Consulting House: Externalização de capacidades cognitivas e reinvenção humana
Todas as profissões vão ser impactadas pela externalização de capacidades cognitivas ao longo dos próximos dez anos.
Por Ricardo Vargas, CEO da Consulting House
A Lawgeex, uma empresa de Inteligência Artificial (IA) criou um programa para analisar contratos de confidencialidade. Em 2018 realizou uma competição entre a sua IA e uma equipa de vinte advogados com mais de duas décadas de experiência a trabalhar neste tipo de contratos. A IA atingiu um nível de eficácia de 94% contra 85% dos humanos, medido pelo número de erros encontrados. Os advogados demoraram 92 minutos a rever cinco contratos, enquanto a IA demorou 26 segundos.
Quando a maioria das pessoas pensa em transformação digital, imagina robôs a substituirem humanos em linhas de montagem. Pensa em trabalhos rotineiros e de elevada carga física a serem dados a máquinas para alívio de trabalhadores indiferenciados: motoristas, pedreiros, assistentes de telemarketing, operários fabris, entre outros.
Mas essa realidade já chegou há muito tempo. A tecnologia para substituir essas funções já existe, embora ainda não esteja desenvolvida nem implementada, por razões económicas, políticas, legais e sociais. Não é disso que trata a transformação digital da economia.
Externalização de capacidades cognitivas
O que vamos experimentar em breve é uma substituição de parte das nossas capacidades cognitivas por IA. Todas as tarefas de recolha e processamento de informação e tomada de decisão que possam ser tipificadas podem ser substituídas por IA com vantagens: menos erros e menos tempo. Como demonstra o exemplo que dei na abertura deste texto.
O que nos leva a interrogar quais são as funções que incluem uma parte significativa de recolha e processamento de informação para tomada de decisão? Todas as funções diferenciadas em qualquer ramo de actividade. Isto é, contabilistas, auditores, programadores, advogados, jornalistas, chefs, designers, e por aí fora. Já existe IA que bate os médicos em tarefas de diagnóstico, com vantagem considerável. Os médicos conseguem manter-se (pouco) competitivos em doenças comuns. Quando chega a doenças raras, a IA não tem rival em eficiência de diagnóstico.
O que nós estamos a viver não é que algumas profissões vão ser substituídas por IA. O que estamos a viver é que todas as profissões vão ser impactadas pela externalização de capacidades cognitivas ao longo dos próximos dez anos.
No “Web Summit” de 2018, vários empreendedores na área da IA afirmaram trabalhar com o pressuposto de substituição de 50% das funções humanas a dez anos. Isto tem sido entendido como metade das funções, as mais rotineiras e menos diferenciadas. Mas deve ser entendido como metade de todas as funções, a metade mais rotineira, ainda que diferenciada, de qualquer função. E dez anos chegam para o fazer.
Digitalização ou transformação digital?
Nem sequer é disso que trata a transformação digital. Isto é só, ainda, digitalização. A digitalização é a adopção de ferramentas digitais que facilitam o negócio tal como existe hoje. Quando substituímos tarefas de processamento de informação de um advogado ou médico por IA, estamos a digitalizá-las. Não estamos a transformá-las. O diagnóstico continua a ser o diagnóstico tal como feito pelo médico, num determinado momento do processo clínico, para produzir o mesmo tipo de resultado. Mas mais eficiente. Isto é só o primeiro passo.
A transformação digital é a transformação de processos, competências e modelos de negócio, alavancada por um mix de tecnologias de informação e comunicação, para criar novas oportunidades de geração de valor.
Uma transformação do acto médico seria fazer o diagnóstico através de sensores na roupa e integrá-la com informação de tudo o que comemos, fotografado pelo telemóvel; actividade física, recolhida pelo mesmo; indicadores psicofisiológicos de padrões emocionais, registados 24/7 num smart watch; interações sociais nas redes online; padrões verbais – conteúdo e pitch – gravados pelo telemóvel; locais de viagem por geo- localização; entre outros indicadores processados por uma IA que indica comportamentos correctivos para manter a saúde ou intervenções precoces para a repor.
Tudo o que descrevi é tecnologia já existente ainda não vulgarizada. Se lhe juntarmos edição genética, a medicina poderá ter menos de 5% de actos humanos. Passaremos décadas com acompanhamento médico permanente sem ver um médico.
Basta replicar este exemplo para todas as funções para entender o mundo de oportunidades assombrosas que estamos a criar. Com os desafios associados. Todos vamos enfrentar a necessidade de nos reinventarmos profissionalmente. E não me refiro ao ganho de competências para lidar com tecnologia, ou ao défice crónico de profissionais na área de tecnologias de informação. Estamos muito focados em ganhos de conhecimento. Isto é importante para lidar com a digitalização em curso. Mas não chega para lidar com a transformação digital.
Transformação humana
A transformação digital implica uma transformação humana constante. A relevância de qualquer profissional ou em- presa é datada com prazos de validade cada vez mais curtos. Isto não é optimista nem pessimista, é uma descrição
da realidade.
Nos anos 80 do século passado, o futurista Alvin Toffler, autor de “O Choque do Futuro”, afirmou que “no futuro, a principal competência das pessoas vai ser a capacidade de aprender, desaprender e reaprender, constantemente.”
Ou seja, o importante não é o conteúdo da função, ou a capacidade de gerar resultados nas tarefas. O importante é o processo pelo qual eu aprendo o conteúdo da função e pelo qual aprendo a gerar resultados nas tarefas, quaisquer que sejam a função ou as tarefas executadas. E ainda o processo pelo qual desaprendo tudo o que aprendi, para que possa reaprender de novo.
A construção, desconstrução e reconstrução dos processos de geração de conhecimento é a base da transformação humana em curso. Não se trata simplesmente de aprendizagem ao longo da vida. Esta está orientada para conteúdos e processos de produção de resultados. Competências técnicas e emocionais que vão evoluindo cumulativamente. A escolaridade, a formação profissional, as carreiras, os sindicatos, as ordens profissionais, o mercado de trabalho, estão alicerçados numa lógica cumulativa que já não se aplica.
A Reinvenção do Self
As profissões passarão a ser fracturadas ciclicamente por disrupções tecnológicas e de negócio. Preparar os profissionais para manter a relevância requer ensiná-los a dominar os processos de construção do conhecimento em qualquer direcção: aprender/desaprender/ reaprender. A capacidade de desaprender, parece ser o mais difícil de conseguir neste momento.
Sobretudo porque, aquilo que nós somos profissional, pessoal e socialmente, a nossa identidade, o nosso “self” é construído não só por nós mas em relação com um conjunto de referências externas: a família, a educação, o sítio onde vivemos, a rede de contactos, a representação da profissão, o estatuto, entre outros. Ao ameaçar tudo o que foi adquirido, a disrupção de negócio ameaça também a identidade social do indivíduo e gera resistência. Apegamo-nos ao que fomos como medida do que somos. E ao fazê-lo diminuímos o que podemos vir a ser.
Para parte dos babyboomers, nascidos antes de 1965, que estão numa fase terminal de carreira, a disrupção que aí vem levará a uma estratégia de saída do mercado de trabalho. A geração x ainda vai enfrentar uma ou duas disrupções ao longo da sua vida profissional. Os millenials vão ter que se transformar várias vezes. E a geração z,
muitas vezes.
Não é uma mudança que passa e volta tudo ao normal a seguir. É uma aceleração constante de ciclos de mudanças em que o normal é não haver normal. Todos enfrentamos o mesmo destino, mas uns mais preparados que outros.
O Papel do Learning & Development
É por isso que precisamos de abordagens transversais e individuais aos desafios de cada empresa. Por um lado, o desenvolvimento profissional terá de ser cada vez mais personalizado. Por outro, a empresa precisa de garantir que grupos relativamente grandes de colaboradores evoluem simultaneamente na mesma direcção com ganhos equivalentes de eficácia. Sem isso não consegue implementar uma estratégia.
O desenho do desenvolvimento profissional deixou de ser um tema de consultoria-ou-aprendizagem-ou-coaching-ou-comunicação. As fronteiras entre estas dimensões deixaram de existir e a abordagem é de integração total. O que
separa a formação do coaching, da consultoria e da comunicação é uma questão de perspectiva metodológica. O que importa são os resultados.
A intervenção de desenvolvimento deve fazer-se o mais próximo do terreno em que a competência é precisa, com recurso às ferramentas mais eficazes para atingir os resultados desejados. A empresa precisa de ajudar os seus profissionais a transformar-se para se manter re- levante. O que significa rever com regularidade os seus processos de construção, desconstrução e reconstrução de conhecimento e desenvolvimento profissional dos seus colaboradores.
Este artigo foi publicado na edição de Julho/Agosto da Human Resources.