Patrícia Boura, Fundação do Gil: «Perante um trabalho emocionalmente exigente, assegurar que os colaboradores estão motivados é um dos grandes desafios»

A missão da Fundação do Gil é melhorar a qualidade de vida de crianças e jovens em situações de fragilidade clínica, social ou económica, e assegurar que nenhuma delas é deixada para trás. Patrícia Boura, presidente Executiva da Fundação do Gil, faz uma retrospectiva de 25 anos de história e aponta os desafios para o futuro.

Por Tânia Reis

 

Para manter os cinco projectos actualmente existentes e superar as 10 mil crianças já impactadas, há que assegurar a sustentabilidade financeira. Mas a crescente complexidade das situações que acompanham, a adaptação às novas necessidades das comunidades, a sensibilização da sociedade e a gestão de Recursos Humanos também constituem grandes desafios, assegura Patrícia Boura.

Celebraram no passado mês de Dezembro 25 anos de história. Que principais marcos destaca nestas duas décadas e meia?

A história da Fundação do Gil é um percurso de inovação e dedicação que, ao longo destes 25 anos, se traduziu em inúmeros marcos significativos.

Desde a sua criação, em 1999, a Fundação assumiu o compromisso de melhorar a qualidade de vida de crianças e jovens em situação de fragilidade clínica e social. Este compromisso levou, em 2006, à criação do projecto de Cuidados Domiciliários Pediátricos, que continua a levar cuidados médicos especializados ao domicílio de crianças e jovens com doenças crónicas e necessidades paliativas. Este projecto, pioneiro em Portugal, tem resultados impactantes, como a redução de reinternamentos hospitalares em 45% e uma melhoria significativa no bem-estar físico e emocional das crianças e suas famílias. Ao longo dos anos já acompanhámos mais de 10.000 crianças em suas casas.

Outro momento marcante foi a inauguração da Casa do Gil, também em 2006, um centro de acolhimento temporário que oferece um ambiente seguro e protector para crianças em risco, promovendo a sua reintegração social.

Mais recentemente, em 2019, a Fundação reforçou a sua sustentabilidade financeira com a abertura da Casa do Jardim, um espaço multifuncional que acolhe eventos corporativos e sociais, revertendo directamente todas as receitas para os projectos da Fundação.

Em 2023 lançámos o projecto piloto de Hospitalização Domiciliária Pediátrica com o Hospital Dr. Fernando da Fonseca, para acompanhar em casa as crianças em internamento. As equipas hospitalares deslocam-se três vezes por dia ao domicílio da criança para lhe prestar tudo os cuidados de saúde necessários.

Já em 2024, atentos à crescente urgência da saúde mental infanto-juvenil, abrimos a Clínica do Gil. Este projecto inovador democratiza o acesso a cuidados especializados nesta área, proporcionando terapias a crianças e jovens até aos 25 anos, num modelo que combina sustentabilidade económica com inclusão social.

A celebração do nosso 25.º aniversário é a ocasião perfeita para reafirmar o nosso compromisso com o futuro e reforçar a visão de um mundo onde todas as crianças e jovens possam crescer com dignidade, saúde e inclusão.

 

De que forma tem evoluído a vossa actuação/estratégia?

A nossa estratégia tem evoluído para antecipar as necessidades das famílias e reforçar a sustentabilidade dos projectos. Temos vindo a fazer evoluir os projectos de acordo com as necessidades da sociedade. Com o projecto de cuidados domiciliários pediátricos, fizemos evoluir a resposta de cuidados continuados, para cuidados paliativos e agora, mais recentemente, para a Hospitalização Domiciliaria Pediátrica.

Com o projecto da Casa do Gil, fomos percebendo que cada vez mais as crianças, embora muito jovens, vinham já marcadas por questões de saúde mental, o que nos fez procurar uma solução e assim chegámos ao projecto da Clínica do Gil.

Em paralelo sempre o enorme foco na sustentabilidade financeira da organização, motivo pelo qual construímos a Casa do Jardim, o nosso espaço para eventos, e o nosso projecto de sustentabilidade financeira.

 

Que desafios têm enfrentado no cumprimento da vossa missão?

Um dos maiores desafios tem sido assegurar a sustentabilidade financeira dos nossos projectos. Como instituição sem fins lucrativos, dependemos do apoio de parceiros, doadores e das receitas geradas por iniciativas como a Casa do Jardim ou eventos ou produtos próprios. Este equilíbrio entre garantir o financiamento necessário e manter a qualidade e o alcance dos nossos projectos exige uma gestão cuidadosa e uma constante busca por novas parcerias e fontes de apoio.

Outro desafio importante prende-se com a crescente complexidade das situações que acompanhamos. O perfil das crianças e jovens que acompanhamos reflecte realidades cada vez mais complexas, seja ao nível das fragilidades sociais, como a pobreza ou a exclusão, seja ao nível clínico, com patologias e condições que requerem intervenções altamente especializadas. Este cenário exige equipas multidisciplinares bem formadas e constantemente actualizadas, algo que também implica um investimento significativo.

A sensibilização da sociedade para as problemáticas que abordamos é outro desafio. Apesar de a saúde mental infanto-juvenil, por exemplo, estar cada vez mais na agenda pública, ainda há um longo caminho a percorrer no combate ao estigma e na consciencialização para a importância de apoiar crianças, jovens e famílias vulneráveis. Trabalhamos activamente para desmistificar o estigma da saúde mental, trazendo para a Clínica do Gil muitas abordagens de prevenção como o ioga e a meditação ou as terapias pelas artes.

Queremos mudar mentalidades e promover uma maior compreensão do impacto do nosso trabalho, mas sabemos que a transformação social é um processo contínuo.

A gestão de Recursos Humanos apresenta também os seus próprios desafios. O nosso trabalho é emocionalmente exigente, o que pode afectar o bem-estar das equipas. Temos de assegurar que os nossos colaboradores estão motivados, que têm as ferramentas e o apoio necessários para exercerem as suas funções, e que conseguem equilibrar as exigências profissionais com a sua saúde emocional.

Finalmente, a adaptação às novas necessidades das comunidades que servimos é outro desafio constante. O mundo está em constante mudança, e a pandemia, por exemplo, trouxe à tona novas vulnerabilidades, nomeadamente um aumento significativo de problemas de saúde mental entre crianças e jovens. Estes desafios obrigam-nos a repensar constantemente as nossas estratégias e a criar respostas inovadoras que acompanhem esta evolução.

Apesar de todas as dificuldades, encaramos cada obstáculo como uma oportunidade de crescer, inovar e fazer mais e melhor pelas crianças e jovens em situações de fragilidade. O nosso compromisso é garantir que, independentemente dos desafios, continuamos a cumprir a nossa missão com a mesma dedicação e paixão que nos move há mais de 25 anos.

 

Que impacto têm tido os vossos projectos ao longo deste tempo?

Actualmente, a Fundação do Gil tem implementados cinco projectos que abrangem diferentes áreas de intervenção, desde os cuidados de saúde até à inclusão social, cada um deles com impactos significativos nas vidas das crianças, jovens e famílias que acompanhamos. Lançámos recentemente uma campanha de comunicação com a nossa agência, a White Way, precisamente para o mostrar.

Ao longo dos últimos 25 anos, a Fundação do Gil tem impactado milhares de vidas, seja através do acompanhamento directo de crianças e jovens, seja pelo apoio às suas famílias. Estes projectos não são apenas iniciativas isoladas, são pilares de uma estratégia integrada que visa transformar realidades e garantir que todas as crianças e jovens, independentemente das suas circunstâncias, têm a oportunidade de crescer com dignidade, saúde e inclusão.

 

A Clínica do Gil foi criada há precisamente um ano. Por que sentiram necessidade desta aposta na Saúde Mental Infanto-Juvenil?

A decisão de criar a Clínica do Gil surgiu da necessidade especifica de dar uma resposta às crianças acolhidas na Casa do Gil. Estas crianças vêm já muito marcadas com questões de saúde mental e tínhamos necessidade de intervir tão precocemente quanto possível.

Quando estudávamos os Relatórios da Organização Mundial de Saúde percebemos que este tema não era um exclusivo das casas de acolhimento. Uma em cada cinco crianças apresentava já questões de saúde mental e apenas 20% tinham o devido acompanhamento. Decidimos então criar um projecto aberto a toda a sociedade, por forma a democratizar o acesso à saúde metal. O projecto foi pensado numa lógica de negócio social e tem consultas a preços de mercado, apoios sociais e ainda bolsas sociais, tentando chegar assim a toda a gente.

 

Que resultados alcançou até ao momento?

Apesar de ter apenas poucos meses de existência, a Clínica do Gil já fez muitas consultas em pedopsiquiatria, psicologia, terapia da fala, psicomotricidade, neuropediatria, psicopedagogia e musicoterapia, em consultas de mercado, consultas sociais e bolsas sociais.

Os feedbacks positivos das famílias e a crescente procura pelos serviços da clínica são também indicadores claros do impacto positivo alcançado em tão pouco tempo. Estes primeiros meses de actividade reforçam o compromisso da Fundação em continuar a investir na saúde mental como um pilar essencial do futuro das crianças e jovens.

 

Também no ano passado lançaram as Gil Talks. Com que objectivos?

As Gil Talks foram lançadas com o objectivo de criar um espaço de reflexão e partilha sobre temas relevantes para as empresas promovendo um diálogo aberto entre o sector empresarial. No fundo, quisemos criar um espaço de partilha e devolver à sociedade este contributo, trazendo um conjunto de parceiros da Fundação do Gil, dando-lhe também destaque, como forma de agradecimento pelas parcerias ao longo dos anos. É também uma forma de mostrar o nosso espaço para eventos, a Casa do Jardim.

 

E que temas têm previstos para este ano?

Já abordamos temas coma a cibersegurança, o burnout, o glass ceiling, as diferenças geracionais no mercado de trabalho, a importância do work life balance. Este ano seguem-se como temas: “a neurodiversidade no local de trabalho”, “a Inteligência Artificial – uma ameaça ou uma oportunidade, liderança e cultura organizacional positiva”; “Responsabilidade social corporativa – uma realidade ou apenas para os relatórios de ESG”, entre outros. Quem quiser assistir, pode sempre enviar-nos um mail para garantir o seu lugar. Todos os episódios estão disponíveis no nosso site e no spotify,

 

Lidera a Fundação há mais de uma década. Que temas lhe ocupam mais tempo ou mais a preocupam?

Ao longo destes anos, tenho-me dedicado sobretudo a garantir a sustentabilidade financeira da Fundação, a expandir o impacto dos nossos projectos e trazer inovação às respostas sociais que criamos. Este é um desafio constante num cenário onde as necessidades são crescentes, mas os recursos nem sempre acompanham. O tema da sustentabilidade da organização ocupa grande parte do meu tempo. Outro tema que me preocupa profundamente é a crescente complexidade das situações clínicas e sociais das crianças que acompanhamos. Garantir que temos equipas multidisciplinares capacitadas para responder a estas realidades é uma prioridade. Além disso, a saúde mental, especialmente das crianças e jovens, é uma questão central. As repercussões da pandemia e de contextos sociais mais desafiantes reforçaram ainda mais esta preocupação.

Preocupa-me ainda a sensibilização da sociedade para estas questões. Ainda há um longo caminho a percorrer para combater o estigma em torno da saúde mental e para mobilizar a comunidade em prol de causas como a inclusão e o bem-estar.

 

Quantos colaboradores estão envolvidos na Fundação actualmente?

A Fundação conta com cerca de 50 colaboradores dedicados, para além de uma rede de voluntários e parceiros que desempenham um papel crucial no cumprimento da nossa missão.

 

Que desafios (e oportunidades) destaca na gestão dessas pessoas?

Um dos principais desafios é manter equipas multidisciplinares motivadas num ambiente muitas vezes emocionalmente exigente. No entanto, a possibilidade de criar impacto directo nas vidas das crianças é uma fonte inesgotável de inspiração e dedicação.

 

De que forma mantém as equipas motivadas?

Incentivamos uma cultura de colaboração, reconhecemos o contributo individual e investimos na formação contínua. Além disso, partilhamos histórias de impacto real para reforçar o propósito do nosso trabalho.

 

Que objectivos traçaram para o futuro?

O nosso foco está em crescer de forma sustentável, mantendo a qualidade das respostas que damos e ampliando o impacto social e clínico que temos vindo a construir ao longo destes 25 anos.

Consolidar os projectos mais recentes, continuar a inovar nos projectos mais antigos e sobretudo olhar para as necessidades das crianças e jovens mais vulneráveis e continuar a procurar projectos inovadores que possam fazer a diferença nas suas vidas.

Isto passará, certamente, pela necessidade absoluta de garantir a sustentabilidade financeira para os próximos 25 anos e esse será o nosso grande foco deste ano. Trazer à luz um projecto financeiro, também ele inovador, para garantir que podemos olhar com esperança para os próximos 25.

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