
Já agora que vamos rever a Constituição…
Por Luís Fábrica, consultor da Abreu Advogados
Há coisas que nascem tortas e depois dificilmente se endireitam.
Mas a nossa Constituição, que nasceu bem torta, acabou por se ir endireitando – e já lá vão quase 50 anos de vigência ininterrupta, o que não é coisa de somenos para um texto elogiado por poucos e mal-amado por muitos.
Originada numa revolução e escrita debaixo de fogo, reproduzindo os equilíbrios possíveis entre os antagonistas, também a Constituição de 1976 saiu como saiu, por vezes conciliando, por vezes apenas justapondo, as agendas das várias forças políticas.
O texto é por isso longo e com muitas partes fastidiosas. Mas o conteúdo foi melhorando, e muito, ao longo das décadas seguintes. Nalguns casos, por força de revisões constitucionais; noutros casos, por força do trabalho do Tribunal Constitucional e da restante jurisprudência.
Ficou o que importava. Ficaram os direitos fundamentais, ou parte deles, a organização do poder político e o quadro institucional do Estado. Do restante articulado, não há muito que verdadeiramente defina o quotidiano das pessoas e do País. Se fosse revogada, por exemplo, a larga maioria dos artigos sobre organização económica, ninguém daria conta. Idem, para o preâmbulo, cuja discussão é por estes dias um caso típico de cera a mais para tão ruim defunto.
A nossa Constituição, nenhuma constituição, alguma vez será perfeita. Então, porquê revê-la agora de novo? E em que aspectos?
Os projectos de revisão não foram ainda anunciados. Mas se forem próximos dos apresentados na legislatura que terminou em 2024, não há motivo para grandes entusiasmos.
É verdade que algumas alterações propostas são necessárias ou, pelo menos, contam com consenso alargado. Será o caso da permissão de medidas de confinamento obrigatório em situações de doença contagiosa grave, que a pandemia mostrou serem indispensáveis; será o caso do acesso dos serviços de informações aos chamados metadados, numa época de acrescidas preocupações com a segurança; e será talvez o caso da extinção do cargo de representante da república nas regiões autónomas, passando as competências para o Presidente da República.
Outras propostas de alteração são fracturantes, para poupar na adjectivação, e não obterão decerto a necessária maioria de 2/3 (prisão perpétua, castração química).
Quanto ao resto das propostas de alteração… não adianta, nem atrasa. É uma mescla de lugares-comuns e de modismos sazonais, que pretende enxertar na lei fundamental do País a “sustentabilidade”, a “economia circular”, a “pegada ecológica”, a “luta contra as alterações climáticas”, a “identidade de género” – e mais um longo etc.
A única lógica discernível neste arrazoado parece ser a do “já agora”: “já agora que vamos a rever a Constituição, porque não pomos também isto?”
Um dos defeitos congénitos da nossa Constituição (e de outras) é espraiar-se por proclamações bem-intencionadas, mas de escassa ou nula densidade normativa. Qual é a vantagem de sobrecarregá-la agora com uma nova remessa de frases virtuosas, destinadas à completa irrelevância prática?
A Constituição serve para organizar o Estado e para garantir os direitos fundamentais necessários à convivência de todos. Para discursos motivacionais sobre futuros mais do que perfeitos existem os programas da tarde.
Ou, como dizem, os americanos, if it ain’t broken, don’t fix it.