Entrevista a Nuno Garcia, GesConsult: «O sector da construção precisa de mais 80 mil trabalhadores, mas não consegue contratar mão-de-obra qualificada»

De acordo com dados recentes divulgados pelo Manpower Group, o sector da construção é o mais afectado pela falta de trabalhadores, com 89% das empresas a afirmar não conseguir contratar mão-de-obra qualificada. Para perceber de que forma esta realidade se reflete juntos das empresas do sector, conversámos com Nuno Garcia, director-geral da GesConsult.

Por Sandra M. Pinto

Uma das consequências apontadas desde logo assenta na dificuldade de cumprimento nos prazos de concretização das obras e na própria execução do PRR, uma das maiores oportunidades recentes a que o país teve acesso para a reabilitação em larga escala.

Quando nasceu a GesConsult e quantos colaboradores têm actualmente?
A GesConsult nasceu em 2014, com o intuito de se afirmar como um novo actor no sector da construção, capaz de prestar serviços de engenharia e imobiliário, com confiança, proximidade e rigor. Actualmente, a equipa é composta por 12 pessoas, maioritariamente gestoras de projecto.

Qual a área de actividade da empresa e principais pilares da sua actuação?
A GesConsult é uma empresa de gestão e fiscalização de obras, composta por uma equipa de peritos experientes no sector. Temos quatro áreas de actuação: gestão e fiscalização de obras, coordenação de segurança em obra, avaliação imobiliária e, para projectos “chave na mão”, fazemos também estudos e projecto. Acreditamos que o diálogo entre os diferentes intervenientes de uma obra é fundamental para obtermos resultados melhores e para termos um sector da construção mais profissional – gerimos o nosso dia-a-dia focados nesta premissa.
Trabalhamos com o cliente particular, que reconhece a importância de uma gestão profissional de obra, para poupar tempo e custos mas, sobretudo, com clientes empresariais, na área da construção habitacional, de escritórios, hotelaria e sector comercial.
Hoje, a GesConsult encontra-se envolvida em grandes projectos, quer seja na construção de um novo hotel no centro de Lisboa, quer seja na remodelação de grandes espaços comerciais. Ser o parceiro de referência para clientes que querem investir e crescer com eles é, sem dúvida, o nosso grande objetivo para o futuro.

Tendo em conta o sector onde actuam de que forma viveram a pandemia?
Os tempos de pandemia, que ainda persiste, foram muito desafiantes, de grande incerteza e com consequências que, mesmo ao dia de hoje, não conseguimos ainda ter a sua dimensão por completo.
Neste período difícil, destaco a capacidade de adaptação que permitiu que os projectos não parassem. A construção é uma área que exige, por si só, condições de segurança e saúde específicas e, quando fomos confrontados com a pandemia, todas as normas tiveram de ser reforçadas ao máximo. Relembro que o sector da construção foi dos poucos que nunca parou, reforçando a sua posição como um dos principais pilares da economia.
Se áreas de negócio como as plataformas logísticas e o residencial de luxo tiveram na pandemia uma oportunidade de crescimento, muitos outros investimentos, negócios e projectos foram adiados ou mesmo cancelados, principalmente na fase inicial da pandemia. Sectores como a restauração e a hotelaria passaram por uma fase muito crítica, pelo que estas circunstâncias, entre outras, afectaram de forma directa a construção. Felizmente, com a capacidade de adaptação de todos os actores a esta “nova normalidade”, foi possível superar esta fase difícil sem grandes quebras de produção e retomar muitos dos projetos que tinham sido colocados em stand-bye.
O regresso a uma dinâmica de níveis de pré-pandemia trouxe desafios novos, como a escassez de matérias-primas e a escalada de preços, condicionantes que, ao dia de hoje, ainda não se encontram resolvidas. Mas o desafio foi superado com sucesso, e assim continua a ser, através de uma adaptação contínua dos players envolvidos.

Nestes dois anos que desafios se colocaram à vossa actividade e de que forma os ultrapassaram?
Destaco a resiliência do sector, esta capacidade de adaptação a todos os níveis para ultrapassarmos os desafios e obstáculos que surgiram. A adaptação a que os estaleiros de obra procederam em tempo recorde, para cumprirem com as exigências de controlo
da pandemia, a aceleração da digitalização, quer seja na possibilidade das visitas virtuais, quer seja pela transformação dos processos de licenciamento que passaram a ser feitos quase a 100% de forma digital, são exemplos de situações que permitiram criar ferramentas para que o sector não parasse.
Existiram também novas oportunidades, no sector da logística, que teve um boom enorme durante a pandemia, e em novos investimentos feitos por “nómadas digitais”, que encontraram em Portugal um local óptimo para investirem e residirem.
Mas o overview geral não é negativo, pois, mesmo com todos os entraves, a construção conseguiu mostrar o seu dinamismo e resiliência, provando a papel especial que tem no crescimento económico do país. Novamente, a flexibilidade e a capacidade de adaptação foram decisivas.

Segundo dados do Manpower Group, o sector da construção é o mais afectado pela falta de trabalhadores. Esta é uma realidade que se agravou com a pandemia?
Sim, sem dúvida. A construção sofre, há já muito tempo, de um problema grave de falta de mão-de-obra e, durante os dois últimos anos, a situação piorou.
Ao que tudo indica, o sector precisa de mais 80 mil trabalhadores do que aqueles que hoje tem, com especial foco nos encarregados de obra, eletricistas e carpinteiros. Até 2020, a solução passava por se recrutarem trabalhadores do estrangeiro, que vinham para Portugal colmatar as vagas. Porém, com a pandemia, muitas pessoas regressaram aos seus países, sendo que também existiram muitas restrições às viagens e deslocações de recursos, e as vagas ficaram por preencher uma vez mais.

A Manpower Group refere ainda que 89% das empresas afirma não conseguir contratar mão-de-obra qualificada. Na sua opinião a que deve essa situação?
As baixas remunerações que são praticas no sector são um dos factores principais de não-atractividade. Vários trabalhadores qualificados optam por emigrar para países que oferecem salários melhores, criando um hiato cada vez maior entre a procura e a oferta de emprego no sector em Portugal. É essencial rever este desequilíbrio e criar condições mais alinhadas com aquilo que o mercado pede e precisa. Caso contrário, vamos continuar, ano após ano, a perder capacidade de resposta a projectos.
A par deste problema, existem outros. As condições que as entidades oferecem devem ir além da remuneração mensal e incluir formação. É essencial qualificar regularmente, actualizar os recursos com as técnicas de vanguarda, adequadas à evolução dos processos construtivos, de forma a valorizarmos o seu papel. Devem, também, ser asseguradas condições de segurança e saúde no trabalho, para que os
trabalhadores se sintam protegidos – há muito trabalho a fazer nesse aspecto.

De que forma é que essa situação se reflete no dia-a-dia das empresas?
O que temos visto é que a escassez de mão-de-obra está associada, também, à falta de matéria-prima, o que faz com que os custos da construção estejam constantemente a sofrer variações. Juntos, estes factores estão a colocar vários projectos em stand-by, porque é, simplesmente, impossível dar resposta a tudo.

Pode ela influenciar a execução do PRR? Se sim, como?
Pode e vai influenciar. Sem pessoas, não iremos conseguir dar seguimento aos vários projectos de cnstrução a alavancar com os incentivos do PRR. Portugal vai estar a receber os fundos europeus até 2026, mas ter o dinheiro não é suficiente.
Relembro que temos falta de cerca de 80 mil trabalhadores. Carpinteiros, eletricistas e pedreiros são apenas alguns dos perfis mais procurados, sendo que as vagas por preencher representam, essencialmente, funções muito específicas e que exigem uma formação própria. Se não tivermos grupos de trabalho técnico especializados em diferentes áreas da construção, os projectos não avançam.

Na sua opinião o que é que está ou pode estar na base da dificuldade de retenção de trabalhadores neste sector?
A remuneração é o factor mais crítico. Adicionalmente, sabemos que quando os trabalhadores não se sentem valorizados, procuram condições melhores, o que pode até implicar emigrarem. Dentro do capítulo valorização, considero a formação contínua e
a especialização aspetos essenciais e que fazem a diferença na qualidade da nossa mão-de-obra.

Que medidas devem ser tomadas pelos players para mudar a situação?
Os players devem, em conjunto com o Governo, definir soluções para combater todos estes desafios que atrasam a dinâmica da construção. É importante que as associações do sector continuem a debater os entraves que o sector identifica como prementes, para que as entidades governamentais sejam alertadas para o contexto e serem definidas medidas para, em conjunto, ultrapassarmos o impasse.

Representando o sector de construção e obras públicas um dos maiores sectores da economia nacional, acha que devia existir uma maior atenção por parte das entidades públicas relativamente à escassez de recursos humanos?
Não tenho dúvidas que sim. A construção tem vindo a ser um dos sectores que mais tem potenciado a economia portuguesa, especialmente em momentos de crise. Basta relembrar o que se passou durante a pandemia: a nossa actividade nunca parou. É um sector que é desafiado, de forma constante, mas que, mesmo assim, consegue continuar a responder. Por isso, há uma importância muito grande em valorizar os trabalhadores técnicos, proporcionando-lhes condições justas, de salário, formação e segurança no trabalho. As entidades têm de estar atentas aos problemas que a falta de pessoas está a trazer e arranjarem soluções, com urgência.

Relativamente a 2022 existe a perspectiva efectiva de crescimento do sector da construção?
Sim, as previsões apontam nesse sentido. No início do ano, os dados avançados pelo Banco de Portugal deram conta de que o sector deveria crescer entre 4% a 7%, em 2022. De facto, até agora, tudo indica a concretização desses números. Os dados do INE divulgados em maio revelam que o índice de produção na construção cresceu 4,1% e, no terreno, também é isso que se sente. Acredito que 2022 é um ano promissor para à construção, especialmente se os problemas de escassez de mão-de-obra e material forem atenuados.

Com a vossa experiência, que desafios acrescidos se colocam ao sector em consequência da guerra na Ucrânia?
O sector já estava a passar por um momento desafiante. A pandemia veio trazer grandes obstáculos aos players, bem como a inflação de preços. Com a guerra, tudo foi agravado, no fundo. Os custos da matéria-prima e da energia aumentaram, a mão-de-obra encolheu e, em relação a investimentos, dada a incerteza que se vive, houve também um abrandamento.

Que conselhos deixaria aos empresários do sector com vista a cativar e a reter o bom talento que faz falta ao sector?
É importante que se criem mecanismos que tornem o sector mais atractivo, não só do ponto de vista do trabalho em si – o que é um desafio -, como também numa perspectiva de evolução de carreira.
Ao nível da atracção, e numa altura em que temos um número grande de inscritos nos Centros de Desemprego, é importante que os empresários mostrem as condições que as suas empresas oferecem. Isto pode ser feito através, por exemplo, de um alinhamento entre os departamentos de Recursos Humanos e de Comunicação das empresas, de forma a criarem uma estratégia que alcance possíveis candidatos aos trabalhos, tanto a nível nacional, como a nível internacional.
Do ponto de vista da retenção, devem assegurar-se todas as condições que foram avançadas na fase de atração. Caso contrário, vamos continuar a sofrer com a falta de recursos no sector.

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