Lições da pandemia para equipas executivas

Muitas decisões de gestão são ineficazes, ou produzem resultados opostos, porque o modelo em que se baseiam é preto e branco, enquanto a realidade é a cores.

Por Ricardo Vargas, CEO da Consulting House

 

© Catarina Zimbarra

O departamento de Saúde do Estado de Nova Iorque emitiu um comunicado no fim de Março, levando
o isolamento social à última consequência. Sob o mote “tu és o teu parceiro sexual mais seguro”, incentiva a masturbação como prática segura em tempos de Covid-19, desde que nos desinfectemos antes e depois, bem como quaisquer brinquedos ou objectos utilizados. Se menos de dois metros de distância de outro ser humano são um risco, as consequências eróticas são óbvias: sexo com outras pessoas, não.

Quando ligo a TV ou abro os sites e jornais online nestes dias de pandemia, encontro um padrão na narrativa de comentadores, políticos e aprendizes de vi- dente: “nada será como antes”. Dá a impressão que não restará pedra sobre pedra da nossa organização social depois desta fase: o capitalismo vai soçobrar, os regimes autoritários e populistas vão vencer, a globalização vai sofrer, o Estado sobrepor-se-á ao mercado, o teletrabalho será a única forma de produzir, a poluição desaparecerá; tudo e o seu contrário.

Gostaria de pensar que alguns aspectos fundamentais da forma como abordamos e resolvemos os nossos problemas mudarão. Mas tenho pouca esperança. Sobretudo porque, como psicólogo, conheço a mente humana e vejo na abordagem a este problema as reduções cognitivas que encontro em todas a situações normais, com consequências piores.

A maior parte do meu trabalho é focado no desenvolvimento da eficácia de equipas de gestão. As equipas executivas das multinacionais, ou grandes empresas portuguesas, são constituídas por pessoas competentes, inteligentes, sensatas e bem-intencionadas. No entanto, quando as juntamos em equipa, muitas vezes o resultado não é maior do que a soma das partes. E as razões são simples: os modelos mentais que as pessoas desenham para lidar com os desafios limitam a eficácia da sua intervenção.

 

Modelos mentais
Um modelo mental é uma representação da situação real, que nos permite realizar simulações de causalidade e de impacto de diferentes soluções possíveis. O modelo mental é construído com base em informação existente, aplicando sobre ela processos de pensamento aceites. E é aqui que começam os problemas. Os processos de pensamento aceites por um grupo contêm sempre pressupostos valorativos que determinam a qualidade e quantidade de informação necessária para entender o problema, bem como o tipo de solução a adoptar.

No caso da Covid-19, a fonte dos pressupostos é fácil de identificar: a ideologia e interesses dos governantes que tomam decisões. O impacto nos diferentes tipos de soluções geradas também. Se a nova infecção por coronavírus é vista como uma ameaça à credibilidade do Estado, silenciamos o médico que identificou a doença e manipulamos números da epidemia. Se é um problema de outro estado, não preparamos o país para o embate. Se não passa de uma gripezinha, apostamos na imunidade de grupo. Se são 15 casos que desaparecerão por si, não fazemos nada.

No caso das empresas os pressupostos podem ser menos evidentes, porque a ideologia é menos importante, mas estão lá em todas as decisões tomadas. E do mesmo modo limitam a eficácia de uma empresa para lidar com os desafios internos ou de mercado. Qual o significado de um novo concorrente? Como lidar com tecnologia potencialmente disruptiva? Como assimilar o crescimento de quota num mercado em diminuição constante? Até que ponto é importante o engagement dos nossos colaboradores? O que significa adquirir outra empresa? Qual o impacto de uma pandemia?

Qualquer decisão de gestão é baseada em valores, pressupostos, défices de informação e, consequentemente, modelos mentais mais ou menos ajustados à realidade. O desajuste entre a forma como achamos que a realidade funciona e a forma como ela realmente funciona é a maior fonte de erros na tomada de de- cisão em gestão. Não é por falta de informação que mais se erra, é por ter conceitos errados sobre a forma como o mercado ou os nossos colaboradores reagirão às nossas decisões.

É natural que isto aconteça. Todos temos enviesamentos cognitivos que nos impedem de ver a realidade tal como é, e nos forçam a ver a realidade tal como a queremos. Trata-se de mecanismos automáticos de processamento inconsciente que cumprem funções adaptativas do ponto de vista da espécie. Comprovados à saciedade pela investigação em Psicologia. Mas do ponto de vista de tomada de decisão o seu efeito é claro: diminuem a capacidade de entender e lidar com a realidade de forma eficaz. Nenhum modelo mental é perfeito, mas há uns mais errados que outros. E é responsabilidade da equipa executiva garantir que a empresa não sofre as consequências de uma modelação deficitária da realidade.

 

Lidar com a realidade
A realidade não é de esquerda nem de direita, não é crente nem agnóstica, não é conservadora nem liberal, não é rápida nem lenta, não é boa nem má. A realidade não tem qualidade inerente, não se engana, nem faz o favor de se adaptar aos nossos modelos. A realidade simplesmente ‘é’, e a maior parte das vezes ‘é’ complexa. Tem características que a tornam imprevisível, porque quase tudo o que é humano foi criado ou existe hoje num sistema complexo, globalizado e com vários tipos de relação entre elementos locais e globais, com benefícios materiais ou simbólicos de diferentes tipos, redes e canais de comunicação que se intersectam, mas funcionam com linguagens diferentes e valores por vezes antagónicos. Lidar com a realidade de forma eficaz exige entendê-la e aceitá-la. O sistema de ensino da maioria dos países, não prepara profissionais para entenderem a realidade dos sistemas humanos. Continua preso a uma visão mecanicista do real, em que para cada efeito há uma causa e para cada causa há um efeito. A causalidade nos sistemas humanos (leia-se complexos) é circular e múltipla. Existem muitas causas para cada efeito, muitos efeitos para cada causa, e causa e efeito não são lineares no tempo.

A ordem de confinamento territorial na Lombardia provocou a debandada generalizada que pretendia evitar e propagou a Covid-19 a toda a Itália. Os decisores não anteciparam que ‘o efeito viria antes da causa’, porque isso não consta dos seus manuais de saúde pública ou gestão regional. Seria cómico, se não fosse trágico, ver como a maioria dos governantes aplica um pensamento linear de comando e controlo quando as comunidades se movem por dinâmicas colectivas baseadas em percepção de eficácia pessoal na protecção dos seus interesses. Esta é uma propriedade emergente dos sistemas humanos que justifica fenómenos de massas aparentemente incompreensíveis.

Como as empresas são grupos humanos menores e o seu tempo de acção mais curto, a eficácia das decisões pode ser medida mais rápido. Mas o resultado pode ser igualmente trágico. A decisão de não abortar o lançamento do vaivém Challenger, 24 horas depois de a NASA ter sido avisada que a anilha vedante do combustível podia esfarelar-se em circunstâncias similares ao lançamento, foi determinada por pressupostos errados no modelo mental dos decisores. Os livros de gestão estão cheios de exemplos destes.

Muitas decisões de gestão são ineficazes, ou produzem resultados opostos, porque o modelo em que se baseiam é preto e branco, enquanto a realidade é a cores.

 

É o sistema, pá 
Um sistema humano tem características específicas que, uma vez entendidas, permitem a tomada de decisões mais eficazes. A resolução de um problema complexo não requer necessariamente decisões ou acções complexas. Por vezes basta a conjugação de várias acções simples. Mas estas devem ser baseadas no entendimento da complexidade do contexto que deu origem ao problema, e interromper a causalidade circular que o mantém. De outra forma podem produzir mais resultados negativos que positivos.

A acção simples de confinar toda a população em casa não resolve o problema da pandemia, por várias razões. A primeira das quais porque a pandemia é um problema complexo com várias dimensões: sanitária, económica, de saúde mental, política, entre outras. E cada agente vê apenas a sua parte do sistema, preconizando soluções que agravam as outras dimensões do problema. Negligenciar a dimensão económica agrava a sanitária. Negligenciar o número de mortos hoje desmantela a economia amanhã. Desproteger a saúde mental piora a saúde futura e reduz a produtividade. Mover uma variável afecta todas as outras. Esta é a natureza dos sistemas complexos. É assim em todos os problemas humanos, mesmo que não queiramos vê-lo quando não há mortes em causa.

Para ser eficaz, uma equipa de gestão deve modelar adequadamente o sistema que gere – a empresa – e o contexto em que opera – o mercado.

Uma das ferramentas mais eficazes para o fazer é o pensamento sistémico. Modelar o funcionamento do sistema como um todo permite antecipar diferentes cenários, resultados e impacto de acções em todo o sistema, não apenas num indicador.

Isto exige o conhecimento e aplicação de conceitos simples à tomada de decisão em gestão: causalidade circular, relações fortes vs fracas, perspectivas, fluxos, informação, delay de interacção, estruturas de reforço e equilíbrio, enviesamentos cognitivos, modelos mentais, propriedades emergentes, entre outros.

Distinguir criticamente variáveis, grupos-alvo, geografias ou territórios; qualificar relações entre indivíduos, grupos e variáveis; mapear perspectivas dos agentes; e entender o contexto do sistema em que tudo ocorre; são quatro acções simples que permitem modelar o impacto de cada medida, testar em pequena escala, aprender com o feedback e ajustar progressivamente as medidas de intervenção ao problema. É assim que se inova com sucesso, tanto na Covid-19 como em desafios empresariais quotidianos.

 

Isto é sobre equipas executivas
A consequência mais positiva desta pandemia é demonstrar que os modelos tradicionais de tomada de decisão são fraquinhos para lidar com problemas complexos. Tudo o que se baseie em causa-efeito linear, sequencial no tempo, isolado no espaço, ignorante dos processos e contextos de ocorrência, vai falhar, porque as dinâmicas de interacção humana são complexas.

A única razão para o estado de emergência é a vontade de reduzir a complexidade da decisão, através da eliminação da vontade individual e da possibilidade de acontecimentos sociais espontâneos. Confina-se para manipular a interacção humana e suspender temporariamente algumas variáveis. Simplifica-se a tomada de decisão anulando artificialmente a complexidade e adiando as consequências.

Excepto em monopólio ou manipulação ilegal, as empresas não têm o poder de determinar o que acontece ao seu mercado. Devem por isso ser muito melhores que os governos a entender como funcionam os ambientes internos e externos.

Uma equipa executiva tem esta tarefa facilitada porque o grau de complexidade das decisões empresariais é menor que a gestão de uma pandemia.

 

O programa segue dentro de momentos 
Uma das características principais de um sistema é a homeostase. A capacidade de regular o seu ambiente interno, e influenciar o externo, para manter um equilíbrio dinâmico de funcionamento que garanta a sobrevivência. Seres vivos e sistemas humanos têm-na.

A homeostase é a razão pela qual os sistemas preferem voltar ao equilíbrio inicial depois de um choque exógeno, em vez de morrer ou transformar-se em coisa desconhecida.

Vem isto ao caso porque é por não entender o papel da homeostase no funcionamento do sistema que os videntes preconizam mudanças absolutas em processos produtivos no mundo inteiro. É verdade que mesmo depois de se encontrar uma vacina algumas coisas não voltarão ao mesmo. Os agentes vão querer manter algumas vantagens adquiridas durante a pandemia. Mas estou em condições de garantir que a maioria dos cidadãos de Nova Iorque retomará a actividade sexual da sua preferência assim que a vacina vier.

Felizmente, a maioria das coisas voltará a ser o que era antes da Covid-19, embora com alterações. Infelizmente, a forma de modelar problemas será uma delas. Mas é isso que dá sentido ao desenvolvimento de equipas executivas: melhorar a qualidade do pensamento e a eficácia das decisões. E, se tudo correr bem, esse trabalho também continuará.

 

Esta artigo faz parte do Caderno Especial “Gestão de Talento”, publicado na edição de Maio (n.º 113) da Human Resources.

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