Whistleblowing e gestão de pessoas

Para que a directiva europeia Whistleblowing seja implementada na gestão das empresas, e das pessoas, em Portugal, é preciso mais do que transpô-la para a legislação nacional.

 

Por Isabel Moço, coordenadora e professora da Universidade Europeia

 

Prevê a directiva europeia de há dois anos, em concreto de 23 de Outubro de 2019, que as empresas com 50 trabalhadores ou mais deverão providenciar canais e processos que protejam as pessoas que sejam agentes de denúncia. Deveria esta directiva estar transposta para a legislação nacional até 17 de Dezembro deste ano, o que ainda não aconteceu e não se perspectiva que aconteça [à data em que este artigo foi escrito não estava, mas a lei foi entretanto publicada, no passado dia 20 de Dezembro].

Ainda assim, conflui neste objectivo um conjunto de normativos, que já prevê a protecção dos denunciantes, nomeadamente em relação a acções de corrupção, branqueamento de capitais ou até mesmo de financiamento de acções terroristas, e são já muitos os excelentes casos de entidades que foram desenvolvendo políticas e procedimentos para que estas ocorrências possam ser, o mais cedo possível, detectadas e expostas.

No entanto, parece muito haver ainda a fazer, desde o quadro legal até à sua implementação na gestão das empresas e pessoas, porque o núcleo da questão são as pessoas e os seus comportamentos.

São hoje transversais a grande parte das empresas preocupações no âmbito da igualdade de oportunidades, de climas de bem-estar, saúde e conforto, de envolvimento e compromisso, de responsabilidade social e sustentabilidade, entre tantos outros. Significa assim que, cada vez mais, a Gestão de Pessoas procura conhecer as suas pessoas, e esse é o garante de que tem as pessoas certas e comprometidas com a missão e visão da empresa. Por essa razão, e conforme previsto na directiva referida, qualquer probabilidade de corrupção, discriminação (de todo o tipo), assédio (também de todo o tipo) ou fraude deverá ser persistentemente combatida e reduzida, e sem dúvida que é a acção das pessoas que o pode proporcionar.

Analisemos então alguns registos, visando o reforço da importância de se criarem mecanismos de denúncia, focando-nos na Gestão de Pessoas.

 

Preparar o contexto
Em linhas muito gerais, uma organização dificilmente terá denunciantes se a gestão em geral, e a Gestão de Pessoas em particular, não assegurar algumas condições que podem determinar o sucesso ou insucesso das acções que se possa vir a desenvolver. Conhecer aprofundadamente algumas dessas condições impõe-se, mas num esforço de compreender como podem facilitar ou inibir os comportamentos de denúncia que se querem facilitar:

  • Composição da força de trabalho, nomeadamente os seus traços de caracterização (ex: geração, escolaridade, tipo de funções, etc.);
  • Dentro das funções, o papel e suas condicionantes e efeitos, das chefias (sobretudo as chefias directas e intermédias, por poderem ser tácticos difusores das boas práticas de denúncia);
  • Condições de trabalho, como por exemplo, o tipo de vínculos contratuais, as posições na estrutura ou mesmo a gestão do desempenho;
  • Sistema de progressão e carreiras, esforço de desenvolvimento e reconhecimento dos contributos individuais, assim como colectivos.

 

O papel da cultura
Para a Gestão de Pessoas, é incontornável a importância da cultura organizacional – de forma linear entendida enquanto forma de viver do colectivo de uma empresa, “lá dentro”. Assim, quando abordamos a temática do whistleblowing estaremos, em primeira instância, a referir-nos à favorabilidade da cultura. Significa que uma empresa bem pode ter sistemas e procedimentos favoráveis à denúncia, que se a cultura for de pouca receptividade ou até adversa, as pessoas não se sentirão confortáveis para denunciar (entenda-se, sempre, a denúncia lícita e justificada).

Sabe-se que a promoção e disseminação de padrões culturais assentes na transparência e confiança são promotores da denúncia. Esse, para as empresas que não o têm já incorporado no seu ADN, é um longo caminho a percorrer – mas é por aí que se deve começar.

Promover uma cultura do exemplo, de ética e conduta conforme, será um importante contributo para um clima propício às denúncias de ilícitos.

 

(Re)pensar os formatos de regulação dos comportamentos
Importa nesta fase que a gestão (re)pense os seus formatos de regulação interna dos comportamentos – por ser uma forma de prevenção do acto ilícito, mas também por poderem ser promotores da denúncia.

Sistematizando, encontramos como grandes formatos de regulação do comportamento humano em contexto organizacional, a moral, os costumes, a ética, o direito (aqui considerando também os normativos comportamentais internos, por exemplo os Códigos de Conduta, Compliance, ou mesmo de Ética) e a deontologia, é necessário que se compreenda:

a) Se estão ajustados ao momento actual de vida da organização, dos negócios e das pessoas;
b) Se são compreendidos, validados e entendidos como pertinentes e úteis;
c) Se são eficazes e provocam os resultados esperados.

Caso estas condições não estejam asseguradas, há que (re)criá-los ou, eventualmente, até eliminá-los. Caso estas molduras sejam eficazes, deverá a gestão dispor de um sistema de reconhecimento – não significa recompensa – dos comportamentos alinhados com os desejados, pois sabe-se que o reforço à manifestação do comportamento favorece a sua ocorrência.

 

Passar da intenção à denúncia
A grande diferença entre intenção de denúncia e denúncia em si está ao nível dos efeitos que isso pode trazer ao denunciado, ao denunciante, às equipas, à organização como um todo, ao seu negócio e reputação.

Registam diversos estudos que, para o denunciante, são estes os efeitos mais comuns e que interessa assegurar que não ocorrem pelo facto de assumir essa responsabilidade de denunciar e efectivar a acção:

  • Do assédio discreto ou camuflado até à perseguição explícita;Alterações nos pagamentos;
  • Corte de condições de trabalho ou até mesmo a supressão das mesmas;
  • Despromoção efectiva ou no conteúdo/responsabilidade das tarefas;
  • “Informal internal enemys list”;
  • Ou mesmo a cessação do contrato.

 

Assim, será da responsabilidade do empregador assegurar um conjunto de condições em que o denunciante se sinta seguro para levar por diante a denúncia. Na concepção destas condições será imperativo que se atenda à triangulação de variáveis (ver esquema) que mais afectam a decisão de denúncia e, por vezes, não permitem que chegue a manifestar-se. Ter bem identificadas, mapeadas e medidas cada uma destas variáveis será um importante preditor de um clima favorável à denúncia.

Os dados revelam a importância de ter canais, internos e externos, de denúncia – por exemplo, de acordo com a ACFE (Association of Certified Fraud Examiners), 43% dos esquemas de fraude foram detectados por denúncia, metade dos quais de origem interna, e as empresas com canais de denúncia detectam mais ilícitos e com mais frequência. Parece assim que com estes canais, e com as condições certas asseguradas, as empresas podem tornar-se mais ágeis e competitivas.

Com montantes significativos de coimas associadas ao não cumprimento da Directiva, por exemplo por não permitir a denúncia, praticar actos retaliatórios ou por não cumprir o dever de confidencialidade face à fonte, ou mesmo pela falsa denúncia, será tempo de as empresas que ainda não cuidaram desta questão que o façam, pela segurança, bem-estar e confiança de, e para, todos.

 

Este artigo foi publicado na edição de Dezembro (nº.132)  da Human Resources, nas bancas.

Caso prefira comprar online, pode comprar a versão em papel ou a versão digital.

Ler Mais