O movimento FIRE e as políticas públicas – É tempo de (re)equacionar condições
Por Isabel Moço, coordenadora e professora da Universidade Europeia
As políticas públicas, especialmente no campo das pensões e segurança social, estão moldadas com base num modelo de vida profissional que começa após os estudos e termina por volta dos 60-70 anos, com uma trajetória de contribuições contínuas ao longo desse período. A sustentabilidade deste tipo de sistemas depende, em parte, da constante entrada de novos contribuintes e da saída programada dos mais velhos, e funcionou durante décadas. Alguns ajustamentos foram sendo feitos, não só porque mudou a “típica idade de ingresso no mercado de trabalho”, a que se aliaram outros fatores, como a escolaridade, constituição e composição do agregado familiar, entre muitos outros, culminando com a pandemia de 2020, que precipitou realmente muitas mudanças, algumas que se vinham adivinhando, outras inesperadas. O movimento FIRE (financial independence, retire early), que embora pareça resultado da pandemia, não é, embora por ela tenha aumentado a sua expressão, desafia diretamente este racional e o próprio funcionamento deste tipo de sistema como é a Segurança Social portuguesa.
Ao retirarem-se do mercado de trabalho na casa dos 40 ou 50 anos, os adeptos do FIRE podem criar um défice nas contribuições para os sistemas de segurança social. Além disso, ao viverem potencialmente várias décadas sem trabalhar, podem acabar por se tornar dependentes de apoios sociais, se os seus investimentos não produzirem os retornos esperados, ou se colapsarem mecanismos/sistemas de segurança, ou mesmo se as suas previsões/provisões não responderem a todos os cenários de evolução da vida pessoal, económica e social. Quem faz esta opção, compromete-se consigo mesmo em aforrar, poupando e investindo rigorosamente durante um período, para depois alcançar a independência financeira e retirar-se precocemente do mercado de trabalho. Mas, enquanto muitos jovens veem nesse movimento uma saída para as exigências de um mercado de trabalho cada vez mais volátil, surge um dilema com as políticas públicas vigentes, fortemente desenhadas para uma realidade de trabalho contínuo até à idade de reforma tradicional – que, não esqueçamos, progressivamente vem aumentando.
Por outro lado, a emergência do movimento FIRE é também reflexo de uma atitude face à vida que diverge da das gerações anteriores. As gerações dos mais jovens (em idade ativa), muitas vezes etiquetada como a geração do “viver depressa, viver para si”, procura experiências, significado em cada experiência, flexibilidade e um equilíbrio entre trabalho e lazer muito diferente do padrão 9-18h, cinco dias por semana. Esta atitude, alimentada talvez pela efemeridade das redes sociais e pela incerteza global, valoriza o agora em detrimento do depois. Nestes é frequente ouvirmos “o tempo para mim”, o que as gerações anteriores desejavam, mas nem sequer expressavam.
Neste contexto, surgem questões pertinentes: Será justo obrigar uma geração que valoriza o presente a aderir a um sistema pensado para uma realidade que eles não reconhecem? Será que as políticas públicas estão a adaptar-se suficientemente às mudanças socioculturais e económicas? Em contrapartida, é legítimo questionar até que ponto a visão romântica do movimento FIRE é sustentável a longo prazo. Afinal, a ideia de retirar-se jovem e viver dos rendimentos de investimentos pode não ser uma realidade acessível para todos e pode trazer riscos associados, tanto para o indivíduo como para a sociedade.
O movimento FIRE, mais do que um mero conjunto de práticas financeiras, representa um desafio ao status quo e às noções tradicionais de trabalho e reforma. As políticas públicas, por sua vez, necessitam de refletir e adaptar-se às aspirações e realidades das novas gerações. Enquanto isso, a geração do ” viver depressa, viver para si ” procurará formas de harmonizar os seus ideais com as estruturas existentes, numa dança constante entre o presente desejado e o futuro incerto. Fica, no entanto, o desafio social de compatibilização e articulação de várias formas de estar, pensar e viver, dado que, cada vez mais, nas empresas, se cruzam várias gerações. Pode até ser muito complexo, se pensarmos que as gerações mais jovens “passam” pelas empresas e muitos dos mais velhos “esperam” para delas sair. A reposição não é simples, ainda que estejamos cientes das novas competências e saberes requeridos, e por isso formas alternativas de vinculação ao trabalho (como por exemplo o freelancing) têm conquistado adeptos, entre trabalhadores e empresas. E se os mais velhos quiserem regressar ou ficar a trabalhar, porque não podem? Porque há poucas oportunidades para estes? E qua tal as políticas públicas permitirem que os cidadãos escolham quando se querem reformar, com ajustes nas prestações de reforma com base na idade de início e nas contribuições feitas? Ou, em vez de sistemas rígidos baseados em anos de trabalho contínuos, permitir que os cidadãos contribuam de forma flexível, adaptando-se a diferentes trajetórias de carreira e períodos de pausa? Isso é que era!