Reportagem: O recrutamento em tempos de quarentena

No âmbito do desenvolvimento da pandemia causada pela COVID-19 em Portugal, o universo do recrutamento sofreu alterações. Se há empresas a recrutar às centenas, muitas há em lay-off. Há novas oportunidades mas os desafios são muitos.

 

O surto de COVID-19 é uma ameaça grave para a saúde pública. Para salvar a vida de inúmeras pessoas, foi necessário tomar medidas de confinamento, entre outras medidas restritivas. No entanto, estas medidas abrandaram e afectaram gravemente a economia.

Apesar de os números do lay-off crescerem, assim como os despedimentos, há sectores e negócios que necessitam de mais colaboradores. É este o caso do retalho alimentar, onde se tem verificado um aumento da oferta.

José António Rousseau, docente e investigador da UNIDCOM/IADE/IPAM, chama a atenção para o facto de não obstante a taxa de desemprego existente nos últimos anos em Portugal, e situada hoje ainda na ordem dos 6/7%, a verdade «é que nos maiores retalhistas tem havido sempre um déficit de contratação de recursos humanos por manifesta falta de oferta por parte dos eventuais interessados».

Para o estudioso, este facto serve para dizer que também agora, nas actuais circunstâncias de crise pandémica, continuará a não ser fácil contratar colaboradores para o retalho e a maior parte das empresas continuará com falta de pessoal para as operações de loja. Na opinião de José António Rousseau isto acontece porque o retalho é uma actividade de mão de obra intensiva, muito pouco atractiva por força dos seus horários, processos e baixa remuneração e com uma taxa de rotatividade elevadíssima que gera a carência atrás referida. «Assim, quer nas actuais circunstâncias, quer mesmo em termos de futuro, só se existirem, por parte das empresas retalhistas, alterações substanciais em algumas das variáveis do seu modelo de negócio é que esta situação poderá alterar-se no sentido positivo.»

A realidade é que, particularmente, neste sector tem-se assistido a um acréscimo anormal do volume de trabalho, facto que, conjugado com uma grande percentagem de colaboradores em quarentena e/ou a apoiar os filhos em casa, fez com que as empresas reformulassem os seus planos de recrutamento de modo a responder de uma forma o mais eficiente possível às necessidade actuais.

 

Recrutar e recompensar

Vejamos o caso do Lidl, que após um período inicial em que registou um aumento exponencial de afluência às suas lojas, tem vindo agora a verificar um regresso progressivo à normalidade. Maria Roman, directora-geral de Recursos Humanos do Lidl Portugal, faz notar: «Temos estado na linha da frente, a acompanhar todos os desenvolvimentos em conjunto com as autoridades nacionais, com uma permanente adaptabilidade dos nossos processos, optimização da gestão das equipas e implementação progressiva de um conjunto de medidas que garantem a segurança dos nossos colaboradores e clientes, cumprindo sempre com o nosso compromisso de fornecimento de bens a toda a sociedade.»

Devido a esse aumento da afluência, o Lidl Portugal iniciou recentemente uma campanha de recrutamento, prevendo a contratação de 500 colaboradores em resposta às necessidades das suas 258 lojas e quatro entrepostos. «Estas necessidades são resultado do aumento pontual da procura», refere Maria Roman, ressalvando no entanto que «não só», pois resultam igualmente «da necessidade de assistência à família de alguns colaboradores e do facto das grávidas e colaboradores de risco estarem, desde um primeiro momento, em casa, com direito a remuneração».

Para a directora-geral de Recursos Humanos estas contratações «vão igualmente permitir responder aos desenvolvimentos futuros nas lojas e entrepostos, contribuindo igualmente para salvaguardar a economia, numa altura em que muitas empresas têm fechado».

De referir que o Lidl vai atribuir, no mês de Abril, um prémio aos colaboradores em lojas e entrepostos comerciais de cerca de 40% do salário bruto, pelo esforço acrescido das equipas na sequência da corrida aos supermercados provocada pelo surto de Covid-19.

 

Novas oportunidades

A pandemia causada pela Covid-19 veio mudar a dinâmica das empresas, mas, simultaneamente, veio dar vida a novas oportunidades de trabalho.

Afonso Carvalho, administrador do Grupo Egor, refere que apesar dessas oportunidades estarem efectivamente a surgir, estão muito longe de compensar a destruição de postos de trabalho que temos assistido nas últimas duas/três semanas. «É verdade que muitas empresas têm optado por colocar as suas equipas, na medida do possível, em teletrabalho, mas as reorganizações ou mesmo as restruturações que estão em curso ou que se avizinham para os próximos meses, levarão muitas pessoas ao desemprego e ao lay-off, o que permitirá reorganizar as equipas não necessitando as empresas, na grande maioria dos casos, de recrutar recursos adicionais».

De acordo com os dados do Grupo Egor, as empresas que estão a recrutar são, sobretudo, as que operam na área dos serviços, tecnologias de informação e na produção de bens de primeira necessidade.

Já Diana Costa, consultora de Recursos Humanos da Talenter com responsabilidades no trabalho temporário e Outsourcing, constata que, com o teletrabalho, começaram a surgir oportunidades de emprego, sobretudo em empresas de logística e distribuição. No entanto, mais do que novas oportunidades, verificou-se uma passagem dos colaboradores temporários para regime de teletrabalho, o que assegurou a manutenção dos postos de trabalho e evitou despedimentos. «Temos verificado que os clientes conseguiram adaptar as suas realidades à actual situação, resistindo à mudança, garantindo assim a continuidade da laboração e os postos de trabalho», revela a especialista.

Não obstante a crise quase sem precedentes, a realidade é que há sectores da economia em que o impacto é positivo, tendo aumentado exponencialmente o fluxo de trabalho; como a saúde, o retalho alimentar, a logística, as tecnologias de informação e alguma indústria.

«Ao nível do recrutamento, temos vindo a assistir a uma maior procura nestas áreas», revela Fábio Andrade, senior recruitment specialist da Exper-t®. No que diz respeito ao teletrabalho, o especialista acredita que as empresas de outros sectores – à excepção das anteriormente referidas – estão essencialmente a adaptar-se e a repensar a sua gestão, recorrendo aos seus recursos internos e mantendo em standby os seus processos de novas contratações. «Não obstante, verificamos um aumento na procura de serviços nas áreas de TI’s, na educação, de análise de dados e de apoio ao cliente», revela.

Opinião similar foi-nos transmitida através de fonte oficial da Randstad, ao referir que as oportunidades de emprego criadas estão mais relacionadas com o crescimento do e-commerce e os serviços de entregas. Em relação a outras funções, «houve uma adaptação ao trabalho remoto por parte dos profissionais e não necessariamente um crescimento de oportunidade de teletrabalho», ressalva-se.

 

Preparar o futuro

Todos os especialistas concordam que é muito importante começar desde já a preparar o futuro e o pós-crise. Acreditando que a recuperação será lenta e progressiva, a incerteza de um potencial regresso da pandemia (a confirmar-se a ausência de uma vacina) no Inverno, implicará muita prudência por parte dos gestores em investirem em novas contratações.

Na opinião de Afonso Carvalho, o Grupo Egor está, humana e tecnologicamente, preparado para que «a capacidade no momento de inflexão esteja acima da média, tal como o temos feito tantas outras vezes no passado, garantindo assim o recrutamento e selecção dos melhores recursos num curto espaço de tempo». O responsável baseia esta certeza no facto de o Grupo ter sido já responsável pelo recrutamento de mais de 20 mil profissionais.

Período de grandes desafios e trabalho intenso, o pós pandemia levanta muitos desafios e inúmeras dúvidas, os quais, para Diana Costa, só serão ultrapassados com um elevado empenho e dedicação dos colaboradores internos face aos objectivos da empresa. «A confiança granjeada junto dos clientes e colaboradores/candidatos, a implementação geográfica com Stores distribuídas pelo país – que permite uma maior proximidade a clientes e colaboradores e uma resposta mais célere e personalizada», são para a responsável, alguns dos factores que alavancam a empresa para a eficácia na resposta ao recrutamento.

Na perspectiva da Randstad, o chamado ramp-up vai ter velocidades diferentes consoante o sector, acreditando-se que, em alguns casos, vai ser importante ter muitas pessoas validadas para entrada imediata, e noutros será uma retoma mais lenta. «O que estamos a fazer são duas situações diferentes – revela fonte oficial. A primeira é a identificar as pessoas críticas para as empresas na realidade de hoje para que em caso de necessidade estejam já validadas – desenvolvemos essa solução no nosso kit digital-, enquanto a segunda assenta no facto de estarmos a trabalhar de perto com os clientes para perceber os cenários de retoma e também o comportamento dos sectores.» Para isto, a Randstad beneficia da análise dos dados de mercado e do que vai observando a nível global, de forma a garantir que tem «as pessoas preparadas para acompanhar as empresas, reduzindo o tempo da retoma».

Para Fábio Andrade, e vindo a Exper-t® a apostar na inovação e no digital, a adaptação a esta nova realidade foi realizada com menos entropias, o que lhe permitiu continuar com os processos de Recrutamento e Selecção, mantendo os compromissos com os clientes e candidatos. «Sempre promovemos uma abordagem tailor made, flexível e totalmente customizada às necessidades e realidade de cada um dos nossos clientes», sublinha Fábio Andrade, para quem ainda é possível melhorar. «Este é também um tempo de aprendizagem e de readaptação a uma interacção 100% digital», destaca, acrescentando: «Um dos nossos papéis é trabalharmos como agentes da transformação, nomeadamente. encontrando soluções que permitam aos candidatos e clientes sentirem-se num ambiente o mais natural possível.»

 

O mercado do recrutamento no pós Covid-19

Mas importa questionar como será o mercado do recrutamento no pós Covid-19 ou, melhor, de que forma se vai ele comportar depois da pandemia. Será que vamos assistir, no curto prazo, ao fecho de muitas das empresas por falta de clientes, logo, sem facturação e, sobretudo, sem uma perspectiva de retoma? Afonso Carvalho acredita que sim. «Existem muitas empresas de pequena e média dimensão que não terão nem o tempo para se reinventar, nem a capacidade financeira para navegar à vista». Nesta perspectiva, o mercado ficará mais pequeno, dando origem a uma concentração para os grandes players, os que tiverem capacidade de fundo de maneio e, acima de tudo, para os mais credíveis. «Espero que o mercado – prestadores de serviço e clientes – entenda esta nova fase como uma oportunidade para introduzir critérios qualitativos nos processos de recrutamento, elevando este sector para outro patamar, onde o focus é a qualidade do serviço prestado e não a ânsia desenfreada de facturar por facturar», confessa o administrador do Grupo Egor, defendendo que «o sector tem de apostar na qualificação e na formação dos recursos humanos que prestam este serviço e na qualidade das ferramentas que se utilizam para executar processos de qualidade inquestionável».

«Na retoma – continua – voltaremos a um mercado onde a oferta de candidatos será maior que a procura, fruto dos níveis de desemprego que iremos atingir, pelo que será expectável que se volte a registar um decréscimo dos salários médios, uma aposta e/ou reforço na remuneração variável em detrimento do salário base, entre outras medidas que permitirão gradualmente às empresas recuperarem a sua saúde finanças».

Na visão da Randstad o futuro do mercado de recrutamento vai ser tímido. excepto nos sectores da indústria que, em alguns casos, vai precisar de recrutar em volume para acelerar a produção. «Por outro lado, é preciso também recuperar a confiança do mercado para que os candidatos aceitem novas propostas de trabalho.»

É essa confiança que Diana Costa espera que sirva de base à recuperação da economia e do mercado de trabalho. «Teremos candidatos com uma necessidade imediata de encontrar uma remuneração e que irão agarrar a primeira oportunidade que surgir, mas também teremos aqueles que aproveitaram o tempo de paragem para ponderar e reflectir acerca de novos rumos para a vida profissional e poderão tornar-se mais selectivos na escolha de um emprego». A consultora da Talenter acredita que será mais fácil e rápido encontrar os candidatos ideias para as vagas, «pois com o actual congelamento das contratações em algumas áreas, como a hotelaria ou a indústria, este período de pausa pode ser aproveitado para reorganizar as bases de dados tornando-as mais estratégicas e fortes». Diana Costa é da opinião que será mais fácil e célere contratar, permitindo que as empresas retomem rapidamente os seus negócios.

Exercício de pura futurologia, é assim que Fábio Andrade classifica a tentativa de perspectivar como se irá comportar o mercado. Mas nem assim deixou de partilhar que acredita que uma das consequências imediatas será a antecipação da implementação das tendências para os próximos anos, «a aposta na transformação digital, a robótica e a automação, o que, por si só, serão catalisadores de mudanças no trabalho e na forma como o conhecemos».

Outra das consequências mais imediatas do pós crise, será a aposta na requalificação das pessoas para áreas mais tecnológicas «tendo em consideração os níveis de desemprego previstos para o prós pandemia, esta será efectivamente uma das oportunidades que as empresas e as pessoas poderão aproveitar».

 

Texto: Sandra M. Pinto

 

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