Os acidentes de trabalho como facilitadores do processo de aprendizagem organizacional

Todos os dias vemos as consequências dos acidentes de trabalho espelhadas nas múltiplas realidades organizacionais, com diferentes níveis de impacto nas vidas das suas vítimas.

Por Daniela Lima, Managing Partner na SWAIFOR, Safety Expert, PhD em Comportamento Organizacional e Professora Convidada no IPS – Instituto Politécnico de Setúbal.

Estas ocorrências nefastas e indesejáveis traduzem-se numa factura muito elevada a pagar pelos trabalhadores, pelos colegas, pelas organizações, pelas seguradoras, pelas famílias das vítimas e, em última análise, pela sociedade de forma global. Sendo os acidentes de trabalho ocorrências expetáveis e prováveis de acontecer em contexto organizacional, é fundamental compreender a sua dimensão e extensão do fenómeno em análise.

Neste sentido, é possível afirmar, com base nas estatísticas internacionais e nacionais, que os acidentes de trabalho continuam a ser uma constante no mercado de trabalho português. Os dados oficiais publicados pela Eurostat relativos a 2020 posicionam Portugal no sexto lugar do ranking face aos restantes estados-membros com uma taxa de 3,2%. Os países europeus que maiores taxas de acidentes no trabalho registam são a Finlândia (9,6%), a Suécia (5,0%) e França (4,6), concomitantemente os países que menores taxas de acidentes assinalam são a Bulgária (0,7%), a Hungria (0,7%) e a Lituânia (0,5%), sendo que a média da União Europeia se situa nos 2,4%. Estes dados publicados pela Eurostat refletem que Portugal regista um recuo face aos anos anteriores (e.g: 2013 com 4%), mas acautela que pode ser explicado pela interrupção da actividade económica imposta pela pandemia do COVID-19. As estatísticas nacionais disponibilizadas pela Autoridade das Condições de Trabalho (ACT) relativas ao mesmo período de tempo refletem a mesma tendência de excesso de ocorrências reportadas oficialmente à ACT com 121 acidentes de trabalho mortais e 340 acidentes de trabalho graves.

Estes números exigem uma tomada de posição face às políticas de segurança adoptadas a nível nacional em matéria de prevenção, através do controlo do desempenho das empresas e organizações em Portugal. Esta análise à postura e ao desempenho das múltiplas empresas e organizações públicas e privadas deve conduzir a um maior investimento na procura das causas que estão na origem dos acidentes de trabalho. Tal postura resultaria numa estratégia de investimento em segurança a curto prazo, através da introdução das medidas de melhoria que resultariam das investigações e análises de acidentes de trabalho. Mas, para tal é necessário fazer um investimento no treino dos profissionais de segurança nas várias matérias de segurança e, em concreto, incentivar o treino dos especialistas de segurança na investigação e análise de acidentes de trabalho. Dessa forma, é possível que as organizações evoluam no sentido de reduzir as ocorrências de acidentes, desenvolver uma cultura de segurança e a integrar as aprendizagens organizacionais na sua estratégia de segurança no trabalho.

Urge a necessidade de promover o diálogo estreito entre os vários intervenientes em contexto organizacional, nomeadamente os órgãos de gestão, as chefias intermédias, os profissionais de segurança, os profissionais de recursos humanos, os trabalhadores para que se promovam os devidos alinhamentos, e consequentemente, o desenvolvimento de uma política de segurança no trabalho sustentável. A estratégia de segurança transversal a toda a empresa vai permitir o alinhamento entre todos os intervenientes e o desenvolvimento de programas de formação e atualização adequados ao perfil dos vários trabalhadores. Este fluxo de diálogo entre as várias componentes que compõem os sistemas organizacionais resulta do conjunto de pressupostos espelhados na legislação sobre a promoção da segurança e saúde no trabalho.

Para ser possível que os índices de sinistralidade laboral desacelerem, temos de “olhar” para o elemento mais importante em toda esta equação, os trabalhadores. Os trabalhadores em todo este processo são a pedra de toque, na medida em que devem estar imbuídos de um conjunto de conhecimentos que se irão traduzir numa maior sensibilidade em matéria de percepção de risco. Contudo, compreender a sua natureza e o que os impele a adoptar um comportamento em detrimento de outro, os sentimentos que estes afetam a determinado conceito (ex. risco), tal como as heurísticas a que estes fazem recurso como mecanismo adaptativo no processo de tomada de decisão devem ser devidamente explorados.

As visões culturais dos indivíduos vão ser também elas determinantes na forma como os estes visualizam os perigos e os riscos em contexto de trabalho. Esta maior ou menor tolerância a um determinado tipo de risco está em muito associada à forma como indivíduos interpretam a realidade e, que concomitantemente, pode ser profundamente enviusada atendendo aos seus mapas culturais.

A percepção de risco dos trabalhadores é fulcral e assume um papel central na prevenção dos acidentes de trabalho. Contudo, é importante que se entenda, à luz das teorias de segurança actuais, que estes não devem ser considerados como os responsáveis pela ocorrência dos acidentes de trabalho em muito associado ao “erro humano”. Devem ser considerados todos os elementos que interferem no acidente de trabalho, desde as políticas de segurança em vigor, aos colegas de trabalho, às chefias, às ferramentas de trabalho e equipamentos, ao layout dos postos de trabalho, às instruções de trabalho, aos registos, ao programa de formação, ao acolhimento, à tarefa realizada, aos equipamentos de proteção individual, etc.

A importância da investigação e análise de acidentes de trabalho permite visualizar a anatomia do acidente, compreender a responsabilidade associada a cada um dos componentes presentes no momento do acidente e corrigir através da adopção das medidas corretivas adequadas. O objectivo da investigação e análise de acidentes é compreender o que correu menos bem, corrigir e melhorar, mas para tal precisamos de compreender os trabalhadores e treiná-los para apoiarem este processo vital de produção de conhecimento.

Em suma, as organizações devem formar e treinar os trabalhadores através de programas com elevados padrões de qualidade, sobre os principais factores que contribuem para a ocorrência de acidentes, ou seja, as “múltiplas causas” que convergem no momento do acidente. Cabe aos especialistas de segurança garantir que estes processos de investigação e análise de acidentes são rigorosos, imbuídos de cientificidade e transparentes para produzir a aprendizagem organizacional através da utilização de modelos de segurança credíveis.

Os acidentes de trabalho, apesar de serem um tema amplamente explorado em contexto real de trabalho e académico, continuam a exigir sem dúvida mais reflexão e debate, porque é possível encontrar pistas através de novas abordagens mais equilibradas e criativas que conduzam a uma desaceleração da “cultura da mutilação laboral dos trabalhadores”.

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