trabalhar mais tempo. Ainda assim, enquanto vantagens frequentemente apontadas ao teletrabalho surge uma maior autonomia e flexibilização do trabalho por parte do trabalhador. A organização e a gestão de horários permitem que o trabalhador se mantenha motivado, aumentando a produtividade e evitando o desgaste emocional associado à pressão de horários impostos e às deslocações recorrentes e cansativas, sobretudo quando em hora de ponta. Por consequência, isto diminui os gastos das empresas em viagens e tem também um impacto positivo no ambiente, como se tem verificado. Trabalhar em casa também permite eliminar barreiras geográficas, porque se pode trabalhar para qualquer empresa, podendo esta estar sediada em qualquer parte do mundo. Mas não são só vantagens.

 

Pode o home office deteriorar a esfera social do individuo? Como e com que consequências?
Laura Alho – Pode deteriorar porque aumenta o distanciamento social entre as pessoas e diminui os contactos cara-a-cara, o que pode automatizar a pessoa. Ora, sendo nós seres sociais e, essencialmente, relacionais, vamos acabar por sentir a falta dessa comunicação e dos encontros, o que potencia um sentimento de solidão e de desmotivação, com repercussões em todas as esferas do indivíduo. É por isso que devemos fomentar a ideia de que trabalhar remotamente não significa trabalhar sozinho. Em momentos de vulnerabilidade, torna-se ainda mais importante trabalhar em equipa. Definir com colegas um plano de comunicação, relativamente à forma e frequência, tirando o máximo partido das ferramentas digitais disponíveis. A criatividade pode levar ao agendamento de um café ou almoço à distância.

 

Os problemas familiares podem acabar por interferir no trabalho e vice-versa. Como evitar esta situação?
Mauro Paulino – A melhor forma de evitar é ter uma boa organização familiar e uma boa divisão de horários e tarefas, sempre que possível. Outra sugestão é definir que a divisão ou divisões que são dedicadas ao trabalho sejam, de facto, para trabalhar. É crucial haver uma distinção entre as divisões de trabalho e as divisões comuns da família. A ser impossível, pelo menos uma boa gestão do tempo é fundamental. A investigação indica que os trabalhadores tendem a trabalhar mais horas quando trabalham remotamente, porque sentem que “devem” trabalhar mais horas para mostrar que estão efectivamente a trabalhar e a ser produtivos, acarretando riscos para a harmonia familiar. Por isso, é recomendável definir um horário de trabalho concreto e objectivos diários de realização de tarefas, bem como procurar respeitar o horário definido e não ter o computador ligado no final da jornada.

 

Poderá o home office levar a um aumento das desigualdades, nomeadamente de género?
Laura Alho – Vários estudos, alguns anteriores à pandemia, têm demonstrado a existência de desigualdades de género na modalidade do teletrabalho. Enquanto alguns estudos revelam que o perfil de um teletrabalhador é identificado como sendo do sexo feminino, por forma a passar mais tempo em casa a cuidar da família, outros estudos empíricos revelam que o perfil de teletrabalhadores é do sexo masculino, com alta qualificação e com cargos de responsabilidade na empresa. Estas diferenças levantam a discussão sobre algumas questões de género no setor laboral, que ainda são verificadas no presente. A economista do trabalho e professora Helena Lopes refere que o teletrabalho, sob o ponto de vista económico, é muito eficiente e reduz os custos das empresas, no entanto também faz com que as pessoas trabalhem mais horas e aumentem as desigualdades de género. A proposta da economista é um modelo misto, com componente presencial superior à não presencial. No entanto, a desigualdade manifesta no argumento de que as mulheres têm o papel social de mães e esposas é deveras prejudicial e incorreta. A verdade é que os estereótipos sociais podem ser ultrapassados se se atender a factos como as listas de mulheres influenciadoras e empreendedoras com negócios milionários. As desigualdades só poderão aumentar se as empresas tiverem um mindset antiquado e desadaptado da nova realidade.

 

Perante tudo isso, na sua opinião tem o teletrabalho mais vantagens do que desvantagens?
Laura Alho – Vai depender da forma como o teletrabalho é produzido, das características organizacionais e das dinâmicas familiares, no caso de existirem. Ainda que existam princípios gerais que possam e devam ser equacionados, não podemos esquecer as idiossincrasias da pessoa e do seu sistema familiar. De facto, as vantagens são diversas, como a flexibilidade de horários, rentabilização de tempo não havendo necessidade de deslocações, decréscimo dos custos associados às mesmas. No entanto, no caso de haver duas ou mais pessoas no mesmo agregado que tenham a mesma modalidade de trabalho, terão que ser definidas algumas regras para que possa haver harmonia e compromisso ao trabalho. Havendo crianças, o desafio é ainda maior.

 

Ao fim de tantos meses de pandemia o cansaço começa a instalar-se, seja físico seja emocional. O que fazer para o combater?
Mauro Paulino – A fadiga da pandemia é um fenómeno reconhecido pela Organização Mundial da Saúde e que mereceu uma publicação da Ordem dos Psicólogos Portugueses, que tem ao longo de todos estes meses disponibilizado vários recursos para profissionais e para a comunidade. Para evitar esse cansaço e combater essa fadiga, há um papel central por parte das entidades oficiais. A coerência e a forma como se comunica é fundamental. A desinformação ou a incongruência entre o que se diz e o que se faz coloca todos em risco. Os estudos demonstram que as consequências são claras, tais como os decisores podem perder a confiança do público, o que criará obstáculos na execução de futuras medidas de protecção da saúde pública, ou, a curto-prazo, levará a que pessoas ou entidades ignorem recomendações essenciais que podem salvar vidas. Além disso, a população corre o risco de procurar outras fontes, ficando desta forma mais vulnerável ao erro por informações ou recomendações inadequadas, podendo mesmo tomar decisões prejudiciais para a saúde. Num registo mais individual, deve-se fazer uma ponderação sobre o que pode não estar a funcionar tão bem e o que está realmente a esgotar-nos as energias: se a rotina, se as dinâmicas familiares inerentes, se os sentimentos em relação ao futuro, se a resistência em procurar ajuda especializada, ou outras coisas. As rotinas são importantes, mas devem incluir sempre actividades que permitam a abstração do trabalho e dos problemas e simplesmente o experimentar coisas positivas. A prática de actividade física, actividades de lazer, a exploração de novas actividades pode ajudar a suportar melhor o dia a dia e a prevenir o cansaço emocional. Contudo, quando não se consegue sair desse padrão emocional, o primeiro passo é procurar ajuda.

 

A situação parece estar a prolongar-se no tempo de uma forma que ninguém previu. Teremos capacidade de nos readaptar a uma nova normalidade?
Mauro Paulino – Acreditamos que a necessidade de mudança nos obriga a todos a uma adaptação célere, que pode ser mais ou menos forçada, mas que terá que acontecer para que as coisas fluam com alguma naturalidade. Claro que, como qualquer mudança, trata-se de um processo que pode causar ansiedade e incerteza face ao futuro, mas teremos seguramente a capacidade de aceitar uma nova normalidade, da mesma forma que aceitámos outras “normalidades” através de mudanças que ocorreram no passado. Esta realidade pandémica implica a capacidade de nos adaptarmos e mudar o nosso comportamento no quotidiano, com a certeza de que isto vai passar apesar da demora. Ou seja, implica resiliência, a qual é dinâmica e se desenvolve ao longo da nossa vida. Não somos sempre resilientes, nem estamos a falar de uma característica reservada aos super-heróis. Quanto melhor compreendermos esta pandemia, menos difícil será enfrentá-la.

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