Desconexão “ma non troppo”

Se não acontecer nenhum imprevisto, em Dezembro chega uma consagração legal do chamado direito à desconexão, traduzido no seguinte: o empregador deve abster-se de contactar o trabalhador no período de descanso, salvo em situações de força maior – sob pena de praticar contraordenação grave.

Por Rui Valente, sócio da Garrigues

Há muitas dúvidas que os tribunais e os juristas terão de tentar dissipar. Vejamos alguns exemplos.

Primeiro, a delimitação do conceito de empregador para este efeito. De facto, não parece que se haja pretendido limitar, sem mais, contactos de colegas de trabalho durante o período de descanso, nem mesmo quando esses colegas de trabalho sejam superiores hierárquicos. É que mesmo sendo superiores, tal não faz deles, sem mais, o empregador, nem sequer um representante dele.

Segundo, a delimitação do conceito de contacto. O que é para este efeito “um contacto”? Percebe-se que há contacto se o empregador bater à porta de casa do trabalhador durante o descanso, ou se lhe telefona nesse momento, mas já não parece fazer muito sentido que o mesmo se diga de uma mensagem de correio electrónico que o mesmo envie, ainda que no período de descanso do trabalhador – ou não necessariamente. Na verdade, sempre terá relevância o conteúdo de tal mensagem – cuja leitura depende de acção voluntária do trabalhador – não vá a mesma conter, por exemplo, um pedido não urgente, de realização de determinada tarefa até daí a … 7 dias, ou, até, o anúncio de uma promoção do trabalhador, contactos que seria certamente bizarro sancionar com contraordenação.

Terceiro, a articulação com o trabalho suplementar. Se parece evidente que a norma não é aplicável aos casos de isenção de horário de trabalho (designadamente quanto aos dias normais de trabalho), também não é de fácil articulação com o trabalho suplementar – pois que o empregador pode ter de contactar o trabalhador para lhe solicitar a prestação de trabalho suplementar o que pode suceder fora de situação de força maior, mas por exemplo, para prevenir prejuízo grave para a empresa.

Quarto, presume-se que a norma não se aplica aos casos em que existam regimes ou piquetes de prevenção, i.e., em que os trabalhadores estão no período de descanso, mas podem ser chamados para atuar em determinada situação urgente (por exemplo, de manutenção). A chamada dos trabalhadores nestas condições é, por natureza, um contacto que ocorre durante o período de descanso.

A amplitude do texto legal é tamanha, que terão os intérpretes de a temperar com muito bom senso, ou mesmo com uma interpretação restritiva da norma.

De facto, sem prejuízo das boas intenções que certamente estiveram na base desta norma e no impacto que poderá ter numa certa prática de moderação, a verdade é que há uma pressão crescente e conjunta de trabalhadores e empregadores numa flexibilidade que a ambos convém (dentro de determinados limites).

Ora, a questão é que essa flexibilidade pode, muitas vezes, não só ser compatível com a conexão, como precisar dela. O trabalhador que, por exemplo, precisa de se ausentar num dado momento por razões de conveniência pessoal e pretende obter a concordância do empregador nesse sentido, pode ver essa anuência facilitada se se puder manter contactável e se a tanto se disponibilizar.

Com o que chegamos a uma outra questão de grande relevância: que valor terá o acordo expresso entre trabalhador e empregador no sentido de os contactos poderem existir fora do período de trabalho? Dando, como exemplo, o dos cargos de direcção, seria certamente desproporcional uma interpretação que o não admitisse quando tais trabalhadores podem, por exemplo, acordar (sem qualquer contrapartida remuneratória) na isenção de horário de trabalho.

 

Ler Mais