O futuro digital é essencialmente “humano”

O título deste artigo representa um paradoxo, porém, procurarei demonstrar o contrário.

Por Paulo Veiga, CEO da EAD – Empresa de Arquivo de Documentação

 

A centralidade das pessoas na transição digital é essencial para a nossa própria entidade enquanto sociedade desenvolvida. Deve, por isso, ser efectuada com dinâmica, mas com cuidados redobrados, pois está e vai mudar a forma como nos relacionamos social e profissionalmente.

A verdade é que o discurso mais fácil, hoje em dia, é dizer que as coisas não estão fáceis, tudo é uma dificuldade e não temos possibilidades de mudar, aceitando o destino que se nos apresenta como definitivo. Nada mais errado. Faça-se uma retrospectiva do quanto evoluímos desde a era paleolítica até aos dias de hoje, por exemplo. A única constante que conhecemos na vida, seja pessoal, social ou profissional, é a mudança.

Nos negócios, é o axioma máximo, estamos em constante transformação. Muitas coisas que faziam sentido no passado, hoje tornaram-se obsoletas. A nossa visão de mundo actual, provavelmente, será diferente no futuro. Gostos que se alteram, desejos que se intensificam, sentimentos que surgem, talentos que são aprimorados: encontros, desencontros, amores, dissabores. Relações que se fortalecem e se transformam diante das mudanças, outras que não se sustentam diante dessa troca de estações.

Seguir o fluxo da vida, assim como a água de um rio que não pode ser contida, mas sim acompanhada, é o grande propósito. Diante do inevitável inverno, não podemos entregar-nos perante as dificuldades da vida: abandonos, ausências, carências, doenças, falências, traições, ilusões. Desistir nunca é a solução. Compreender a necessidade dessa estação é o caminho a percorrer para que coisas novas possam nascer e desenvolver-se. Se hoje estamos envoltos ao frio do Inverno com todas as suas consequências, devemos buscar a força interna para superá-las, pois a primavera estará logo ali com todas as suas cores e perfumes, o afectuoso calor do verão aproxima-se, o introspectivo e renovador Outono está a caminho.

Dito isto, chegamos ao momento actual onde, inexoravelmente, o “digital” faz parte das nossas vidas quer profissionais, quer sociais. O digital está aí, forte, consistente, acessível, mas, ao mesmo tempo, com riscos novos, muitos deles ainda não conhecidos da generalidade das pessoas. Nas empresas, negócio e digital já são sinónimos e nas relações com o Estado é um dos três eixos de desenvolvimento do Plano de Resiliência e Recuperação.

Cada vez mais, as empresas procuram incorporar as tecnologias mais recentes – muitas vezes de outros sectores – para alterar a experiência end-to-end junto dos seus clientes e colaboradores. Plataformas colaborativas, criação de marketplaces, são exemplos disso mesmo.

Para este sucesso digitalmente responsável, as pessoas têm de ser a centralidade deste novo paradigma. Mais do que uma transformação digital dos negócios é necessária uma transição digital das nossas pessoas. Isto será fundamental para que este novo paradigma permita que o ser humano continue a marcar a diferença e a liderar o processo de transição.

Nesta matéria, urge aumentar a literacia digital, isto é algo que acontece, como se pode constatar no relatório Digital 2021 Portugal, que destacam os crescimentos em 2020, na óptica do utilizador, mais concretamente com os seguintes dados: Há mais 62 mil utilizadores de Internet, no total são 8,58 milhões de internautas; cada português passou cerca de 7h20 na Internet por dia (média), diria que o confinamento contribuiu decisivamente para tal; cerca de 80,8% dos internautas visitaram uma loja online em janeiro de 2021, enquanto 69,1% compraram um produto online; 5,11 milhões de portugueses fizeram compras na Internet; cada utilizador gastou, em média, 675 euros em 2020.

Estará esta transição digital isenta de riscos? Será este novo mundo perfeito? Não e não!

Nos últimos dez anos, as tecnologias da informação e comunicação, vulgo, TIC, mudaram o contexto social e deixam já a certeza de que o futuro será sempre mais tecnológico. Geramos, hoje, mais informação, conteúdos e conhecimento do que alguma vez imaginámos, as redes de comunicação assentes na internet facilitam e democratizam o conhecimento, o mundo computacional está, já hoje, omnipresente.

Os perigos de não abraçar correctamente esta transição são muitos, reais e unicamente debatidos em pequenos fóruns, tal é o deslumbramento a que assistimos. Assim, tenho de deixar aqui alguns exemplos para reflexão.

Já pensaram nos riscos para os nossos direitos, liberdades e garantias que arduamente fomos conquistando no mundo “físico”, só desde o final do séc. XIX?

Os exemplos são fáceis e abundantes, a saber, a videovigilância, o reconhecimento facial com os erros que podem induzir por causa dos algoritmos associados; a condição autónoma, pensem em dois carros, que para evitar um acidente com um terceiro, só tem como solução: um dos seus ocupantes morrer! Vamos deixar esta decisão nas mãos de um programador?

Não podem ser as pessoas da tecnologia a decidir, contam-se até histórias de jovens programadores que dizem: paguem o que quero e eu programo o que pedem!

Existem 20 milhões de trabalhadores das tecnologias da informação e comunicação na Europa, pelo que urge formar os mesmos nas questões da ética e moral. Não pode ser, temos de ser nós, a sociedade civil, a puxar este tipo de problemas e procurar soluções.

Em sentido inverso, vejam o exemplo do escândalo da Cambridge Analytica que aconteceu porque as pessoas das ciências sociais perceberam que podiam usar a tecnologia em seu favor. E o caso da suspensão da conta de Twitter de Donald Trump. Vamos deixar esta empresa decidir? Não deveriam ser os tribunais ou a sociedade civil?

Perceberam agora o paradoxo inicial? No mundo físico lutamos por direitos, deveres e liberdades, agora estamos a deitar tudo a perder no mundo digital. Há aqui uma obrigação moral e ética, por respeito aos nossos filhos e envolver todos nesta missão, garantir que o mundo digital nos serve em vez de se servir de nós.

A pandemia mostrou que há um fosso e pobreza digital nas pessoas, empresas e países. Todos nós temos de colocar em discussão pública estes temas disruptivos, sob pena de hipotecar a oportunidade de melhorar o futuro para as novas gerações.

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