Patrícia Rocha, Fundação Manuel Violante: «Neste modelo económico e social, não conseguimos garantir os recursos humanos para o desenvolvimento que precisamos.»

O programa Miles, que já vai na sexta edição, é uma iniciativa da Fundação Manuel Violante e pretende capacitar o sector social. Patrícia Rocha, directora executiva da Fundação, partilhou com a Human Resources Portugal que o objectivo é capacitar 500 organizações nos próximos três anos, mas deixa vários alertas.  

Por Tânia Reis

 

Transformar organizações sociais em super-organizações é possível, através de ferramentas de gestão direccionadas, práticas e implementáveis no terreno. Afinal são estas que estão na linha da frente no combate às situações sociais mais complexas e atestam que as oportunidades não chegam a todos os elementos da sociedade e as saídas levam frequentemente ao mesmo caminho.

No final de 2022 lançaram a sexta edição do programa Miles. Em que consiste e quais os principais objectivos?

O Miles é o “programa-estrela” da Fundação Manuel Violante. É através dele que trabalhamos com as organizações sociais para que estas se tornem mais fortes, mais estruturadas, mais sustentáveis, mais inovadoras, com maior impacto e, por isso, mais capazes de contribuírem para o desenvolvimento social do país. Como gostamos de dizer, o Miles transforma organizações em super-organizações.

A edição de 2023 permite que o programa de capacitação que realizamos há algum tempo seja escalável e chegue a organizações de Norte a Sul do país, dando-lhes oportunidade de trabalhar temas de gestão fundamentais à sua existência com foco na implementação de boas práticas e no empoderamento das suas equipas.

Ao identificarmos as áreas prioritárias destas organizações, o que fazemos com recurso a um diagnóstico inicial, conseguimos oferecer-lhes ferramentas de gestão direccionadas, muito práticas e implementáveis no terreno. Ao longo do programa, conseguimos assistir a uma mudança de procedimentos e práticas, mas também a uma grande mudança de mindset nas equipas, mudança esta que contribui para os resultados que esperamos: organizações mais fortes, mais estruturadas, mais sustentáveis, mais inovadoras e com maior impacto.

 

Que balanço faz das cinco anteriores edições do programa?

O balanço não podia ser melhor. Capacitámos mais de 100 organizações e assistimos a verdadeiras histórias de transformação e superação. Estas organizações não param de nos surpreender. Desde directores executivos que precisavam de motivar as suas equipas e que se tornaram líderes inspiradores, a organizações com dificuldades financeiras que criaram formas de gerar receitas e ainda a equipas de coordenação com reduzidas responsabilidades de gestão que passaram a assumir um papel fundamental na liderança da organização e na garantia da excelência no serviço prestado. Estes resultados são alcançados com a implementação de medidas simples e muito práticas que são realmente transformadoras.

Tudo isto foi possível graças à experiência que temos no sector (já trabalhámos com mais de 350 organizações), à confiança que os nossos parceiros têm em nós e, especialmente, às organizações que se empenharam verdadeiramente neste caminho de aprendizagem.

 

Porquê o foco no 3.º sector?

Acima de tudo porque é um sector onde podemos ter um impacto enorme com o nosso trabalho e porque o impacto é um dos valores do Manuel Violante, que fazemos questão de manter em tudo quanto fazemos. A nossa fundação homenageia o Dr. Manuel Violante, sócio fundador do escritório da McKinsey & Company em Portugal, pela genialidade e paixão com que sempre guiou a sua vida e inspirou todos os que o rodearam.

Depois, porque é um sector fascinante com pessoas extraordinárias que se dão todos os dias aos outros, mas que, infelizmente, não recebem a devida valorização. É um sector que pode contribuir verdadeiramente para a transformação social. Ao contribuirmos para o desenvolvimento deste sector, capacitando-o, empoderando-o e dando-lhe voz, contribuímos para a construção de uma sociedade mais justa e equilibrada.

 

Os benefícios da capacitação são sobejamente conhecidos. Quais considera ser os temas mais necessários no actual panorama?

Há temas que são intemporais e que contribuem sempre, em qualquer contexto, para a boa gestão de uma organização, e há outros que de facto se tornaram mais relevantes com o contexto de incerteza actual.

Temos trabalhado sempre nos nossos programas (e continuaremos a trabalhar) todos os temas relacionados, directa e indirectamente, com a sustentabilidade das organizações, como os modelos de negócio, a qualidade do serviço prestado ou a estratégia. Sem estes temas, as organizações não conseguem pensar o seu futuro. Como nos interessa que pensem não só no futuro, mas também na qualidade do futuro, principalmente porque é essa decisão que terá impacto directo na sociedade futura, trabalhamos a inovação e de que maneira pode elevar a intervenção destas organizações a outro nível.

Porque vivemos num contexto marcado por uma crise económica e social, acrescentámos aos nossos temas outros que permitam às organizações melhor enfrentar a adversidade e os imprevistos, como a agilidade e a preparação para a mudança.

 

Qual o verdadeiro impacto da capacitação nas organizações da economia social?

«Aquilo que fazíamos bem, aprendemos a fazer melhor. Aquilo que não fazíamos bem,

também aprendemos a fazer melhor. É a excelência a todos os níveis. E esta é a magia da FMV e da sua equipa: servir a humanidade pelo empoderamento das instituições sociais e dos seus líderes.»

Esta citação de Alexandra Gonzalez, da Associação Cova do Mar, pode ser lida na última edição da nossa revista Um lugar à Mesa e é para nós um motivo de orgulho.

Todos nós, parceiros, voluntários, equipa da FMV, temos como foco o impacto que as organizações sociais têm nos seus beneficiários e o contributo que este impacto tem no desenvolvimento económico e social do país. O maior impacto que podemos ter é a mudança de mindset destas organizações. Sabemos que é um objectivo concretizado quando, no final de um programa, a organização nos diz que ainda não implementou todas as boas práticas de gestão que queria, mas que a sua importância é reconhecida por todos e que têm um plano para o fazer. Sabemos que esse é o primeiro passo para uma mudança que se quer estrutural. No final do dia, o que queremos é que essas mudanças tenham, a médio e longo prazo, reflexo directo no serviço aos beneficiários.

Objectivamente medimos esse impacto pelas práticas de gestão implementadas, que naturalmente têm influência directa na eficiência e eficácia do trabalho das equipas da organização, no papel das suas lideranças, na capacidade de a organização ser sustentável financeiramente e na melhoria do serviço que é prestado ao beneficiário.

 

O programa conta com voluntários. Quantos estão envolvidos actualmente e qual o seu papel?

Os voluntários são absolutamente fundamentais para o cumprimento do nosso propósito. Sem eles os resultados do programa Miles não seriam os mesmos. No último ano contámos com o apoio de 55 voluntários que se dividiram em dois grupos: os formadores que ensinam às organizações as ferramentas de gestão úteis para o seu dia-a-dia; e os mentores que acompanham de perto estas organizações, ajudando-as a implementar estas ferramentas da forma mais ajustada possível à sua realidade.

 

Como são recrutados e que tipo de trabalho desenvolvem?

Temos voluntários que estão connosco há muitos anos (alguns há quase uma década) e outros que se vão juntando à medida que lançamos calls para nos ajudarem neste caminho de capacitação. São sempre pessoas que estão alinhadas com a nossa causa e que têm um elevado sentido de missão.

Todos são entrevistados, orientados, acompanhados e até avaliados por nós, para garantirmos que entregamos o melhor programa às “nossas” organizações.

O trabalho que desenvolvem – de formação e mentoria – é extremamente complementar e por isso fazemos com que haja um grande alinhamento entre estas duas componentes do programa Miles.

 

Quantas instituições pretendem apoiar nesta sexta edição e quantas pessoas prevêem impactar?

A nossa metodologia permite a capacitação anual de cerca de 100 organizações, mas sabemos que para lá chegar há muito caminho por desbravar. Levar a nossa mensagem a todas as organizações do país leva o seu tempo. Estas são organizações de terreno, o seu foco é no beneficiário, os temas de gestão, apesar de críticos, não são analisados diariamente. Respeitamos este processo e vamos reforçando a nossa rede para conseguirmos alcançar a nossa ambição de capacitar 500 organizações nos próximos três anos.

 

Quais considera ser os principais desafios que Portugal enfrenta a nível social?

Vou usar a lente da economia social para responder a esta pergunta.

Actualmente, o número de famílias em dificuldade económica e financeira aumentou consideravelmente. Percebemos isso no aumento do número de pedidos de apoio directo a organizações e indirecto a redes informais e pessoais. Com as dificuldades financeiras aparecem outros desafios sociais que, infelizmente, não conseguem ser resolvidos com a celeridade e efectividade desejada para que não se consolidem. O aumento do número de pessoas em situação de sem abrigo, de casos de dependência, doença mental, insucesso escolar ou violência doméstica aumenta em períodos de crise económica. Assistimos a um aumento dos pedidos de apoio em quase todas as áreas de intervenção social. Pedidos imediatos para alimentação, verificados agora também numa franja da população que ainda recupera das dificuldades criadas pela crise pandémica e somados aos que já existiam, ou relacionados com temas de saúde física ou mental – a saúde mental é claramente um desafio com uma dimensão muito superior à que tinha antes da pandemia – ou até relacionados com situações de pobreza que exigem uma intervenção concertada em várias áreas.

Isto dá-nos uma ideia clara de que, socialmente, vivemos para o dia de hoje. O que se percebe do contacto com estas organizações, que estão na linha da frente no combate às situações sociais mais complexas e que por isso as conhecem muito bem, é que as pessoas maioritariamente vivem o dia-a-dia, tentando navegar numa sociedade onde as oportunidades não chegam e as saídas levam frequentemente ao mesmo caminho.

Não conseguimos garantir, neste modelo económico e social, que se mantenham no nosso país os recursos humanos que precisamos para o desenvolvimento que desejamos. É preciso um olhar diferente, estratégico, para estes problemas. Um olhar que integre a visão dos vários sectores sobre aquela que queremos que seja a sociedade do futuro. Que modelo social queremos ter? Como garantimos o cumprimento dos 20 princípios do Pilar Europeu dos Direitos Sociais? É preciso continuar a sentar à mesa o Estado, o sector privado, a academia e o sector social, e assumir as responsabilidades individuais em cada um destes princípios. Se procuramos uma sociedade justa, inclusiva e com igualdade de oportunidades há que fazê-lo urgentemente.

 

Como pode a economia social contribuir para a sua resolução?

A economia social tem um papel fundamental nesta reflexão. O tipo de sociedade que queremos para o futuro é espelho da intervenção social que fazemos. Organizações mais assistencialistas fomentarão uma sociedade mais dependente e menos capaz de se autopromover. Organizações sociais orientadas para o empoderamento, capacitação, desenvolvimento pessoal e autonomia, criarão uma sociedade mais justa e inclusiva, capaz de gerar oportunidades de crescimento. Uma sociedade madura que cuide dos seus e os prepare para ser o motor social.

A União Europeia definiu como meta para 2030 a redução de pelo menos 15 milhões de pessoas em risco de pobreza. Esta é uma meta que só pode ser conseguida com a colaboração de todos os sectores, mas que sem o forte contributo do sector social será impossível de alcançar.

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