A gestão do stress em acção humanitária: um problema actual

O trabalho humanitário é gerador de stress. É importante para a liderança que trabalha neste contexto, reconhecer a importância de dar atenção a este problema e adaptar o seu estilo de liderança para promover o desenvolvimento da resiliência da sua equipa. Heifetz oferece-nos uma abordagem, a liderança adaptativa, onde o líder, ao promover um ambiente seguro para endereçar as questões que geram tensão na equipa, pode contribuir para aliviar o seu sofrimento e aumentar a sua resiliência.

Por Débora Santos, Carolina Esteves, Gizela Sousa, António Souza e Luís Vaz, alunos da Pós-Graduação em Acção Humanitária, do ISCTE

 

A exposição directa à miséria, catástrofes e conflitos, bem como às condições adversas e recursos limitados são grandes fontes de stress. Aos trabalhadores do sector humanitário, é-lhes acrescido o factor específico das suas vivências – os trabalhadores internacionais estão separados das suas famílias, em ambiente desconhecido, e que muitas vezes ameaçam a sua segurança. Cuidar do bem-estar dos agentes de acção humanitária, físico e psicológico, é essencial para o bom funcionamento da organização humanitária e da sua atuação no terreno.

Este não é um problema que afecta apenas o indivíduo, mas toda a organização, uma vez que, levadas ao extremo, estas situações acabam por ter influência no funcionamento da equipa e na sua produtividade, originando situações em que os colaboradores tomam decisões e adotam comportamentos que colocam em risco a sua segurança e a da equipa que integram.

Num estudo realizado junto de 18 ONG´s envolvendo 212 participantes, o número de colaboradores enviados em missões internacionais que reportaram sintomas de ansiedade e depressão, subiu de 3,8% para 19,5% após a missão, o que demonstra bem a importância desta questão. Neste contexto, o papel do líder é extremamente importante, devendo motivar e encorajar os seus trabalhadores a adaptarem-se aos desafios e a responder às adversidades de uma forma positiva.
A liderança está intimamente ligada à preparação dos trabalhadores para lidar com a mudança, seja esta na fase de adaptação às condições adversas de um novo país ou à sobrevivência a uma catástrofe ou situação de conflito (Northouse, 2016).

É também importante referir que a mobilização e a motivação dos seguidores tem impacto na forma como conseguem encontrar novas formas de lidar com mudanças inevitáveis. De acordo com Cardozo et. al. (2012), “persons with high levels of motivation to do this kind of work in difficult circumstances are less at risk of burnout …”. Na acção humanitária, é fundamental que se trabalhe a capacidade de adaptação às adversidades, isto é, a resiliência. Pessoas resilientes são capazes de ver o plano geral das coisas e de sair de uma situação difícil fortalecidas e com mais ferramentas para lidar com circunstâncias futuras (Sutcliffe & Vogus, 2003).

 

Stress e Resiliência

No manual da Cruz Vermelha (2007), “Humanitarian action & armed conflict, Coping with stress”, são assinalados 3 tipos de stress: o stress básico, o stress cumulativo e o stress traumático. Cada um tem repercussões mais intensas que o anterior, embora seja possível identificar elementos comuns entre eles. Lazarus (1984) definiu o stress como qualquer situação externa a um indivíduo que provoca nele exigências incomuns ou extraordinárias ou o ameaça de alguma forma.
Para melhor entender o que é o stress, é usual a utilização de uma analogia da área da Física, nessa área o stress é usado para explicar a elasticidade de um material – a elasticidade é a capacidade do material de receber uma certa quantidade de energia sem se partir. No ser humano, algo similar acontece – a quantidade de energia é a pressão do ambiente colocado num indivíduo que causa stress nesse indivíduo, e a elasticidade corresponde à resiliência desse indivíduo de suportar o stress nele colocado sem ‘quebrar’.

Tanto o stress como a resiliência parecem estar intimamente ligados com as percepções que as pessoas têm do seu ambiente. Lazarus (1948) afirma que o stress é o resultado da relação entre uma dada situação (complicada) e a pessoa, isto é, a forma como esta interpreta o mundo à sua volta, e desta forma podemos entender o porquê de uma mesma situação afetar as pessoas de forma diferente. As duas grandes áreas de foco para reduzir o stress são, por isso, o foco na situação causadora de stress e, por outro lado, o foco na pessoa e na forma como esta lida com as situações.

 

Ver a realidade como ela é

A primeira característica das pessoas resilientes é a capacidade de ver e aceitar a realidade como ela é. Coutu (2002) apresenta o exemplo do Almirante Jim Stockdale, prisioneiro e torturado pelos Vietcongs durante 8 anos. Quando perguntaram a Stockdale que tipo de pessoas não sobreviveu nos campos, respondeu os “optimistas”. O problema não está propriamente em acreditar que o futuro será melhor, mas sim na criação de expectativas irrealistas. Os optimistas de que Stockdale falava eram aqueles que pensavam que sairiam do campo muito em breve.
Ser realista não significa necessariamente não ver o lado bom das situações, mas ter capacidade de controlar as suas expectativas. Isto significa ter noção de que muitas situações simplesmente não irão acontecer de acordo com as nossas vontades, e que muito do que nos afecta está fora do nosso controlo. Aplicando a ideia ao projecto humanitário, significa aceitar que possivelmente, apenas se conseguirá ajudar uma fração dos que de facto necessitam.

 

Dar significado a tempos difíceis

Num momento difícil existe uma tendência para a pessoa se questionar com “porquê eu?”, mas existe uma segunda opção de nos perguntarmos “porque não eu?”. Na primeira forma de questionamento, estamos a assumir um papel de vítima, ou seja, assumimos um papel passivo onde a nossa perceção de controlo é menor. Como colocamos toda a possibilidade de melhorar a nossa situação fora de nós, a angústia emocional será provavelmente maior. Na segunda forma de nos questionarmos encontramo-nos numa posição activa, a nossa percepção de controlo aumenta pois focamo-nos naquilo que controlamos, e desta forma dispomo-nos à possibilidade de tornar uma situação complicada em algo com significado.
Em Acção Humanitária, não é necessário um esforço criativo particularmente grande para encontrar significado nas situações mais complicadas. A área em si é regida por valores fortes e nobres, e lembrar os méritos do que se está a fazer, é uma boa forma para lidar com os piores momentos. Isto é, lembrar que por mais difícil que a vida possa ser, a acção humanitária tem um impacto real na vida das pessoas.

 

Como pode o líder promover estas características na sua equipa?

Heifetz, citado por Northouse (2016), apresentou, em 1994, a teoria da Liderança Adaptativa, entretanto desenvolvida por outros autores. A Liderança Adaptativa foca-se nas adaptações que as pessoas têm de fazer em resposta a ambientes em constante mudança. Os desafios centrais na teoria são, portanto, os desafios adaptativos – desafios difíceis de identificar e definir, que não podem ser resolvidos pela autoridade ou habilidades técnicas do líder pois requerem uma mudança nas crenças, perceções e comportamentos das pessoas. O aumento da resiliência constitui um destes desafios.
Partindo dos problemas adaptativos, o modelo de liderança oferece seis comportamentos para o líder colocar em prática, dentro do que é chamado o “holding environment” ou ambiente de suporte.

 

O Ambiente de Suporte

O ambiente de suporte é um conceito central a esta teoria de liderança e remete para um espaço ou ambiente formado por relações entre as pessoas, onde estas se sentem seguras para fazer face à mudança em questão, mas não confortáveis o suficiente para a evitarem. A ideia deste espaço vem do campo da psicoterapia, onde o psicoterapeuta cria um ambiente terapêutico e faz uso de comunicação eficaz e empatia para dar uma sensação de segurança e protecção à pessoa que está a ajudar. Da mesma forma, o líder deve fazer uso da sua autoridade, comunicação e empatia para criar e manter um ambiente onde a mudança de perspectivas possa operar. Um exemplo será criar o hábito de discutir abertamente e sem julgamentos as situações pelas quais a equipa passa, podendo estar ligado a um espaço físico onde a equipa se encontra com regularidade.

  • “Get on the balcony”
    “Getting on the balcony” é um pré-requisito para os restantes comportamentos do líder adaptativo. Esta é uma alusão a uma pista de dança em que um indivíduo se encontra numa posição elevada para entender o que se está a passar lá em baixo. Da mesma forma, o líder deve regularmente dar um passo atrás e afastar-se da actividade e do caos da situação para ter uma visão mais clara da realidade de funcionamento da sua equipa.
    No caso da construção de resiliência este comportamento tem especial importância pois é através dele que o líder construirá a sua visão da realidade que depois será partilhada com o resto da equipa. É importante que este se questione regularmente se, de facto, compreende e aceita a realidade da situação presente e se a sua equipa o faz também, tendo sempre em conta que esta é uma tarefa muitas vezes desagradável e mesmo psicologicamente dolorosa.
  • “Identify the adaptive challenge”
    Os líderes devem identificar e analisar os desafios em questão, se são adaptativos ou técnicos, e expô-los à equipa de forma clara e compreensiva. Sem um entendimento comum e claro do problema em questão, dificilmente se encontrará uma solução comum. O líder deve analisar que visões e que expectativas irrealistas poderão ter os membros da equipa e de que forma poderão estes estar a cair em mecanismos de defesa baseados na negação ou na transferência de culpa (o que consequentemente lhes retira capacidade de mudança e sensação de controlo).
  • “Regulate distress”
    Qualquer desafio adaptativo exige algum tipo de mudança e qualquer tipo de mudança cria algum nível de stress. O líder deve fazer um esforço para manter os níveis de stress dos seus membros dentro dos parâmetros úteis. Isto significa dar direcção através da identificação dos problemas e de possíveis soluções, identificando uma visão e valores comuns; monitorizar e acompanhar as mudanças, ajudando a regular as pressões externas, relembrando as pessoas das suas limitações e da necessidade de se cuidarem, a exemplo, dormir o suficiente, comer regularmente, controlar o consumo de álcool, tabaco ou medicamentos, assegurar o relaxamento e o exercício físico; gerir os conflitos que aparecem; estabelecer e encorajar normas de comportamento dentro do grupo que favoreçam a mudança, desencorajando as restantes.
  • “Maintain disciplined attention”
    O líder deve ter o trabalho de mobilizar e encorajar as pessoas a baixarem as suas defesas e confrontarem os desafios abertamente. Isto não é intrínseco ao ser humano, nós evitamos confrontar a mudança, principalmente quando isso exige mudar as nossas crenças sobre o mundo. Isto significa ter o trabalho desagradável de falar sobre o “elefante na sala”, o assunto de que ninguém quer falar, ou de levantar questões que são consideradas controversas ou criadoras de divisão interna, com empatia.
  • “Give the work back to the people”
    Dar o trabalho de volta às pessoas significa dar espaço aos outros para assumirem responsabilidade. As pessoas querem que os líderes lhes deem alguma direção e estrutura, mas demasiada pode ser debilitante e pode mesmo reduzir a confiança das pessoas para resolver os problemas de forma autónoma. É necessário identificar em que áreas o líder pode, ou não, promover a autonomia da equipa.
  • “Protect leadership voices from below”
    Este comportamento significa que a liderança deve ter o cuidado de ouvir e de estar aberta às ideias dos que de alguma forma são marginalizados ou divergentes do pensamento padrão da equipa. Este comportamento é importante pois, além da possibilidade de estes membros serem fontes de ideias e influências importantes para a mudança, fará com que se sintam mais envolvidos na organização e consequentemente mais comprometidos com o trabalho adaptativo.

 

Maior consciência em relação ao stress no sector humanitário

Existem ferramentas disponibilizadas ao sector humanitário, como por exemplo o questionário de diagnóstico que, muito facilmente, permite identificar elementos da equipa que possam sofrer de stress (ICRC, 2007). Neste questionário, que obriga de forma regular a liderança a olhar para a questão do stress das suas equipas, as respostas dão origem a uma pontuação que, quando atinge níveis mais altos, é indicadora de situações de stress mais elevado. Mas uma actuação eficaz dependerá da adopção por parte de todas as agências humanitárias de um processo institucional de gestão de stress, que passa pela adopção de três princípios fundamentais – a partilha de informação e formação sobre os diferentes tipos de stress e a forma de reconhecer os seus sintomas, a criação de mecanismos de apoio institucionais e familiares antes, durante e após o projeto, sendo neste contexto que se mostram úteis os mecanismos da liderança adaptativa identificados anteriormente, e a disponibilização de medidas administrativas de resolução das situações mais delicadas.

Em casos mais ligeiros, deve ser identificada a origem do stress e avaliada a possibilidade de interromper essa ligação. Já em casos mais graves, a organização deve disponibilizar apoio médico e aconselhamento terapêutico. O líder de equipa tem à sua disposição metodologias para exercer uma liderança adaptativa, através de uma comunicação eficaz e de um ambiente aberto onde os colaboradores sintam que podem partilhar as suas preocupações.

 

No trabalho humanitário, a formação para lidar com o stress deve ser cada vez mais incorporada na preparação e gestão das equipas. Trata-se de um problema real que afecta um número considerável e crescente de colaboradores e que terá consequências a longo prazo, caso não seja endereçado de forma persistente.

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