O perfil de liderança de Zelensky: O Churchill da Ucrânia?

Escrever, entre a espuma (negra) destes dias, sobre um líder cujo perfil era, até há poucas semanas, relativamente pouco conhecido – eis um exercício arriscado. Mas aceitar o desafio é um dever, mais cívico do que académico. Assim o entendo.

 

Por Arménio Rego, director do LEAD.Lab, da Católica Porto Business School

 

Foi-me proposto traçar o perfil de liderança de Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, que viu o seu país ser invadido pela Rússia no passado dia 24 de Fevereiro. Respondo ao desafio com sete comentários.

1. Acção precisa-se
Escrever ou ler sobre Zelensky, para elogiar ou apreciar a sua coragem, pode transformar-se num exercício fútil se não tiver consequências substantivas nas nossas acções. Pode ajudar-nos a manter paz de espírito e a dormir descansados, mas não remove uma ponta que seja de sofrimento alheio. Ajuda-nos. Mas em nada ajuda quem sofre.

Por isso, começo por usar este espaço para apelar a quem lê este texto: contribua, com trabalho, bens ou alguma quantia, para ajudar a causa ucraniana. Se me é permitida a sugestão: contribua para a missão da Cáritas, da UNICEF, ou de qualquer outra entidade ou instituição que opere no terreno. A luta pela liberdade começa nas nossas mentes, mas convém que se traduza em acções e não se circunscreva ao espaço e ao tempo das manifestações. Algumas acções, ainda que de pequena monta no plano individual, podem gerar significativos efeitos regeneradores, sobretudo se forem levadas a cabo por colectivos e comunidades.

 

2. O lado escuro
Antes de enfatizar as qualidades de liderança que Zelensky tem revelado, importa lembrar a crueldade putiniana. Há vários anos que venho lendo sobre esta figura sinistra e cruel. Mas o que agora observo consegue ultrapassar o que alguma vez me ocorrera. A razão do erro pode ser explicada, pelo menos em parte, por dois factores:

Em primeiro lugar, as nossas mentes são frequentemente contaminadas pelo wishful thinking: é mais confortável acreditar e interpretar a realidade em função do que nela desejamos. Admitir que Putin viesse a tomar a decisão que tomou teria transtornado o nosso quotidiano emocional e relacional. Para nos protegermos psicologicamente, vemos o que queremos ver. E desviamos o pensamento do que é desconfortável.

Em segundo lugar, padecemos frequentemente de um erro interpretativo: procuramos antecipar o que outras pessoas farão, imaginando como procederíamos se estivéssemos no lugar delas. Mas esse exercício interpretativo é enganador, porque os outros são o que são (com as suas crenças, valores e traços da personalidade) e não o que seriam se fôssemos nós a ocupar o seu lugar. Os psicopatas são frequentemente vencedores neste jogo precisamente porque intuem essa nossa inclinação. E manipulam-nos para seu próprio proveito ou mesmo gáudio.

 

3. A destruição não vem de um homem só
Não parece haver dúvidas de que Putin tem uma personalidade fortemente maquiavélica. É mesmo possível que tenha desenvolvido traços psicopatas – manipulador, sem empatia, indiferente (ou mesmo experienciando prazer escondido) ao sofrimento dos outros. A humilhação de alguns dos seus colaboradores, quando saem do seu carril hiper-controlador e paranóico, não é inédita. O exercício do poder ao longo de muitos anos poderá ter contribuído para acicatar essa personalidade e esse estilo.

Todavia, colocar a causa de toda a maldade em Putin é um exercício que não adere à realidade. A liderança não emerge apenas de quem lidera. Antes, é um processo que envolve a relação entre líder e liderados numa dada situação. Não há liderança destrutiva sem seguidores que, activa ou passivamente, alimentam a destruição. O nazismo e a liderança de Hitler foram fruto dessa interacção, num contexto particular que era interpretado como humilhante pela Alemanha. A liderança de Putin (o historiador Timothy Garton Ash afirmou, em entrevista à RTP, que não era despropositado comparar Putin com Hitler, pelo menos na fase pré-Holocausto) é também o resultado desse processo que envolve o líder, os liderados e os contextos nacional e internacional.

 

4. Um dado assustador
A imagem de um líder psicopata pode parecer estranha. E alguns leitores poderão, legitimamente, rejeitá-la. Mas alguma evidência sugere que a psicopatia afecta 1% da população – e que essa percentagem é multiplicada por três nas lideranças de topo. O dado, a ser verdadeiro, é assustador. Mas parece realista. A ascensão para posições de liderança de topo requer tenacidade, sagacidade, argúcia, espírito competitivo e, em alguns contextos, poucos escrúpulos. Indivíduos psicopatas navegam bem nessas águas. E revelam todo o seu “negro esplendor” quando alcançam o topo, lugar que depois procuram manter a todo o custo, através do medo e do abuso. Podem tornar-se profundamente destrutivos. Quando são cercados, levam para a cova os que o rodeiam, inclusivamente os que o apoiaram.

 

5. A liderança é mais do que o líder…
Todos estes argumentos podem parecer desfocados do tema sobre o qual me convidaram para escrever: a liderança de Volodymyr (Vladimir em língua russa!) Zelensky. Mas talvez não sejam. Eles ajudam a compreender o que antes deixei escrito: a liderança é um processo que envolve a interacção do líder e dos liderados numa dada situação ou contexto. A liderança de Zelensky não é excepção. O facto de vários observadores, em diferentes países, o compararem a Churchill faz sentido, pelo menos até ao momento presente. A liderança carismática de Churchill emergiu em tempos profundamente conturbados. Mas o seu carisma desvaneceu-se significativamente algum tempo após o termo da II Guerra Mundial (perdeu a eleição de 1945). Churchill não terá mudado assim tanto. O que se alterou foi a perspectiva e as expectativas dos liderados, assim a natureza da situação por eles vivida. Churchill era tido pelos liderados como bom líder em tempos de emergência, mas menos bom em tempos de paz.

Também o carisma de Zelensky atingiu agora o seu zénite num momento densamente dramático. Até então, a sua popularidade não era muito elevada. Mas as circunstâncias mudaram profundamente e os cidadãos ucranianos projectaram sobre ele a crença de que a dignidade e a liberdade poderiam ser resgatadas. A essa expectativa, Zelensky reagiu com incomensurável coragem. Escolheu permanecer na Ucrânia para defender o seu povo, arriscando perder a vida. Quando os Estados Unidos lhe ofereceram asilo, respondeu que precisava de munições, não de boleia. A sua comunicação é empática. E o envolvimento emocional que tem desenvolvido com cidadãos ucranianos e milhões e milhões de seres humanos em todo o planeta é reforçado pela consciencialização da nobreza da sua causa. A empatia e a coragem que dele emanam são contagiantes. A causa que essas qualidades veiculam reforça o poder contagiante, pois nutre o que há de mais brilhante no ser humano: a busca da autodeterminação, da liberdade e do sentido de dignidade.

 

6. Mas o líder é crucial
Sublinho este perfil para que os leitores não suponham que, quando discuto o processo de liderança, estou a subestimar a importância do líder. Não estou. Não poderia fazê-lo. O que pretendo sublinhar é que a coragem e a empatia de Zelensky adquirem valor incalculável neste tempo de escuridão. Grandes desafios fazem grandes líderes. Mas também fazem pequenos líderes quando estes (que podemos ser nós, eu) respondem com acanhamento aos anseios dos liderados.

Zelensky poderia ter abandonado o país e continuado a lutar pelo seu povo. Mas, como alguém diria, “não seria a mesma coisa”! Não seria, de todo. O seu carisma teria muito menos brilho, se é que teria algum. O altruísmo corajoso de Zelensky é o elemento congregador-chave. É, ademais, um sinal de esperança. Em momentos de maior cinismo e tristeza, o exemplo de Zelensky faz-nos acreditar que a natureza humana não está dotada apenas de maldade – também é capaz da coragem, da bondade e da prática das virtudes mais brilhantes.

 

7. Cultivemos a serpente e a pomba que há em nós
Perante a insanidade, a abjecção putiniana e a destruição que a mesma tem gerado, quase somos atacados pelas lágrimas. Porquê viver num mundo assim? Somos invadidos pela raiva, a revolta e o desejo de vingança. Perguntamo-nos porque Deus não tem a coragem de apagar a vida do vil autocrata para assim poupar a vida de inocentes. Mas é a coragem altruísta de figuras como Zelensky, e de outros heróis deste e de outros tempos, que nos faz acreditar que a vida tem sentido se for vivida com nobreza.

Naturalmente, precisamos de ser cautos! Para que desenvolvamos realismo acerca da complexa natureza humana. Para que não caiamos na tentação de confundir liderança forte com liderança abusadora ou insana. Para que, todos os dias, exerçamos o nosso dever crítico perante promessas grandiosas de poder, prestígio e riqueza. Para que desenvolvamos, dentro de nós, a dualidade bem retratada no Evangelho de Mateus: «Eis que Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos; sede, portanto, prudentes/astutos como as serpentes e simples como as pombas.»

Não é preciso ser cristão para ver nestas palavras um ensinamento intemporal. Zelensky tem dado mostras dessa dualidade. Por isso, regresso aonde frequentemente vou – a um argumento que David Brooks defendeu há meia dúzia de anos no “The New York Times” (a 28 de Abril de 2015): «Historicamente, os líderes mais eficazes (…) deram mostras dessa consciência dual. Eram dotados de uma sincera voz moral interior que os capacitava para a radical autoconsciência, a rectidão e a grande compaixão. [Mas] também se muniam de uma voz externa pragmática e sagaz. Estas duas vozes estavam em constante diálogo, controlando-se mutuamente, em busca de uma síntese: sábios como a serpente e inocentes como a pomba.»

Portanto, para vivermos de modo mais saudável neste mundo, precisamos de ser argutos como a serpente e pacíficos como a pomba. E necessitamos de líderes dotados desse espírito dual.

 

Este artigo foi publicado na edição de Março (nº.135) da Human Resources, nas bancas.

Caso prefira ler a edição online, pode comprar a versão em papel ou a versão digital.

Ler Mais