Berta Montalvão: «Se os salários fossem mais altos e a carga fiscal mais baixa, muitos talentos não sairiam do país»

Defende que ter uma experiência multicultural não tem preço e que todos os profissionais deveriam emigrar pelo menos uma vez. Para Berta Montalvão, apenas a melhoria salarial e uma política migratória de reinserção será capaz de atrair de volta os jovens portugueses. Mas deixa um alerta: a falta de compreensão dos recrutadores e das empresas sobre o que é ser emigrante e as competências e valências desenvolvidas por esses perfis têm de ser valorizadas nas entrevistas de emprego.

Por Tânia Reis

 

Com mais de duas décadas na área de Gestão de Recursos Humanos, o percurso de Berta Montalvão passou por Angola onde viveu e trabalhou durante 13 anos, outros cinco em Timor-Leste até regressar a Portugal no ano passado. As vivências, os momentos de superação e os desafios da migração, em particular nos países da CPLP, estão espelhadas na sua primeira obra “Carreiras Lusófonas ‒ Experiências e Desafios da Migração”.

Tem mais de 20 anos de experiência em Gestão de Recursos Humanos, em mercados como Angola, Timor-Leste e Portugal. Quais as principais diferenças que destaca entre estes mercados de trabalho?

Trabalhar em diferentes continentes requer uma assimilação rápida das tradições, das formas de estar e de trabalhar. Estamos a falar de países muito diferentes, com culturas distintas, com necessidades e níveis de desenvolvimento também diferentes. São países que não devem ser comparados, devendo ser analisados de forma individualizada, na minha opinião.

Angola cresceu muito e depressa nos primeiros 10 anos deste novo milénio. Tive a sorte de ter emigrado para Luanda em 2005 e ser testemunha da mudança estrutural que a cidade, e o país, sofreu e acompanhar o desenvolvimento e a construção de infraestruturas importantes para o país. O “antes e depois” é abismal, resultado de uma forte aposta na reconstrução do país, investimento nos recursos humanos locais e integração de milhares de imigrantes que ajudaram o país a desenvolver-se, nomeadamente os portugueses. As oportunidades de trabalho e carreira que aqui encontrei dificilmente iria encontrar em Portugal, aos 24 anos de idade.

Sobre Timor-Leste, apesar da relação histórica que tem com Portugal, o país também apresenta uma forte influência da Indonésia e da Austrália. É um país onde se fala diariamente quatro línguas (tétum, português, bahasa indonésio e inglês), o que constitui por si só uma barreira às relações sociais e negócio. Formalmente, a independência foi proclamada em 2002 e o país ainda se encontra em estado de reconstrução. A economia está assente essencialmente nos projectos do governo, com recurso ao fundo soberano petrolífero, e das agências internacionais. O tecido empresarial ainda é diminuto e deficitário. A população detém um poder de compra muito baixo, o que não ajuda em nada a economia do país. Faltam bons quadros e recursos humanos em todas as áreas. O caminho para o desenvolvimento ainda é longo, mas o país está a desenvolver-se com recursos próprios. Mas é preciso criar alternativas no país e não basear a economia em apenas um único recurso.

Em Portugal, é o que já conhecemos… Temos boas empresas, muitas delas de renome internacional, a operar no país. O nível de qualificação das nossas pessoas é alto e o sistema de ensino é muito bom, quando comparado com as outras duas realidades em que vivi. Por isso, na minha perspectiva, é bem mais fácil trabalhar neste contexto, onde uma parte significativa das empresas já apresenta na sua estrutura processos de trabalho, tecnologia e recursos adequados. Apesar de ser um mercado altamente competitivo em termos profissionais, as empresas estão bem desenvolvidas e não apresentam as carências e limitações com que nos deparamos em Angola ou Timor-Leste.

Basicamente, em Timor-Leste ainda está tudo por fazer, em Angola o nível de desenvolvimento e tecnológico das empresas já é aceitável e, em Portugal, os processos de trabalho e a inovação estão bem mais consolidados. As necessidades de mão-de-obra são distintas nas três geografias e os desafios profissionais também. No entanto, em qualquer destas três realidades é possível desenvolver uma carreira interessante e abraçar desafios profissionais que nos proporcionam o crescimento profissional e pessoal. Tudo depende do que estamos à procura e em que ambientes nos sentimos mais valorizados.

 

Portugal tem longa tradição de emigração. A partir da década de 60 foram muitos os que partiram em busca de melhores condições de vida. Nos últimos anos têm aumentado também os cidadãos de outras nacionalidades que escolhem o nosso país com o mesmo objectivo. Acredita que a balança está equilibrada?

Os números da migração são estimativos, por não ser obrigatório o registo ou a comunicação oficial da saída de cidadãos do país. Precisava de conhecer os números reais da emigração e da imigração para responder a essa questão com exactidão. Contudo, as estatísticas disponibilizadas pelo Observatório da Emigração já nos permitem ter uma ideia do saldo migratório dos anos mais recentes. Na primeira década do novo milénio, a imigração foi sempre superior à emigração, mas a partir de 2010 esses valores inverteram-se, ou seja, houve mais portugueses a sair do país do que estrangeiros a entrar em Portugal. Entre 2011 e 2015, o volume de saídas foi muito significativo, tendo-se registado sempre valores acima dos 100.000.

Actualmente, acredito que o saldo migratório seja o oposto, que haja mais estrangeiros a entrar no país e menos portugueses a sair. No entanto, o número de portugueses a sair do país ainda é elevado face às nossas necessidades. Mas respondendo à questão, acredito que a balança não esteja equilibrada, e que o número de emigrantes portugueses seja superior ao número de imigrantes que entraram no nosso país desde 1960. E se considerarmos a emigração de 2.ª geração – os descendentes -, acredito que o número de portugueses que esteja no exterior seja ainda maior.

 

E no que diz respeito a trabalhadores qualificados? Portugal “exporta e importa talento” em igual proporção?

Mais uma vez, os números não são totalmente conhecidos, mas acredito que possa estar minimamente equilibrado, se pensarmos que só nos anos mais recentes deste novo milénio é que os portugueses mais qualificados começaram a sair do país com alguma expressão. Nos períodos anteriores, a maior parte dos emigrantes apresentava baixas qualificações e foram integrados em funções mais indiferenciadas.

Em relação aos imigrantes, apesar de ser mais notória a presença de estrangeiros em trabalhos que requerem menor habilitação literária, não nos podemos esquecer que Portugal recebe muitos nómadas digitais, investidores, empresários e gestores com habilitações superiores. Muitas empresas portuguesas já são geridas por internacionais e vários são os quadros seniores e intermédios a ocupar posições de liderança e gestão nas nossas organizações.

Se pensarmos em termos de cidadãos europeus, é impossível ter essa informação devido às políticas transfronteiriças em vigor. Também não podemos esquecer que as universidades portuguesas recebem centenas ou milhares de estudantes internacionais todos os anos. Podem não estar a trabalhar, mas de alguma forma contribuem para o crescimento da nossa economia.

 

Que desafios e oportunidades traz esse cenário?

Sendo filha de imigrantes – refugiados, na verdade – e eu própria ex-emigrante, olho sempre para este fenómeno como algo positivo para os países. O reforço da demografia, a contribuição para a economia e a sustentabilidade da Segurança Social de Portugal são três dos aspectos fundamentais que a migração proporciona, no meu entender. Além do mais, a diversidade de nacionalidades, idiomas e culturas deveria promover cada vez mais o tema da inclusão nas empresas e na própria sociedade. Não vivemos isolados e cada vez mais há famílias multiculturais em Portugal e no mundo. Na academia, o intercâmbio internacional tem sido muito rico para as nossas universidades, colocando o nome de Portugal como um país que consegue atrair jovens para estudar, ou os nossos estabelecimentos de ensino nos rankings mundiais.

Um dos principais desafios da migração que ainda é preciso trabalhar com afinco é a aculturação e o domínio da língua portuguesa. Havendo um bom conhecimento destas duas áreas, a integração dos imigrantes no nosso país será mais facilitada em vários aspectos, desde as questões do dia-a-dia, como nas rotinas profissionais ou o contacto com as entidades públicas, por exemplo, como o centro de saúde ou uma repartição de finanças.

 

Além dos salários mais elevados, em termos de cultura organizacional que benefícios encontram os portugueses que emigram?

Um dos aspectos que faço sempre questão de referir em relação a este tema é que, mais do que se ganha, é o que se consegue poupar. É verdade que, quando emigramos, temos acesso a um salário mais elevado, regra geral. Mas por outro lado, também gastamos muito mais com as despesas de alojamento, supermercado, transporte, etc. É sempre preciso equacionar o nível de vida do país para onde nos deslocamos e perceber qual é o nível da nossa poupança, independentemente do salário que vamos auferir. Por isso, ter um salário elevado é muito relativo, pois a nossa poupança depende sempre dos nossos custos mensais e do nível de vida do país de acolhimento.

Focando na questão da cultura organizacional, estar exposto a um ambiente cultural diferente do nosso já é um ganho. Se essa empresa for uma multinacional, é bem provável depararmo-nos com um ambiente multicultural e termos colegas de diferentes nacionalidades. E o que ganhamos com esta experiência não tem preço… Aprendemos imenso quando partilhamos a nossa cultura com outras nacionalidades e absorvemos uma cultura nova. Ampliamos o nosso pensamento, crescemos como pessoas e estamos mais despertos para respeitar e aceitar as diferenças. Se conseguirmos assimilar as diferenças culturais e o contexto da geografia onde nos encontramos, estaremos mais alinhados com a cultura organizacional, à partida.

Naturalmente que existem outros factores que vão impactar a cultura organizacional, mas a integração na sociedade que nos acolhe é muito importante para irmos ao encontro desse alinhamento que se pretende, em termos organizacionais.

 

E quais os principais desafios com que se deparam?

Quem emigra corre sempre o risco de não se adaptar no novo país, à cultura ou à forma de trabalhar. Ou a família que acompanha o emigrante não se adaptar ou não gostar do país. É real e eu já vi acontecer algumas vezes, tanto em Angola como em Timor-Leste. O tema da língua é também um bloqueio, mas ao nível dos países lusófonos esta questão é bem mais fácil, apesar de cada Estado-Membro ter a sua própria língua nacional e dialectos.

A gestão da saudade é também crítica para garantir o sucesso de uma experiência migratória. Nem sempre é possível migrar com toda a família. Felizmente, hoje temos várias opções de comunicação, o que nos permite estar presentes, mesmo estando ausentes fisicamente. Antigamente era bem mais difícil e dispendioso manter uma comunicação frequente com a nossa família e amigos. Para quem tem filhos em idade escolar, o sistema de ensino também pode ser um desafio e este tema tem de ser devidamente analisado antes de se tomar a decisão de emigrar.

 

Como pode Portugal resolver o problema da escassez de talento, de competências e de produtividade?

Sem dúvida nenhuma, através da melhoria das condições salariais e de trabalho e de uma política migratória de reinserção para atrair de volta os jovens portugueses que saíram nos anos recentes.

Os salários praticados em Portugal são pouco atractivos. A carga fiscal sobre o rendimento é um absurdo e o valor líquido que se leva para casa é muito baixo para fazer face às despesas das famílias. Acredito que se os nossos salários fossem mais altos e a carga fiscal mais baixa, muitos portugueses talentosos não sairiam do país.

As empresas também carecem de uma atenção cuidada por parte do Governo, no que diz respeito à carga fiscal. Há que criar novos e melhores incentivos à contratação de jovens qualificados, investir na formação contínua destes recursos para que as organizações possam tornar-se mais competitivas e tecnologicamente mais desenvolvidas.

 

Onde entram as políticas e estratégias de Diversidade, Equidade e Inclusão nessa equação? Que benefícios trazem para as empresas, para a economia e para a sociedade?

Acho que Portugal começa a dar os primeiros passos nesta área. Já se tem feito alguma coisa em relação às políticas da igualdade de género, mas existem outras formas de diversidade, equidade e inclusão ainda esquecidas, como é o caso da diversidade geracional ou das minorias étnicas, por exemplo.

As empresas continuam à procura de “pessoas iguais” e não arriscam na contratação de perfis diferenciadores. Mais do que políticas, é preciso passar à acção. Está na “moda” promover a DEI nas empresas, mas em concreto o que se tem feito? Qual o impacto dessas políticas nos resultados financeiros das empresas? O que é que essas políticas acrescentam para os seus colaboradores?

 

E que desvantagens representam as assimetrias dentro das organizações?

Quando não há diversidade de perfis, também é difícil encontrar soluções diferentes. Está provado que a diversidade de ideias, opiniões e experiências permite uma visão mais ampla do problema e a obtenção de resultados de negócio mais robustos e diferenciadores.

 

Passou pela experiência de emigrar e regressar a Portugal. Resumidamente, que balanço faz?

Não poderia estar mais satisfeita com este meu percurso. Acho que todos os profissionais deveriam sair do nosso país, pelo menos uma vez. Trabalhar noutros mercados, em diferentes contextos e rotinas é extraordinário. Permite-nos ter uma melhor visão do mundo, conhecer novas formas de trabalhar, contactar com diferentes culturas e tradições. Emigrar, na minha perspectiva, torna-nos pessoas mais completas e permite o desenvolvimento de outras capacidades, por nos obrigar a sair da nossa zona de conforto e abandonar dinâmicas que conhecemos e dominamos bem. Emigrar permite-nos desenvolver o nosso lado mais inclusivo, tratar todos por igual e respeitar as diferenças culturais, políticas, religiosas, etc. Emigrar é sinónimo de crescimento pessoal e profissional. Se pudesse voltar atrás no tempo, faria tudo igual.

A experiência de sair é diferente do regresso, pelo menos no meu caso. A minha integração em Angola e Timor-Leste foi muito mais fácil do que a minha reintegração em Portugal, após quase 20 anos de ausência. É estranho dizer isto, mas na verdade senti alguns desafios pessoais e profissionais quando decidi voltar para Portugal. Em termos pessoais, perdi algumas das minhas relações sociais ou fiquei mais afastada de alguns amigos. Não estive presente em muitos momentos importantes das suas vidas, como eles também não estiveram nos meus. Quando emigrei em 2005 mal existiam redes sociais, pelo que não era possível comunicar com tanta frequência como fazemos hoje, por exemplo.

Do ponto de vista profissional, acho que ainda existe uma grande falta de compreensão dos recrutadores e das empresas sobre o que é ser emigrante e que desafios encontramos quando estamos fora da nossa zona de conforto. Há um grande desconhecimento sobre as valências e as competências que temos de desenvolver para nos conseguirmos integrar numa sociedade que não é a nossa, e tal aspecto não é valorizado nas entrevistas de emprego. Ouvimos dizer, cada vez mais, que é preciso contratar pessoas com experiência e background diferentes, para que as empresas possam ser mais diversas e inclusivas. Mas, na verdade, o mercado continua a não contratar esses perfis, sabendo que existem e que poderiam ser uma mais-valia para os negócios.

Por outro lado, o país também não apresenta políticas migratórias de retorno atractivas ou facilitadoras da reintegração do ex-emigrante na economia ou mercado de trabalho. E isso constitui em si também uma limitação para quem esteve ausente do país durante vários anos.

 

Ultimamente, o tema da migração tem estado na ordem do dia em Portugal. Como analisa a situação?

Tem estado sim, mas não pelas melhores razões, infelizmente. Portugal sempre recebeu imigrantes e nunca esse tema foi tão abordado como nos dias de hoje. A verdade é que o país não estava e não está preparado para receber tantos imigrantes, mas a meu ver, trata-se de uma questão burocrática e administrativa, acima de tudo. Os imigrantes são bem-vindos, mas os processos de legalização são morosos, desajustados às necessidades do mercado de trabalho e temos falta de recursos para dar resposta a tantas solicitações. A ausência de respostas dos serviços migratórios e entidades públicas relacionadas faz com que o número de trabalhadores ilegais aumente e que haja um maior número de sem abrigo nas nossas ruas, por exemplo, para não falar das burlas que existem em torno deste tema ou simplesmente do descontentamento dos imigrantes que procuram o nosso país para trabalhar, mas que não conseguem receber resposta durante meses.

Se não formos céleres a dar resposta aos imigrantes, outros problemas sociais irão surgir, com forte impacto na nossa sociedade. Outra questão que tem de ser analisada é a integração dos imigrantes na sociedade. Se no passado recebíamos cidadãos de países com uma relação histórica com Portugal, com culturas e religião similares, como é o caso dos países da CPLP, hoje o nosso país atrai várias nacionalidades, tradições muito distintas da nossa. Por esse motivo, considero importante desenvolver um programa de integração, para que o choque cultural seja menor e que haja uma aculturação mais rápida dos nossos costumes e tradições, incluindo o domínio da língua portuguesa.

O país precisa dos imigrantes para equilibrar a demografia e garantir a sustentabilidade da Segurança Social. Em 2022, segundo os dados disponibilizados pelo INE, cerca de 24% da população portuguesa tinha mais de 65 anos de idade. À partida, esta fatia da população é reformada e já não contribui activamente para a economia do país. O contributo social dos imigrantes é necessário para que a minha geração e a seguinte possam ter acesso à reforma, por exemplo.

Por último, considero também ser relevante destacar que os imigrantes não são apenas as pessoas com baixas qualificações que vêm à procura de melhores condições e de uma oportunidade de trabalho em Portugal. Temos vários cidadãos estrangeiros, altamente qualificados, com excelentes condições financeiras, que procuram o nosso país para ocupar altos cargos nas nossas empresas, mas também para investir, designadamente no sector imobiliário. Também esses imigrantes necessitam de estar legalizados para que possam residir em Portugal. É um problema transversal a qualquer cidadão estrangeiro, independentemente da nacionalidade, habilitações literárias ou condição financeira.

 

Nesse sentido, que previsões faz para os próximos anos?

Não consigo adivinhar o que aí vem, mas sei que é necessário, de uma vez por todas, receber bem o imigrante que procura o nosso país para trabalhar, estudar ou investir. Todos merecem um tratamento digno e humano. O Governo necessita urgentemente de encontrar as melhores respostas para um problema que cresce todos os dias. É um tema complexo, de difícil gestão, mas não é impossível. Acredito que, envolvendo o sector privado na política migratória, possa haver um contributo mais significativo para a identificação das melhores práticas sobre este fenómeno.

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