O factor humano é essencial
Na Nestlé Portugal há uma genuína preocupação em tratar bem os 1850 colaboradores. Quem o garante é António Reffóios, administrador-delegado e director-geral da Nestlé Portugal.
Por TitiAna Amorim Barroso
Estudos confirmam que um terço dos portugueses pensa que a Nestlé é uma empresa nacional. Umas das explicações possíveis é a reputação e a proximidade da marca aos clientes. A Nestlé está em Portugal em 11 categorias de produtos, e é líder destacada em oito. Em 2011, os drivers de crescimento situaram-se nas exportações e na inovação. «O respeito e a confiança passaram a ser os elementos-chave das empresas, juntamente com a qualidade das pessoas e dos produtos/ marcas. O reconhecimento de que o capital humano é importante, está totalmente consagrado na forma como as pessoas são geridas na Nestlé», admite António Reffóios. O administrador delegado e director-geral da Nestlé Portugal trabalha há 32 anos na empresa, numa relação de entrega absoluta.
Damos-lhe a conhecer o percurso de um dos principais líderes portugueses, os ensinamentos de 35 anos de trabalho, as seis prioridades estratégicas da empresa, o ambiente que se vive na Nestlé Portugal, os desafios e as vantagens competitivas, entre outros temas.
HR: A Nestlé Portugal viu as vendas situarem- se nos 624,1 milhões de euros e a registarem um aumento de 3,6%, em 2011. Que leitura?
António Reffóios: Tendo em conta um ambiente tão incerto, o chamado VICA World, também conhecido por VUCA World. [V de volátil, I de incerto, C de complexo e A de ambíguo] No mundo em que vivemos, que de uma maneira mais prosaica e menos enfática é um mundo de doidos, a primeira leitura que se pode fazer é que somos uma empresa que mostra uma grande resiliência face às grandes dificuldades, por um lado, quebras de consumo, e por outro, as transformações de mercado. Se analisarmos as razões para isto acontecer, há dois aspectos chave: o aumento das exportações de 27% em 2011 e a inovação que representa próximo de 15% das nossas vendas.
Nas exportações para as sociedades afiliadas, o grande ênfase resulta do reconhecimento das unidades fabris em Portugal, que são competitivas e altamente especializadas, como no caso de Avanca. Estamos a falar de 80 milhões de euros o que representa 13% da nossa cifra de negócios. Tivemos também um incremento muito importante nas exportações para terceiros e aqui alguma importância, por exemplo, do mercado Angolano, onde subsistem na memória das pessoas algumas das nossas marcas locais. E a exportação para a Grécia de café em grão, cerca de mil toneladas de café Buondi, tal como para a Ucrânia. Outro driver de crescimento importante foi a inovação: Nespresso, Dolce Gusto e Directo ao Forno.
Pese embora em muitas categorias os ventos estejam contra, temos conseguido assim crescer graças também à nossa capacidade de competir a nível interno, com outros países.
HR: O que é relevante nos dias de hoje?
António Reffóios: Cada vez mais são as pessoas que fazem a diferença. Sabemos que é hoje um cliché dizer-se que as pessoas são o activo mais importante das companhias. Mas creio firmemente que as pessoas, enquadradas dentro de uma cultura que possa responder aos desafios de hoje, são de facto uma vantagem competitiva enorme. O segundo elemento-chave tem muito que ver com o que Toffler designou de Prosumers. Hoje há um escrutínio muito grande de quem está por trás das marcas e produtos.
A reputação e o respeito pelas empresas são outras vantagens competitivas relevantes. Há uma diferença enorme na forma como as empresas hoje se apresentam e se exprimem. Antigamente, lá para os anos 80, as marcas só comunicavam com o target de 18 a 25 anos. Todas as empresas queriam ser sexy; hoje todas querem ser respeitadas. E isto tem que ver com mudanças enormes, até na forma como as grandes corporações e instituições são percepcionadas. A actual geração Y é muito crítica e mostra grande desconfiança relativamente às grandes empresas. O respeito e a confiança passaram a ser os elementos-chave para as empresas, juntamente com a qualidade das pessoas e dos produtos / marcas.
O caso da Nestlé é um caso paradigmático disto. A Nestlé goza de uma reputação extraordinária.
No survey interno a nível global realizado anualmente a Nestlé Portugal surge destacada em relação a todos os demais países da Europa. Está em primeiro lugar.
HR: A Nestlé Portugal é das empresas mais rentáveis do Grupo? O que fazem de diferente?
António Reffóios: Dentro da Zona Europa somos um mercado rentável, em linha com os níveis de rentabilidade do Grupo. Isto é relevante por sermos um país pequeno e mais afastado dos centros de produção, tendo assim custos adicionais relativamente aos demais países europeus. Apesar de cerca 50% das nossas vendas serem de produtos e marcas fabricados em Portugal, é verdade que há um outro tanto que é importado, maioritariamente da Europa. Aqui temos uma clara desvantagem comparativamente, por exemplo, com os nossos colegas franceses, pois é muito mais caro trazer um produto que é fabricado no centro da Europa para Portugal do que para França.
O actual CEO da Nestlé que foi aqui director-geral durante cerca de dois anos na década de 90, referia-se à Nestlé Portugal como uma jóia. E esta afirmação tem muito a ver com o reconhecimento quer do desempenho económico quer também, e muito em especial, da qualidade das nossas pessoas em Portugal.
Este elemento é fundamental para termos os níveis de rentabilidade que temos. É um país onde há uma quebra de rendimento disponível das famílias, em paralelo com a Grécia mas, apesar deste contexto adverso, decidimos fazer aumentos de salários em 2012. Não é que tenha sido um aumento considerável, foi entre 1,5 e 2%, mas fizemo-lo para justamente para dar um sinal de reconhecimento às pessoas.
O factor humano é essencial. Aqui também há uma genuína preocupação em tratar bem as pessoas. E se perguntar aos meus colegas se gostariam de ir trabalhar para outro sítio, uma esmagadora maioria, estou certo, provavelmente diria que não. E não é que não o pudessem fazer, é apenas porque aqui estão muito melhor.
HR: Mas estão também com níveis de dropout nunca antes registados.
António Reffóios: É curioso, mas é também natural que assim seja. Esta realidade tem que ver com a população muito jovem, que entra para ter uma primeira experiência de trabalho e sai. Mas apesar desta população tão jovem e de termos hoje quase 47% da nossa comunidade com menos de 35 anos – que é uma mudança geracional sem precedentes na Nestlé em Portugal – a média de antiguidade está nos 13 anos, o que significa que mesmo esta geração mais nova, que é muito mais experimentalista, vem para ficar!
E não é só o facto de as pessoas terem condições ou um conjunto de apoios, é o ambiente em geral. Temos a preocupação de ir medindo o ambiente na empresa regularmente e de uma forma geral as pessoas sentem-se como que protegidas.
HR: Que políticas específicas adopta para reter e motivar os colaboradores?
António Reffóios: A forma como nesta casa se procura gerir o capital humano tem aspectos muito particulares… Não somos paternalistas. Esta é uma empresa muito exigente, quer do ponto de vista das competências, quer do ponto de vista comportamental. O documento estruturante da forma como as pessoas são avaliadas é baseado nos princípios corporativos de gestão e liderança da companhia, e num conjunto de práticas que têm que ver com tudo o que é a avaliação de desempenho.
E esta é uma garantia para as pessoas, há uma importância inerente, ligada à revisão salarial e outra direccionada para a formação.
Hoje temos um modelo de avaliação que comporta treze competências, nove das quais são estritamente comportamentais. Tem a ver com o reconhecimento do papel essencial das pessoas, em qualquer organização, como por exemplo a capacidade de lidar com os outros, a capacidade de influenciar pela positiva, de liderar pelo exemplo, entre outras. Há mais de 20 anos que temos um processo de avaliação de desempenho que também ele tem evoluído com as mudanças e necessidades dos dias de hoje.
A avaliação é um elemento essencial, até em termos da própria segurança do colaborador, por uma razão óbvia: os colaboradores têm uma história, um registo que lhes transmite uma certa segurança. Quando um colaborador passa de bestial a besta é, eventualmente, o avaliador que tem um problema..!
O reconhecimento de que o capital humano é importante está totalmente consagrado na forma como as pessoas são geridas na Nestlé. Foi uma área em que praticamente não cortámos. No ano passado, fizemos perto de 50 mil horas de formação, temos um investimento que ronda entre 1 a 1,2% da cifra de negócios, isto é da ordem dos 600 mil euros.
HR: Quais são as grandes linhas mestras da sua actuação?
António Reffóios: Não temos, em aspectos estratégicos, grande liberdade. Cada chefe de mercado tem que seguir a estratégia global da Companhia. Falo disto abertamente, para não pensarem que sou eu o grande estratega. A Nestlé desde há alguns anos definiu o seu “road map”.
Tenho liberdade, como qualquer outro na minha posição, na forma como ponho em prática este “road map”. Dada a situação com que hoje nos confrontamos, há aspectos estratégicos que têm naturalmente uma relevância maior. Agora a nossa ambição, a visão, o modelo, as vantagens competitivas, os pilares de crescimento e operacionais mantêm-se inalteráveis.
O mundo mudou e está em mudança, mas o “road map” mantém-se inalterável.
A cultura, os valores e os princípios são mais importantes do que nunca. As pessoas são mais importantes do que nunca, tal como as escolhas.
HR: Qual a estratégia da Nestlé?
António Reffóios: Definimos do ponto de vista estratégico seis prioridades: a primeira prioridade desde logo é a importância de fazer escolhas e fazer escolhas significa para nós uma revisão permanente do nosso portefólio. A tentação generalizada é a de apanhar cada vez mais conceitos, lançar mais produtos e isto é, regra geral, gerador de uma tremenda complexidade. A segunda prioridade é a rapidez, ou a capacidade de detectar oportunidades, não é só de novos produtos, mas de novas formas de fazer negócio, novas parcerias, que num contexto anterior nunca foram considerados, novas formas de trabalhar ou novos processos.
A terceira prioridade é o ser muito “cost conscious”; temos um programa “Nestlé Continuous Excellence”, que começou sobretudo no ambiente fabril, mas que se estendeu a todas as áreas da companhia. É uma típica análise da cadeia de valor que visa detectar os desperdícios e acabar com eles. A quarta prioridade é a ligação aos diferentes parceiros, sejam eles fornecedores ou clientes, e a outros stakeholders, como por exemplo os profissionais de saúde.
Mas mais do que isso é também o reforço da ligação à comunidade em geral através de iniciativas várias como o programa Apetece-me dirigido às escolas do 1º e 2º ciclo ou o Nestum Râguebi agora integrado no desporto escolar, ambos em linha com o conceito de Valor Partilhado.
A quinta prioridade diz respeito ao digital e aos social media. Estamo-nos a dedicar a esta nova realidade, temos acordos a nível mundial com o facebook. A sexta prioridade é crítica (e os últimos são os primeiros) diz respeito às pessoas. A Nestlé tem estudos que confirmam que um terço dos portugueses pensa que a Nestlé é uma empresa portuguesa, o que é óptimo, até por causa deste ressurgir do nacionalismo que começa a aparecer em toda a Europa.
HR: A gestão das pessoas é um dos maiores desafios na Nestlé?
António Reffóios: Sim. Mas não é só porque as pessoas são o mais importante. Hoje, em qualquer organização, temos que gerir quatro gerações. Pertenço à geração Baby Boomer e acredito muito na geração Y, são bem formados, viajaram mais do que nós, têm mais informação, são mais capazes, estão mais preparados para este mundo, precisam de estímulos e têm motivações muito diferentes. Temos que ter noção do quão importante são todas as gerações, não podemos correr o risco dos Baby Boomers se sentirem num canto na Nestlé.
Temos pessoas que começaram a trabalhar aqui com 15 anos, mais novos do que eu, e que hoje têm 40 anos de casa. A preocupação em identificar quais as reais e as distintas motivações e falarmos uma linguagem comum é o maior desafio, porque é muito importante que se mantenham aspectos culturais que cimentam esta história, mas há que arejar continuamente.
Antigamente era mais fácil, quando entrei há 32 anos, éramos quatro, entre Baby Boomers e Tradicionalistas não há grandes diferenças, só no essencial. Isto obriga a uma grande proximidade.
HR: Quem são as suas referências?
António Reffóios: Tive o privilégio, embora a sorte e o privilégio dêem trabalho, de conhecer e trabalhar com pessoas excepcionais, não só colegas como colaboradores. Acabei por encontrar ao longo da vida pessoas muito inspiradores.
HR: Que ensinamentos colheu?
António Reffóios: Fui colhendo alguns ensinamentos. O meu primeiro patrão na Deloitte dizia para começarmos sempre por fazer aquilo de que gostamos menos. Como em teoria temos mais energia de manhã, devemos começar a trabalhar naquilo que à partida é mais complexo, requer mais tempo e dedicação. Mas há aspectos para mim que são muito óbvios, até pela educação que tive, a disciplina. Sempre vivi num ambiente onde a disciplina não se discutia.
Os deveres estão primeiro que os direitos, fui educado assim em casa e no Colégio Militar. Outra questão óbvia, mas muito difícil de pôr em prática, é a prevalência daquilo que é o valor do colectivo perante o individual, a primazia do colectivo. O mais difícil de lidar, ao longo da minha vida, foi com algumas questões de índole comportamental, sobretudo gostava de ter descoberto mais cedo, alguns aspectos na minha maneira de ser e estar que tinham impacto nas pessoas e que só mais tarde, com alguma maturidade e as avaliações 360º, comecei a ver que teria que mudar.
Era intolerante, ouvia pouco, podia ter sido bem melhor, se me tivesse apercebido mais cedo. Mas há alguns aspectos que têm que ver com a nossa própria evolução, com a idade. Aprender a contar até 10 é fantástico. A pressão é muito grande, o tempo que temos para decidir é muito curto.
HR: Gostaria de deixar algum conselho?
António Reffóios: Não dou conselhos a ninguém. Mas há uma coisa muito óbvia, mas difícil de pôr em prática, sobretudo quando se tem mau feitio, como eu, é ter sempre presente que devemos tratar os outros da maneira que gostaríamos de ser tratados, “colocarmo-nos nos sapatos” das outras pessoas. Isto é um princípio fundamental numa relação, sobretudo numa relação profissional.
HR: Qual é o seu legado?
António Reffóios: Não tenho essa prosápia, mas há uma coisa que digo muito aos meus filhos e que espero conseguir preservar até ao fim da minha vida profissional: não há ninguém que me possa apontar nenhuma canalhice nem desonestidade.
Tenho mau feitio, fiz asneiras, isso acontece com todos.
Perfil António Reffóios
António Saraiva de Reffóios trabalha há 35 anos, 32 dos quais na Nestlé. Estudou no Colégio Militar e licenciou-se em Gestão de Empresas no ISEG.
Iniciou a carreira profissional como consultor na Deloitte and Hanskins & Sells, durante três anos. Seguiu-se uma passagem de seis meses pela Singer, como responsável de contabilidade e contas correntes. Em 1980, ingressa na Nestlé Portugal como adjunto da direcção-geral. No final de 1982, passa a responsável pela gestão da Nescafé e Ricoré. Durante quatro anos está fora da companhia, assumindo a direcção de marketing da Warner Lambert Portugal, na divisão Adams, e mais tarde ocupa a direcção-geral da Esselt Meto Portugal. Regressa à Nestlé em 1990, passando a responsável da empresa Comcafé e dois anos mais tarde acumula a direcção de food service. Em 1998, ruma até à Nestlé Polónia como administrador delegado de uma empresa de confeitaria e, em 1999, assume a direcção de vendas.
De regresso a Portugal, em 2001 é responsável pela direcção de alimentação, que engloba as áreas de nutrição, bebidas, chocolates e culinária, e é desde 2006 administrador-delegado e director-geral da Nestlé Portugal.
O retrato na Nestlé Portugal
Este ano tem 28 expatriados. O DRH europeu é português, tal como o DRH da Arábia Saudita e o director de mercado de Moçambique, por exemplo.
Exporta massa cinzenta. Mas também importa. Quando António Reffóios esteve na Pólonia, três anos, a sua equipa era constituída por um director alemão, um francês, a nível de middle management havia polacos, ingleses, italianos.