Os direitos não se desligam. Temos literacia jurídica ou continuamos às escuras?

Por Anabela Veloso, bastonária da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução

 

Vivemos, recentemente, um dia atípico e que, com toda a certeza, ficará na História. E nas histórias de vida. De forma inesperada, Portugal e Espanha, bem como algumas zonas de França, ficaram às escuras e o apagão, que durou mais de 10 horas, deixou consequências. Aliás, a normalidade demorou a regressar na sua plenitude. E a verdade é que, mais uma vez, percebemos o quanto a lei está em todos os cantos do nosso dia-a-dia. De repente, todos poderemos ter vivido uma situação em que este cenário, sem paralelo, foi argumento para algo não ter acontecido como seria previsível e desejável. Ou seja, sem luz e perante um problema alheio à responsabilidade de todos – empresas e organizações, trabalhadores e clientes -, ficámos ainda na escuridão quanto à compreensão e observação de direitos e deveres.

Passemos a exemplos práticos. Numa situação como esta, os consumidores têm o direito de exigir o reembolso dos valores pagos ou a remarcação do serviço ou entrega do bem sem custos adicionais – e isto é válido para indivíduos e empresas. Para exercerem os seus direitos, podem, em primeira instância, contactar directamente o fornecedor/prestador de serviço. Caso a resposta não seja satisfatória, dispõem de mecanismos como a apresentação de reclamação no Livro de Reclamações (físico ou electrónico), o recurso aos Centros de Arbitragem de Conflitos de Consumo (uma via extrajudicial célere e económica), ou, em última instância, o recurso à via judicial para a tutela dos seus direitos. E, na verdade, torna-se fácil imaginar casos em que haja entendimentos distintos sobre o cumprimento do que era expectável no que diz respeito ao serviço prestado ou ao bem garantido. Se tal acontecer, tem de haver a mediação entre o fornecedor e o cliente e, claro, a devida aplicação do que é objectivo: a lei.

Espreitemos outro campo, que também gerou muitas dúvidas, mas que, em cenários como este, não permite entendimentos díspares: o pagamento do salário devido pelo período em que o apagão impediu o desenvolvimento da suposta actividade. Aqui, não há espaço para muitas questões, nem para interpretações antagónicas: esta retribuição é devida, pois não há qualquer responsabilidade que possa ser imputada aos trabalhadores.

Já no que respeita ao impacto nos pequenos negócios (e na certeza de que foram grandes esses impactos), é crucial accionar, em primeiro lugar, as apólices de seguro multirriscos, que possam cobrir danos desta natureza. Adicionalmente, as empresas podem apresentar reclamações junto da distribuidora de energia eléctrica, detalhando os prejuízos sofridos e anexando as provas documentais relevantes (facturas de compra, estimativas de perdas, etc.). Caso não se obtenha uma resposta adequada, a via judicial poderá ser considerada para conseguir uma indemnização pelos danos causados, mediante seja provado o nexo de causalidade entre a falha de energia e os prejuízos.

Quanto aos contratos de prestação de serviços de energia, telecomunicações ou transportes, importa verificar os mesmos, pois podem prever cláusulas de compensação em caso de interrupção do serviço. É fundamental analisar as condições contratuais e os regulamentos sectoriais estabelecidos por entidades como a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos – ERSE (para o sector energético) e a Autoridade Nacional de Comunicações – ANACOM (para as comunicações electrónicas), que definem padrões de qualidade de serviço e potenciais compensações. E, já que falamos em comunicações electrónicas, fica ainda um alerta em relação à segurança dos dados e ao cumprimento do Regulamento Geral sobre a Protecção  dos mesmos (RGPD): organizações, empresas, trabalhadores e clientes deverão permanecer atentos, pois uma situação como a que ocorreu, cuja causa ainda está a ser devidamente apurada, também acarreta potenciais riscos no campo da cibersegurança.

Por fim, no que concerne à responsabilidade civil do Estado e das concessionárias, esta poderá ser accionada nos termos dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, caso se prove que a falha de energia resultou de uma acção ou omissão ilícita e culposa destas entidades e que os danos sofridos são uma consequência directa dessa falha. A demonstração da culpa e do nexo de causalidade em apagões de grande escala pode, no entanto, ser um desafio significativo em processos judiciais.

Estes são apenas alguns exemplos, acompanhados de conselhos que podem fazer a diferença no momento de se tomar uma decisão sobre qual a atitude a adoptar. Até porque, tendo o apagão afectado o país inteiro, estou certa de que a diversidade de situação jamais poderá vir a caber num artigo. Seja como for, dias como este deixam-nos “iluminados” (permitam-me o trocadilho) quanto à urgência de haver um reforço da literacia jurídica, quanto ao facto de este trabalho ser uma prioridade e quanto à necessidade de este objectivo passar a estar contemplado no nosso percurso educativo. Sendo eu jurista e bastonária de uma Ordem de juristas, até poderá parecer que isto é um contra-senso e que, ao defender mais e melhor conhecimento ao alcance do cidadão, estou a tirar trabalho aos nossos profissionais. Mas não, pelo contrário. Não hesito quando tenho de afirmar que cidadãos mais informados estarão sempre mais capacitados para identificar as situações em que precisam de apoio especializado, bem como para detectar o que possa ser procuradoria ilícita. E isto é válido quando falamos de indivíduos, confrontados com questões de cariz jurídico do início ao final da vida, inclusive nos momentos do nascimento e da morte, mas também quando em causa estão empresas, detentoras de personalidade jurídica e feitas de recursos humanos. Pessoas.

Perante tudo isto, resta-nos tirar ensinamentos do que vivemos no passado dia 28 de Abril. E, além do kit de SOS com, entre outros elementos, lanterna, pilhas e rádio, apostar ainda num kit jurídico. Do Direito do Consumo ao Direito do Trabalho, passando por outros como o da Família e Tributário, são apenas, mais uma vez, exemplos de áreas em que, para não ficarmos às escuras, os conhecimentos básicos deveriam estar sempre à mão e prontos para utilização imediata. Na esperança de que não voltemos a passar por outro apagão, mas na certeza de que os desafios são permanentes (e surpreendentes), optemos então por prevenir com calma e segurança, em vez de remediar com receios e riscos.

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