O futuro passa por criar uma força de trabalho simbiótica

Na eterna discussão sobre se a Inteligência Artificial irá substituir ou complementar os humanos, a nova palavra de ordem é “simbiose”.

 

Por James Wilson e Paul R. Daugherty

 

Recentemente, Elon Musk usou o termo “simbiose” para descrever como um implante cerebral pode fundir inteligência humana e digital. Contudo, não é preciso transformarmo-nos em ciborgues para atingirmos uma relação mutuamente benéfica entre humanos e Inteligência Artificial (IA). Em vez disso, podemos reconfigurar os cargos e processos empresariais para fazer com que pessoas e IA colaborem e atinjam juntos algo maior do que conseguiriam individualmente.

Tendo em conta o medo e as questões à volta da IA – de quantos empregos se perderão até quem formará estes novos sistemas – a questão do modo de atingir uma colaboração humano-máquina ganhou uma nova urgência. Afinal de contas, estas relações mutuamente benéficas, concentradas no acréscimo e não da deslocalização, aumentam o valor do negócio enquanto diminuem o risco de empregos perdidos.

Para criar uma força de trabalho de IA simbiótica, as empresas terão de usar processos centrados nos humanos que motivem colaboradores, requalificá-los no contexto do seu fluxo de trabalho e mudar o enfoque da automatização para a colaboração entre humanos e máquinas.

Para testar essa noção, o centro de inovação da nossa empresa em Dublin, na Irlanda, fez uma experiência para ver como os colaboradores humanos aumentam o trabalho de um sistema de IA existente e abraçam os seus novos cargos como formadores de IA.

 

A evolução do papel do formador de IA
Trabalhando com uma equipa de peritos em design, dados e software, e com programadores clínicos, concebemos, desenvolvemos e testámos uma interface de software que permitia aos programadores clínicos passarem da simples utilização da IA para a sua melhoria, assumindo as tarefas de um “formador de IA”, um cargo que ensina a IA a executar e repetir.

Os programadores clínicos analisam as fichas médicas de um paciente, retirando informações complexas sobre diagnósticos, tratamentos ou medicação, as quais se traduzem em códigos alfanuméricos submetidos a sistemas de facturação e seguros de saúde. O código é fundamental, não só para a facturação e para os reembolsos, mas também para o cuidado dos pacientes e estudos epidemiológicos.

No local onde a experiência teve lugar, um sistema de IA fora recentemente usado para ajudar os programadores clínicos a examinarem as fichas dos pacientes. Anteriormente, os programadores clínicos liam as fichas e sublinhavam informações relevantes com uma caneta. A IA retirou algum do peso desse processo ao analisar as fichas e encontrar informações sobre tratamentos farmacológicos para apoiar o pagamento dos seguros de saúde.

Portanto, vimos isto como uma oportunidade para os programadores clínicos, que são enfermeiros, aplicarem ainda mais a sua experiência ao formarem o sistema de IA para que valide com mais precisão ligações genuínas entre problemas médicos e tratamentos. O dever de actualizar as ligações de IA pertencia até então ao cientista de dados, que procuraria padrões nas informações manuais dos peritos em código médico e actualizaria a base de dados em conformidade. Na experiência, porém, uma interface nova e simples permitiu aos programadores aplicarem a sua experiência clínica (e alguns conceitos estatísticos básicos) para actualizarem e validarem as ligações na base de dados da IA.

O sistema simbiótico resultante fez com que humanos e IA solidificassem os seus pontos fortes. Com a IA a progredir em tarefas repetitivas e lineares com muito volume e precisão, os programadores puderam concentrar as suas competências e atenção em casos mais complexos que exigem experiência, tomada de decisão e análise crítica.

À medida que a sua noção de IA cresceu, os programadores conseguiram tomar decisões que estavam para lá do âmbito de um cientista de dados sem formação médica. Por atingir resultados mais adequados do que os programadores ou os sistemas de IA conseguiriam de forma independente, este fluxo de trabalho não só gera mais valor a curto prazo, como é mais promissor para melhorias a longo prazo no cuidado aos pacientes, com base em parte nas ligações complexas feitas pelos programadores.

 

Possibilitar a colaboração humano + IA numa empresa
Embora pequena em escala, a experiência tem grandes implicações para líderes, colaboradores, cientistas de dados e gestores que procuram moldar os sistemas de IA e os empregos do futuro. Transformar colaboradores que são simplesmente consumidores de IA em produtores de resultados de IA nos processos que criam valor crescente. Para criarem esses sistemas simbióticos muito mais valiosos, as organizações devem ter em mente estes princípios básicos que surgiram da nossa experiência:

Desafiar o pressuposto de que a IA é sempre superior aos humanos. Os líderes e os colaboradores aceitam muitas vezes esse pressuposto sem reservas. Segundo a nossa experiência, os programadores clínicos pensavam inicialmente que os colegas humanos estavam a cometer erros que na verdade eram atribuídos à IA. Mas à medida que continuaram a trabalhar com a IA e a compreender o seu poder e limitações, reconheceram a fonte dos erros e como os abordar. Em vez de ultrapassarem as capacidades humanas, esses sistemas colaborativos podem aumentar o valor dessas competências e melhorar o desempenho da IA.

Sejam abertos e transparentes com os colaboradores sobre os planos para a IA e o seu impacto no futuro. À medida que passamos para uma força de trabalho mais apoiada na IA, nem todos irão apreciar as mudanças nos seus cargos, competências ou responsabilidades – principalmente quando a sua subsistência está em jogo. Os colaboradores aceitarão com mais facilidade os sistemas simbióticos do que uma IA individual feita para ultrapassar as pessoas. Ao desenvolverem sistemas simbióticos, ajudem os colaboradores que não estão familiarizados com a IA a desenvolverem uma relação positiva com ela. Na nossa experiência, os programadores clínicos referiam-se frequentemente à IA que estavam a formar como uma criança a quem ensinavam coisas novas.

Explorar as motivações intrínsecas dos colaboradores. O sistema simbiótico de código médico foi feito para aproveitar o desejo dos enfermeiros de aplicarem os seus conhecimentos médicos. Como resultado, sentiam-se empenhados nos seus novos cargos, tendo controlo sob o seu trabalho e dominando-o. Após trabalharem diariamente com o sistema, oito em cada nove programadores clínicos sentiam-se mais optimistas a trabalhar diariamente com a IA, e dois terços sentiam-se optimistas em relação a futuras oportunidades de trabalho. No geral, sentiram-se motivados para aprenderem novas capacidades técnicas e aprofundar os seus conhecimentos médicos, o que aponta para possíveis benefícios em negócios apoiados na IA.

Investir nas pessoas. Quando pensamos em investir na IA, temos tendência para pensar primeiro na tecnologia. É importante, mas as pessoas estimulam o valor do negócio. Investir nos colaboradores para que estes possam desenvolver relações com a IA nos seus cargos é uma estratégia a longo prazo que pode aproveitar competências e valor anteriormente desconhecidos no local de trabalho. Por exemplo, os formadores de IA são uma das três novas categorias
nos negócios apoiados na IA e nos empregos tecnológicos, mas muitas grandes empresas estão a subcontratar o cargo. Em contrapartida, a nossa experiência fez com que colaboradores existentes aplicassem os seus conhecimentos de uma nova maneira para que formassem a IA sem a necessidade de subcontratação. Além disso, a requalificação técnica não era um pré-requisito para trabalhar com o novo sistema. Na verdade, com a estrutura certa, a IA pode ser vista como uma ferramenta fácil de usar que permite aos colaboradores fazerem melhor o seu trabalho.

Concentrem-se na função, não na sofisticação. Os sistemas simbióticos de sucesso colocam a simplicidade à frente da sofisticação e valorizam a transparência e a facilidade de utilização em detrimento da complexidade. Cientistas de dados e designers terão de trabalhar de perto e em conjunto para criarem sistemas de IA simbióticos e centrados em humanos que permitam que peritos humanos, como os enfermeiros da nossa experiência, formem e melhorem continuamente os sistemas, sem terem eles próprios uma extensa formação. Entretanto, os cientistas de da- dos – um recurso escasso que se deve tornar ainda mais escasso – podem usar o seu tempo e talento para identificarem oportunidades de negócio adicionais nos processos de uma organização e não para operarem e manterem os sistemas de IA existentes.

Co-criar e experimentar. Assim que identificam o processo ou fluxo de trabalho onde pessoas e IA podem trabalhar simbioticamente, certifiquem-se de que todos os stakeholders trabalham e fazem experiências em conjunto desde o início. Os designers e peritos em dados devem colaborar o mais cedo possível para assegurarem um sistema útil e fácil de utilizar. Envolvam os colaboradores e co-criem com eles para se certificarem de que as suas necessidades e motivações são ouvidas e incorporadas nas de- cisões de design. Avaliem como as pessoas usam o sistema e não verifiquem apenas a produtividade, mas também a qualidade da experiência. Obtenham feedback dos utilizadores; e se virem um aumento de burnout, tédio ou desmotivação, reajam e reestruturem à medida que for necessário.

 

Olhar para o futuro
A automatização incessante que contorna as opiniões humanas está a revelar-se uma aplicação de IA a curto prazo e insatisfatória. Ao nível operacional, um enfoque exclusivo na automatização cria processos inflexíveis e frágeis. Pior, deixar as pessoas de fora faz com que se perca uma rica fonte de valor acrescentado e desperdiça os conhecimentos que organização mantém. Pior de tudo, cede o futuro à concorrência que prefere desenvolver sistemas simbióticos nos quais humanos e máquinas melhoram continuamente o desempenho mútuo.

Para desenvolverem esses sistemas, as organizações precisam de olhar a longo prazo. Com a IA a varrer praticamente todos os sectores actualmente, os líderes querem estar a par da tendência a curto prazo. Mas precisam de perceber como posicionar a força de trabalho para aproveitarem a vaga que aí vem. Isso significa reconsiderar e investir em cargos e responsabilidades que estão a três a cinco anos de distância.

Ao usarem esta visão a longo prazo, juntamente com uma disponibilidade para fazerem experiências, os gestores podem ganhar espaço para a credibilidade, testar as opiniões dos stakeholders e criar processos e empregos que aproveitem ao máximo a inteligência colaborativa. À medida que IA e humanos se tornam mais inteligentes ao trabalharem juntos, o sistema cresce organicamente nas mãos daqueles que mais trabalham com ele. Ao abraçar processos simbióticos, a organização cumpre a sua obrigação ética para com o seu bem mais valioso – as suas pessoas.

Este artigo foi publicado na edição de Janeiro da Human Resources.

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