O futuro do trabalho é a era dos «portefólios de carreira».

April Rinne, autora do livro “Quem mexeu no meu futuro?”, pretende ajudar os leitores a desenvolver a vontade de utilizar a mudança em seu proveito e a encará-la como uma oportunidade. No próximo dia 1 de Setembro participa nas Estoril Conferences e a Human Resources Portugal conversou com ela.

Por Tânia Reis

 

Licenciada na Harvard Law School, April Rinne é jovem líder global do Fórum Económico Mundial e foi considerada uma das “50 Leading Female Futurists” do mundo pela Forbes. É consultora externa de empresas e startups, instituições financeiras, ONGs e think tanks, incluindo o Airbnb e a Nike. Já visitou mais de 90 países e a sua paixão por viagens permitiu-lhe uma perspectiva única e global de um mundo em constante mudança.

 

Intitula-se “futurista”. O que quer dizer com isso?

Basicamente apoio as organizações a entender o que está no horizonte, como podem ser afectadas e como podem preparar-se para diferentes futuros possíveis. Muitos pensam que os “futuristas” tentam “prever o futuro”, mas não é nada disso (pelo menos com futuristas experientes). Quem alegar que consegue fazer isso, tenham cuidado! É mais sobre entender e interpreter o espectro de forças em jogo (e como se cruzam), mapear os diferentes futuros possíveis e ajudar as pessoas e as organizações a preparar-se. Como costumo dizer: não há um só futuro. “O” futuro é uma construção da nossa imaginação e, na altura em que realmente acontece, já é presente. Mas há muitos futuros possíveis, para os quais contribuímos todos os dias.

 

O seu novo livro “Quem mexeu no meu futuro?” (“FLUX – 8 Superpowers for Thriving in Constant Change”, no original em inglês) foca-se na mudança. Após lidarmos com uma pandemia, acha que estamos mais abertos e preparados para a mudança?

É uma excelente questão e a resposta é… depende. Apesar de ser apenas uma palavra, mudança não é apenas uma coisa. Na verdade é muito complicada e frequentemente confusa.

Por um lado, nos últimos dois anos muitos “abriram os olhos” relativamente à mudança e incerteza: o quão difícil e rápida pode ser e o pouco controlo que temos no final do dia. Não conseguimos controlar o que acontece, mas podemos sim controlar como respondemos e o nível de preparação. Portanto isso é bom: estamos mais conscientes agora.

Por outro, ainda está por descobrir se fazemos mudanças duradouras para a forma como nos relacionamos com a mudança e a incerteza. Penso que muitas pessoas entendem melhor a mudança agora (comparativamente a pré-2020), mas ainda lhe resistem! Podem entender intelectualmente que não “vamos voltar ao que era antigamente”, mas as suas acções nem sempre estão alinhadas com isso.

Claro que me refiro a mudanças que não podemos controlar. Quando se tratam de mudanças que podemos escolher, como uma nova aventura, um novo emprego, uma nova relação, etc., aí sim estamos abertos a esse tipo de mudanças… mas sempre estivemos!

 

Fale-nos dos oito superpoderes que menciona no seu livro.

Os oito superpoderes são sobre como alcançar o sucesso em tempos de mudança. Muito do que nos foi ensinado assume que o mundo é previsível e controlável… o que não ajuda muito quando o mundo está em fluxo. Os superpoderes estão concebidos precisamente para um mundo em constante mudança. Consideremo-los competências, instruções e práticas para a vida.

De acordo com a ordem em que constam no livro, e com alguns temas-chave que abordam:

  • Correr mais devagar: burnout, sustentabilidade, tomada de decisão responsável, presença.
  • Ver o que é invisível: ângulos mortos, novas perspectivas, valores escondidos, novas oportunidades.
  • Perder-se: ir além da zona de conforto e da relação com o desconhecido.
  • O primeiro passo é a confiança: nutrir relacionamentos para navegar melhor pela mudança, juntos.
  • Conhecer o seu “suficiente”: equilíbrio, harmonia, suficiência, auto-estima.
  • Criar o seu portefólio de carreira: desenvolvimento professional, identidade, competências, significado, e como desenhar e ter uma carreira adequada para um futuro de trabalho em mudança.
  • Ser mais humano (e servir outros humanos): autenticidade, ligação humana e recalibrar a sua relação com a tecnologia.
  • Esquecer o futuro: o seu conforto com a ambiguidade e a relação com o controlo.

Convém não esquecer que os superpoderes são uma lista e não um programa de estudos. Não tem de começar pelo um e depois ir para o dois, pode praticar apenas um ou todos. Siga a sua curiosidade!

 

Num artigo defende a mudança de paradigma de um “caminho de carreira” para um “portefólio de carreira”. O que significa e que desafios e oportunidades apresenta?

O “formato” da carreira está a mudar. Já não se trata de uma escada que é necessário subir ou um caminho para alcançar patamares mais elevados, mas sim um portefólio para curadoria, tal como um artista, investidor, executivo ou coleccionar faria. O futuro do trabalho é a era dos portefólios de carreira.

Cada um é muito mais do que o seu cv. Os nossos cv reflectem apenas uma fracção de quem somos, do que podemos fazer e, muitas vezes, nem reflecte as partes mais interessantes.

Infelizmente, os Recursos Humanos ainda vêem a contratação e recrutamento através desta lente limitativa do cv. Chegou o momento de desbloquear e incluir toda a gama de competências e potencial e de os Recursos Humanos actualizarem os seus modelos de atracção e engagement de talentos. Uma abordagem virada para o portefólio de carreira pode ajudar as pessoas e as organizações a fazer isso.

 

Para os que estão agora a entrar no mercado laboral essa mudança parece ser mais fácil, mas e os da Geração X (muitos com responsabilidades familiares e financeiras) e os Millennials?

Um portefólio de carreira não é exclusivo de uma idade, geração, título ou lugar na vida. Na verdade, todos nós já temos um portefólio, só que ainda não nos apercebemos disso. O que estamos aqui a falar é a forma como vemos as nossas carrreiras e desenvolvimento profissional. A sua carreira é uma estrutura única que outra pessoa construiu (por exemplo, uma escada para subir até ao “sucesso” no topo) ou uma jornada em constante evolução alinhada com as suas competências, interesses e crescimento pessoal e profissional únicos (por exemplo, um portefólio multidimensional que encontra o sucesso e significado ao longo da jornada e de maneiras diferentes)?

 

Enquanto “cidadã do mundo”, que diferenças observa na forma como líderes e colaboradores trabalham na Europa e nos EUA? E relativamente à cultura das empresas?

Antes de mais, existem diferenças a nível de legislação europeia e norte-americana, como férias, licença parental e abordagens à gestão de risco. Por outro lado, existem diferenças maiores entre as culturas individualistas (incluindo a Europa e EUA, e a cultura “ocidental” em geral) e as culturas colectivistas (incluindo a maior parte da Ásia e África e a cultura “oriental” em geral). Estas diferenças aparecem frequentemente na cultura das organizações.

Correndo o risco de simplificar, resume-se a “eu vs. nós”. As culturas individualistas tendem a priorizar o “eu” e liberdades individuais, enquanto culturas colectivistas se focam no “nós” e em laços comunitários. Quando a mudança acontece, pode levar a resultados diferentes. Atenção que ambas as abordagens têm vantagens e inconvenientes, dependendo da situação. Por exemplo, culturas individualistas normalmente levam à inovação, porque torna-se relativamente mais fácil introduzir novas ideias. Já as culturas colectivistas destacam-se no trabalho em equipa e na confiança. Mas não é regra, trata-se apenas de uma observação. Nas culturas ocidentais, a Europa é muitas vezes considerada mais colectivista do que os EUA, nomeadamente quando se trata de políticas públicas, o que se reflecte em redes de segurança mais robustas, férias, sindicatos, etc.

 

Considera que os líderes aprenderam com a pandemia e mudaram a forma como as empresas operam tanto a nível interno como externo?

Por um lado, sim, os líderes aprenderam com a pandemia. Todos aprendemos! As regras mudaram, as expectativas mudaram, “o que funciona” mudou. No entanto, no geral, essas aprendizagens ainda estão por manifestar-se em mudanças operacionais duradouras e sustentáveis em todos os sectores. Ainda estamos na “metade confusa”. É verdade que observámos mudanças significativas no que diz respeito ao trabalho remoto, por exemplo. Continuamos a ver tentativas relevantes e o velho “trabalho no escritório” desapareceu. Contudo, as empresas ainda precisam de redesenhar, de forma sistémica e sustentável, operações, organogramas e políticas de Recursos Humanos. Ainda estamos a tentar perceber as coisas. E esse é o ponto-chave a reter. Num mundo, e locais de trabalho, em mudança esse é o novo normal: evolução contínua, experimentação e interacção. As empresas que pretendem uma solução rápida e pronta ou acreditam que há uma solução ou maneira de fazer as coisas, enfrentarão sérias dificuldades neste novo mundo. Líderes de todas as idades, cargos e percursos de vida devem lembrar-se que a aprendizagem nunca acaba. Os últimos dois anos foram um aquecimento para o que aí vem.

 

Com os modelos híbridos de trabalho estabelecidos, como prevê o futuro do trabalho? 

Desenvolvendo a resposta acima, diria que os actuais modelos híbridos de trabalho não estão estabelecidos de todo. Ainda são altamente experimentais e com muita interacção por vir. Todos os dias as organizações aprendem sobre o que funciona bem e o que evitar. Assim, acredito que o futuro do trabalho será, no geral, muito mais diversificado: de mais e diferentes formas de trabalho, mais e diferentes noções de “escritório” e até mesmo o conceito de carreira e sucesso. O nosso menu de opções de trabalho explodiu. Nunca houve tantas formas de obter um rendimento nem nunca foi tão fácil ou barato ser o seu próprio chefe como agora. Também nunca tivemos tantas gerações – Geração Silenciosa, Baby Boomers, Geração X, Millennials, Geração Z – a trabalhar ao mesmo tempo. É uma era incrivelmente entusiasmante!

Também espero ver mais experimentação, mais escolhas e mais mudança e incerteza. Acredito que isso acontecerá independentemente de uma recessão, taxas de emprego, entre outras. Essas são mudanças macro profundas que estão a ocorrer há décadas. A pandemia acelerou algumas delas, mas não aconteceram apenas “por causa” da covid, e os seus efeitos continuarão a evoluir por muito tempo.

 

No seu site refere que o seu cv foi considerado “pouco usual”. Na sua opinião, que competências deviam ser valorizadas (e não são)?

Durante muitos anos o meu cv foi considerado “pouco usual”, porque optei por não ascender a tradicional escada da carreira. As pessoas achavam que eu não era focada. O que não entendiam é que eu estava a cultivar um tipo de carreira diferente, que me permitisse polinizar entre sectores, ideias e públicos, com uma flexibilidade maior. Não estou a subir a escada da carreira, estou a fazer curadoria do meu portefólio de carreira, que vai evoluindo e crescendo tal como eu.

De forma mais abrangente, acredito que as competências que precisamos de valorizar muito mais do que valorizamos actualmente são aquelas que contribuem para culturas de trabalho prósperas, saudáveis e humanas. Competências como generosidade, compaixão e à vontade com a ambiguidade. Porém, estas competências não estão nos cv. Não é estranho? Anseio por um futuro no qual os nossos cv valorizem e reflictam todo o nosso ser, especialmente as experiências que nos moldaram, com ou sem credenciais.

 

E como descreveria o líder e o colaborador do futuro?  

Os líderes do futuro devem sentir-se completamente confortáveis com a ambiguidade, o que é totalmente o oposto do que aprendem hoje. Espera-se que os líderes tenham certezas e respostas, mas o mundo em mudança mostra o quão fútil essa missão é (e sempre foi, apesar de nos iludirmos muitas vezes). Há uma grande e entusiasmante oportunidade de fazer um upgrade às nossas expectativas de liderança, o que também significa o aparecimento de uma maior diversidade de estilos de liderança e de vozes.

Os trabalhadores não vão ser referidos como meros colaboradores, mas sim como talentos. Actualmente, um “trabalhador” tem um “emprego”. É um termo “one-size-fits-all”, mas o futuro não é “one-size-fits-all”. Em vez disso, o talento pode e será envolvido em todas as áreas: em empregos, consultoria, aconselhamento, autoemprego, trabalho temporário e muito mais!

Os talentos do futuro terão muito mais responsabilidade sobre o seu desenvolvimento e crescimento profissional. A barra será mais alta para as empresas, mas os potenciais benefícios também serão maiores.

 

Quais os principais desafios que enfrentamos nos locais de trabalho nos dias de hoje?  

São vários, mas vou focar-me em apenas um: o desenho dos sistemas. Em 2022, a quase um quarto do século XXI, ainda estamos presos a organizações, estruturas e sistemas que foram concebidos para o século XX (e em alguns casos para a primeira Revolução Industrial do século XIX). E isto serve para todos os aspectos, desde políticas de Recursos Humanos a redes de segurança, da mobilidade à monitorização, do trabalho de equipa à tecnologia. Vivemos, trabalhamos e lidamos com estruturas que foram desenhadas para um mundo que já não existe. Isso traz imensas dificuldades e alguns riscos a nível individual, colectivo, organizacional e social.

 

Que conselhos deixaria para alcançar o sucesso profissional (e pessoal)?

  • Comece com confiança: assuma que os outros têm boas intenções. Não me refiro à confiança cega ou ingénua, mas pense que, no geral, as pessoas são de confiança e querem o bem dos outros. A forma como construímos o mundo actual tem como premissa a desconfiança do outro, e é em grande parte o motivo pelo qual existem tantas dificuldades. Quando começamos com confiança, com o tempo construímos um mundo totalmente diferente – um mundo em que é muito mais fácil prosperar!
  • Comece com gratidão: a gratidão leva a uma mentalidade de abundância. Em vez de encarar a mudança como uma perda, será uma oportunidade de crescimento e aprendizagem. A gratidão desperta alegria, desencadeia a bondade e torna tudo melhor. Além disso, é grátis e está acessível a todos!
  • Ninguém pode ser melhor do que o outro: cada pessoa é única, incrível e capaz. Não deixe que lhe digam o contrário (e se o fizerem no local de trabalho, tome isso como um sinal de onde não trabalhar). E isso também significa, não tente ser outra pessoa. A sua maior missão na vida é desbloquear a sua singularidade e partilhá-la com o mundo.
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