Entrevista: Filipa Alves, Ordem da Trindade: «Há falta de recursos humanos na área da saúde, evidenciando a pressão sobre os enfermeiros»

Celebra-se hoje, dia 12 de Maio, o Dia Internacional do Enfermeiro. Sector da saúde reconhecido como essencial, a enfermagem tem problemas estruturais. A pandemia Covid-19 exacerbou alguns problemas, mas também teve impactos positivos, como a crescente digitalização e as respostas personalizadas. Falámos com Filipa Alves, directora técnica da Unidade de Cuidados Continuados e Estrutura Residencial Para Idosos da Ordem da Trindade, para perceber estas mudanças.

Por Sandra M. Pinto

A sustentabilidade dos serviços, em especial dos sistemas de saúde tantas vezes sobrecarregados, tem estado na ordem do dia. Políticos, gestores e outros players têm apontado causas do problema e possíveis soluções. Essenciais aos sector, os enfermeiros têm vindo a enfrentar desafios que se agravaram com a pandemia.

Há um antes e depois da pandemia de COVID-19 para os enfermeiros?
A pandemia trouxe inúmeros desafios para os enfermeiros. Apesar de ter sido necessário reformular as respostas dos sistemas de saúde, dada a pressão nos vários serviços e nas diferentes valências dos cuidados que são prestados, o planeamento foi escasso, sobretudo nas primeiras vagas. Isso deveu-se ao contexto de desconhecimento, e à necessidade de reagir rapidamente.
Do ponto de vista prático, essa situação levou a que muitos profissionais se consciencializassem da necessidade de desenvolver uma prática centrada nas pessoas. Além disso, foi verificada uma maior carga burocrática, à medida que a complexidade dos doentes também aumentava e o equilíbrio entre vida profissional e pessoal se tornava difícil de gerir. Todos nós temos presentes histórias de enfermeiros isolados das suas famílias pelos receios de contágio.
A pandemia, sem dúvida, agudizou alguns dos problemas do sector. Contudo, não podemos deixar de referir um conjunto de boas práticas que foram sendo desenvolvidas e aperfeiçoadas, em especial no que diz respeito ao papel da tecnologia, que saiu reforçado, tendo encurtado distâncias, não só a nível social, mas também nos cuidados de saúde caminhando para a tão necessária digitalização.

A crescente digitalização é um desses casos?
Sim, a digitalização do sector abriu novas oportunidades, com consultas e exames à distância, acompanhamento até mais regular, pois o tempo dedicado a cada doente também pode e deve ser maximizado.
Ao falarmos de tecnologia ao serviço da saúde, temos de ter em conta a questão do acesso equitativo e universal. Só assim será possível chegar a todos, em especial aos grupos mais vulneráveis e com menor acesso a informação, designadamente idosos e pessoas em situação de maior exclusão. Desta forma, o desafio da literacia tecnológica terá de ser respondido, exigindo-se mais investimento para formação e adaptação às novas necessidades, seja para os profissionais, seja para os utentes.
Paralelamente, é importante apostar na interoperabilidade entre os sistemas. As várias unidades de saúde têm de comunicar entre si. Com a pandemia, assistimos a esse desenvolvimento através de plataformas comuns que permitiam um acesso facilitado aos dados sobre vacinação, resultados dos testes COVID-19 e disponibilidade de camas para internamento. A partilha de informação também pode ser aprofundada, numa perspetiva de longo prazo e centrada nas famílias. Por exemplo, poderá ser viável construir o historial clínico de milhões de pessoas, a partir de certos padrões tendo por base a melhor evidência.

Hoje, que prioridades devem ser dadas na formação dos enfermeiros?
A área da saúde, conforme ficou provado com a pandemia, está em constante desenvolvimento e necessita de novas respostas. Desta forma, a actualização profissional dos enfermeiros é uma necessidade cada vez mais evidente.
Uma das prioridades será no sentido de uma maior literacia digital, permitindo assim que os sistemas evoluam no sentido apontado anteriormente. Esta área está integrada naquilo que deve ser a aprendizagem ao longo da vida, que terá de partir do pressuposto de que um percurso sólido é feito da experiência no terreno, mas também da adequação dos conhecimentos e das competências do passado às novas necessidades e aos recursos disponíveis. É essencial criar condições para a qualificação profissional neste sector.

Outra área que não pode ser descurada é a dimensão emocional. Esta é indissociável da profissão?
A dimensão emocional é uma das principais razões pelas quais um enfermeiro escolhe esta carreira e este facto acaba por ser uma poderosa ferramenta de trabalho. Na generalidade, permite elevar a qualidade dos cuidados prestados.
Se pensarmos bem, a enfermagem não é mais do que dedicar atenção especial a alguém, estar presente e cuidar. Esse sentimento incute segurança ao utente, mas também melhora a satisfação do profissional com o seu trabalho.

Apesar de serem reconhecidos pelo trabalho, as condições dos enfermeiros deveriam ser melhores?
Desde logo, há falta de recursos humanos na área da saúde, evidenciando a pressão sobre os enfermeiros. Esta realidade é conhecida em Portugal, mas corresponde a uma tendência global. A Organização Mundial da Saúde indica que deveriam existir mais 5,9 milhões de enfermeiros em todo o mundo.
Sem uma força de trabalho completa para fazer face às necessidades, as horas a mais são uma prática comum, às quais se juntam os salários pouco atractivos e o acesso à reforma. Com estas condições, os profissionais sentem necessidade de procurar outras soluções.
Um estudo nacional evidencia que 65% dos enfermeiros portugueses já equacionou mudar de profissão. Tratando-se de uma profissão em que a orientação vocacional é tão importante para o desempenho dos profissionais e consequentemente a qualidade de cuidados importa refletir sobre este número.

Como é que a profissão se pode tornar mais atractiva, evitando a fuga de profissionais para o estrangeiro?
Através da valorização das carreiras. Muitos dos enfermeiros recém-formados optam por sair de Portugal porque conseguem ter salários competitivos e um ambiente de maior reconhecimento através de melhores condições de trabalho e investimento na capacitação do profissional ao longo da sua carreira. De qualquer forma, vale a pena sublinhar que isso é possível porque a qualidade do ensino e da preparação dos nossos profissionais é inegável. Temos excelentes profissionais e é com pena que muitos decidem partir.

Nos cuidados a pessoas idosas, que estratégias podem ser adoptadas para que estas tenham mais qualidade de vida e os sistemas de saúde sejam mais sustentáveis?
O envelhecimento populacional é um dos grandes desafios das nossas sociedades e, consequentemente, dos sistemas de saúde. Em primeiro lugar, a institucionalização deve ser a última das respostas a ser dada às pessoas idosas porque desenraizá-las das suas comunidades tem um elevado custo, do ponto de vista económico, social e da própria saúde. No caso de ser necessário actuar, é preciso implementar novos conceitos, como aldeias sociais ou aldeias seniores – ofertas residenciais para idosos, em que se preserva a sua independência, sempre que possível, e que incluem serviços que podem ir desde saúde, alimentação, até bem-estar e actividades desportivas.
Por outro lado, Portugal apresenta uma das maiores taxas de cuidados domiciliários informais da Europa e estes são, essencialmente, assegurados por familiares, sem qualquer formação e, por vezes, sem capacidade física ou mental para responder da melhor forma. A oferta de cuidados profissionais, individualizados e humanizados em casa, tendo por base as necessidades de cada um, permite optimizar as respostas. As equipas especializadas no terreno conseguem identificar e acompanhar a evolução das condições das pessoas, como vivem e quais são as suas necessidades. Quando falamos deste acompanhamento no terreno, é de considerar o acompanhamento e monitorização remota por profissionais especializados. Em ambiente hospitalar ou numa outra unidade, seria impossível averiguar isso e, sobretudo, actuar preventivamente.

Tanto o contexto de pandemia, como o trabalho específico com idosos têm consequências para a saúde mental dos profissionais de saúde. Os mecanismos de resposta que existem deveriam ser reforçados?
Vários estudos apontam que a saúde mental dos enfermeiros sofreu um impacto durante a pandemia, com variações na qualidade do sono, sintomas depressivos, ansiedade e stress. Neste momento, vale a pena avaliar se a presença de factores de risco potenciais influenciou esses sintomas ao longo do tempo.
O trabalho com idosos é igualmente desgastante, não só fisicamente, mas também psicologicamente. Portanto, há várias situações enfrentadas pelos enfermeiros e demais profissionais de saúde que têm de ser tidas em conta.
Na Ordem da Trindade, temos uma máxima: “cuidar de quem cuida”. Sem a segurança, a motivação e o envolvimento de todos os trabalhadores, não podemos prestar bons cuidados nem garantir a confiança dos nossos utentes.

 

 

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