O peso da mentalidade do “fica mal” (sair a horas, ter horários flexíveis…)

Em muitos anos de trabalho em multinacionais e de partilha com colegas de outros países, há coisas que são muito particulares de Portugal. E o ar de espanto quando tento explicar certas coisas aos meus colegas estrangeiros tem-me acompanhado. Uma delas é esta coisa do “fica mal”.

Por Sandra Evaristo, HR manager, Tyson Foods

 

Reconheço que existem também muitos e bons exemplos de organizações saudáveis e que contrariam estas tendências, o que é encorajador. Mas ainda há muito a fazer para mudar este paradigma do “fica mal”.

1 – Fica mal sair a horas

Com muito trabalho ou sem trabalho, esta cultura está tão enraizada, que os primeiros a sair precisam de uma dose adicional de coragem para se levantarem das suas secretárias e se despedirem dos colegas.

Partilho um episódio pessoal: há alguns anos, quando fazia longas horas no escritório todos os dias, tive uma conversa interessante com uma colega de outro país. Estávamos ambas com um volume de trabalho muito elevado, impossível de realizar no nosso horário de trabalho, e perguntei-lhe: “como é que consegues sair às 17h?”, ao que ela me respondeu: “é o meu horário”.

Com a sua resposta e o seu não verbal, o que ficou subentendido foi que não lhe passou sequer pela cabeça tentar resolver o problema com mais horas de trabalho. Interessante, não é?

 

2 – Fica mal fazer home office

Mesmo depois da Covid19, continua a exigir-se aos colaboradores que façam longas viagens para o escritório, para depois ficarem o dia inteiro em conferências telefónicas com colegas de outros países.

Também já o fiz. Lembro-me de sair do meu gabinete ao final da tarde, e de me cruzar com alguns colegas surpresos: “estás cá hoje?, mas estiveste cá o dia todo?”.

A Covid19 trouxe-nos algumas aprendizagens neste aspecto, mas lamentavelmentealgumas empresas já retrocederam e voltaram a exigir 100% trabalho presencial.

 

3 – Fica mal gozar os dias/meses opcionais licença parental

Já vi recém papás muito desconfortáveis com os dias opcionais de paternidade e até mesmo dispostos a abdicarem dos dias por estarem na empresa há pouco tempo. E também os vi muito felizes com a minha abertura e incentivo para gozarem todos os dias a que tinham direito e para aproveitarem o tempo com o novo elemento da família.

Se uma empresa valoriza o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, o bem-estar e a família, aceitar e incentivar esses direitos é o mínimo.

Também não é muito comum o gozo pelas mulheres dos três meses de licença parental alargada. Se em alguns casos o aspecto financeiro não o permite, acredito que por vezes não é essa a razão, nem a falta de vontade, mas sim o tal “fica mal”. Uma pena que assim seja, todos perdem.

 

4 – Também fica mal ter horários flexíveis, horários reduzidos ou trabalhar em part time

É difícil ser bem visto ao sair mais cedo para ir ver o jogo de futebol do filho, ou ao reduzir o horário para desfrutar de tempo pessoal e/ou com a família.

 

No fundo, o que se entende por tudo isto é que, em Portugal, sobrevive uma cultura em que é mal visto admitir que o trabalho não é a única prioridade. Fica também mal visto exigir melhores condições e salários dignos. Mas com todo este “fica mal” o que se perde é precioso: tempo, qualidade de vida, saúde e bem-estar. E perde-se também atractividade do nosso mercado de trabalho, já de si tão frágil.

É hora de desafiarmos este paradigma. E isto, na verdade, está nas mãos de todos nós. Que tal mudarmos o “fica mal” por um belo e sonoro “que se lixe o fica mal”?

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