A IA veio para ficar. A Gestão de Pessoas tem duas missões: ensinar os colaboradores a usá-la e reforçar as power skills
Na 26.ª edição da conferência Human Resources Portugal, que decorreu ontem no Museu do Oriente, em Lisboa, a conversa de líderes juntou Vanda de Jesus, Portugal country head da iCapital, Vera Rodrigues, head of People MC | Sonae, e Nuno Troni, director da Randstad Portugal, para falar sobre “O que verdadeiramente diferencia as empresas?”.
Por Tânia Reis | Fotos NC Produções
Num cenário de cada vez mais desafios para as empresas e para a Gestão de Pessoas, o envolvimento de todos, sem excepção, é crucial. Ainda que a tecnologia e a IA não possam responder a todos esses obstáculos, constituem um parceiro valioso. O moderador Ricardo Florêncio, CEO do Multipublicações Group, deu o pontapé de saída.
Já se sente efectivamente a questão da IA dentro das empresas?
Vanda de Jesus — Questionando a plateia se alguma vez já usou ferramentas como o ChatGPT, Bart ou Bing a título pessoal ou profissional, creio que a resposta está dada. É impossível não estarmos a ser inundados pela IA. Sou uma optimista e, para mim, a tecnologia é um enabler e um enhancer das competências, mas nunca como agora isto foi possível.
Na iCapital, lançámos um chat interno para usar as mesmas tools que temos online, mas dentro da empresa, com informação da empresa, e as utilizações são tantas, a capacidade e o modo como simplifica a nossa vida é tal, que a dicotomia estará no que conseguimos ajudar as pessoas a perceber e a não ficarem assustadas, com formação e upskilling. As capacidades da IA generativa podem ser usadas por qualquer pessoa, mas nas áreas de conhecimento, como software engineering, e na relação com clientes e colaboradores será uma mudança única nos próximos meses.
Vera Rodrigues — É difícil imaginar um tema mais relevante do que este. As equipas de Recursos Humanos também têm de ser elementos transformadores. Para que as equipas de Gestão de Pessoas deixem de ser vistas pelas empresas como a “caixinha das coisas bonitas”, é importante que sejam cada vez mais capazes de ser elementos transformadores dos seus negócios e contextos empresariais. Têm de ser first movers.
No nosso caso, por trás de colocar um saco de arroz numa prateleira há cada vez mais dados, mais analítica, tecnologia e sofisticação. Na campanha de Manuais Escolares do Continente, por exemplo, desenvolvemos um chat para responder de forma mais assertiva e eficaz às dúvidas dos clientes sobre a compra de manuais escolares.
Na área de Gestão de Pessoas, lançámos um piloto, que vamos adoptar, para conseguir fazer a triagem de currículos em massa e tirar o máximo potencial de uma base de dados de candidaturas espontâneas. Uma start-up criou um algoritmo que ajudou a fazer a leitura de todos os currículos e a considerar para funções onde tínhamos necessidades. Cumprimos o propósito de responder a todas as candidaturas enviadas, de responder à necessidade de preencher vagas, e de melhorar a employee experience das nossas pessoas e das equipas de Gestão de Pessoas. Entre vários exemplos, fizemos um levantamento das principais questões dos colaboradores aos gestores de Recursos Humanos e montámos um MC bot que responde, de forma directa, às dúvidas dos colaboradores, o que permitiu libertar tempo de qualidade para outras tarefas.
Nuno Troni – Creio que temos, actualmente, um mercado a duas velocidades: algumas grandes empresas e multinacionais que usam a IA no seu dia-a-dia, ainda que residualmente, e outras (99%) que não têm experiência em IA.
Com todo este mundo tecnológico, o que mais valorizam e procuram as empresas?
Nuno Troni — Continuam obviamente à procura das hard skills e das soft skills, o que se nota é um peso maior nas componentes mais humanas em detrimento do saber fazer. E há funções mais ameaçadas pela IA do que outras, por exemplo, o sector tax and legal, altamente qualificado, e creio que a IA impacta muito mais o white colar do que o blue colar. Há um peso maior na componente mais humana, como o pensamento crítico, a capacidade de inovação e liderança. O impacto ainda não é tão significativo, mas para lá caminhamos.
Vera Rodrigues — Temos de pensar quais as skills que são pedidas hoje, mas também nas que vão ser mais importantes — e que devemos desenvolver, consolidar e ensinar — e fazer a diferença no futuro.
Após termos identificado um conjunto de competências, como advanced ou business analytics, na componente mais hard, mas outras como empatia, adaptabilidade e resiliência, na componente mais de power skills, implementámos um programa de upskilling e reskilling, que trabalhamos em simultâneo, e o balanço das duas é fundamental. O tema da adaptabilidade e do aprender a aprender é muito importante, e está relacionado com a questão de como podemos manter-nos úteis, empregáveis e relevantes num mercado de trabalho que muda constantemente, que hoje requer uma determinada hard skill, mas que no futuro pode requerer outra. Essa capacidade de regenerarmos o conhecimento e de termos a flexibilidade de adaptabilidade para navegarmos essa onda é o que fará a diferença entre quem fica para trás e quem conseguirá avançar.
O que diferencia as empresas? A tecnologia que usam ou as pessoas que têm?
Vanda de Jesus — Complementando a resposta da Vera, acrescentaria duas coisas. Há que reforçar a curiosidade que perdemos em criança, e a autogestão. Temos de estar muito mais preparados para conseguirmos gerir o stress e a frustração, para garantir a nossa sanidade mental. Regressando à pergunta, a tecnologia não será suficientemente diferenciadora porque ela terá de estar lá… nas pessoas é que haverá a diferenciação e, portanto, tudo o que falamos, de como posicionamos as nossas pessoas do ponto de vista da forma como usam esta tecnologia, isso é que será diferenciador. Outro factor será a personalização. Com tudo o que temos disponível, nenhum de nós, como cliente B2B ou B2C, permitirá qualquer interacção que não seja personalizada. A tecnologia e a IA permitem fazer 80 a 90% dessa personalização, mas depois há os 10% que é a empatia e o human touch.
Empatia, ética, criatividade, entre outros, começam a ser mais procuradas. Como se procuram essas skills?
Nuno Troni — Nos processos de recrutamento mais tradicionais era o “saber fazer” e, numa hora de entrevista, estávamos 80% do tempo a “bater nesta tecla” e muito baseado na experiência para tentar ser mais preditivo. Hoje, o shift do que as empresas procuram está nas power skills. E isso é feito muito numa lógica de assessment ou de prova de caso, mas num contexto de avaliação completamente distinto do que fazíamos e, portanto, o próprio processo muda por isso, mas também estamos a apalpar terreno para perceber como e em que contexto pode ser feito. O processo de recrutamento tem de se adaptar a cada caso e tem de ser personalizado.
Vera Rodrigues — No âmbito da fidelização de que a Vanda falava antes, há poucos exemplos de sofisticação analítica como o do cartão Continente, e por isso hoje temos folhetos personalizados para os clientes. Voltando à pergunta, já há bons assessments para aferir as power skills. Estamos, neste momento, a integrar nos nossos sistemas um bot que permite colocar a um candidato, que vá à nossa página para uma determinada função, um conjunto de perguntas e, com base nas respostas, fazer uma aferição dessas competências mais difíceis de apurar. E no piloto que referi há pouco, o algoritmo permitiu inclusivamente direccionar algumas pessoas para posições que não escolheram. Estamos a retirar mais eficácia, mais produtividade e mais valor acrescentado com a utilização deste algoritmo. Recentemente, a “Science” pediu a dois grupos que fizessem um comunicado à imprensa, uns com recurso ao ChatGPT, outro sem acesso à ferramenta, para testar a produtividade, a rapidez, a qualidade, a experiência, entre outros. Obviamente, os resultados do primeiro grupo superaram os do segundo. E preparem-se porque é uma questão de tempo. Nós iremos chegar à semana de trabalho de quatro dias.
Num minuto, algumas notas finais que queiram partilhar…
Vanda de Jesus — Aproveito para falar no papel dos líderes, que é gerir todas estas mudanças. Os responsáveis de Gestão de Pessoas têm de ajudar os líderes neste processo, mas acima de tudo têm de envolver todas as pessoas. Os colaboradores não podem ter a sensação de que a IA vem para lhes roubar o emprego, têm de estar envolvidos no processo de utilização destas ferramentas. E outro tema importante é o da ética. Temos de ser muito mais conscienciosos na forma como usamos a IA e transpor para estas ferramentas tudo o que são os nossos princípios das empresas e dos negócios. E, por fim, a responsabilização. O mundo será sempre o que fizermos dele, e não podemos estar sempre a responsabilizar os outros. E o que não fizermos ditará o futuro.
Vera Rodrigues — Temos de matar de vez a dicotomia ser humano/máquina. O futuro será humano com máquina ou humano sem máquina. A complementaridade é a quinta revolução a que assistimos e temos de integrar isso no nosso pensamento. Deixo também um repto — os riscos de que já falámos não podem bloquear-nos, e temos de pensar, cada um no seu papel e na sua função, como tirar mais partido da tecnologia. Temos de ser capazes, mesmo nas equipas de Gestão de Pessoas, de também nisso ajudar as nossas lideranças a identificar este caminho de transformação.
Nuno Troni — O grande desafio que as empresas têm, e vão ter, será na gestão da força de trabalho. Ou seja, como garantir que todos os colaboradores conseguem fazer essa transformação e têm as competências necessárias, seja via reskilling ou upskilling, para poderem integrar o uso de IA e da tecnologia no seu trabalho.
Acho que vai ficar muita gente para trás. Para terminar, no curto prazo, dificilmente perderemos muitos empregos para a tecnologia e a IA, mas facilmente perderemos o nosso emprego para alguém que saiba utilizar a IA. Portanto, há aqui dois momentos: um é se eu consigo, ou não, ser complementar e ser uno com uma máquina, e, numa segunda fase, teremos a eliminação de postos de trabalho com a criação de outros.