O paradoxo da mão-de-obra: estamos a negligenciar as profissões essenciais?
Por Valter Ferreira, especialista europeu em tecnologia urbana e cidades inteligentes
Nos últimos anos, muito temos discutido sobre o futuro do trabalho. Empresas de todos os sectores investem em Inteligência Artificial (IA), Internet das Coisas (IoT) e algumas até promovem o teletrabalho como o novo modelo ideal. Porém, no meio deste entusiasmo tecnológico, estamos a deixar de lado uma questão vital: e as profissões manuais, intensivas e especializadas? Estamos a hipotecar o futuro de sectores como a construção, carpintaria e canalização, numa altura em que são mais necessários do que nunca.
A digitalização e os avanços tecnológicos criaram uma forte atracção pelos empregos de escritório, com horários regulares, ou mesmo horários a gosto, a que se junta a comodidade do teletrabalho. Cada vez mais, os jovens estão a afastar-se de profissões ligadas à construção, mecânica e outras áreas manuais. De acordo com um estudo do INE, a taxa de matrícula em cursos profissionais de construção e indústria caiu 30% nos últimos dez anos.
Este fenómeno é agravado pelo crescente interesse em profissões tecnológicas, alimentado por gigantes como a Google, Tesla ou Apple. Mas, por mais que a automação transforme certas indústrias, há tarefas que simplesmente não podem ser executadas por máquinas, como a construção de casas ou a reparação de infraestruturas.
A falta de mão-de-obra qualificada está a afectar directamente o sector da construção, agravando a crise da habitação em muitos países. Em Portugal, apesar dos esforços para reduzir impostos e acelerar licenciamentos, o problema mantém-se: sem trabalhadores qualificados, a construção de novas habitações não acompanha a procura. A Federação Portuguesa da Indústria da Construção alerta que o país precisa de mais de 70.000 novos trabalhadores na área para suprir a falta de habitação acessível.
Este é um desafio global. Nos Estados Unidos, estima-se que o sector da construção precise de mais 430.000 trabalhadores para atender à procura actual. Mesmo na Alemanha, conhecida pela sua força no sector industrial, a escassez de trabalhadores especializados está a criar obstáculos significativos para os planos de desenvolvimento urbano.
Uma solução muitas vezes discutida é a imigração. Países como a Alemanha, Reino Unido e historicamente Portugal, têm recorrido a trabalhadores imigrantes para preencher estas lacunas no mercado de trabalho. Contudo, a imigração por si só não resolve o problema estrutural da falta de incentivo à formação em áreas manuais. Se não houver esforços concertados para tornar estas profissões atractivas para as populações locais, continuaremos a enfrentar crises laborais no futuro.
Uma das soluções passa por revalorizar o ensino profissional e investir na formação de jovens para áreas técnicas. Países como a Suíça ou a Alemanha têm sistemas de aprendizagem vocacional robustos, que integram os jovens directamente no mercado de trabalho em áreas de grande necessidade. Portugal poderia seguir este exemplo, promovendo um maior equilíbrio entre as formações académicas e profissionais.
Além disso, a inovação tecnológica pode ser integrada nas profissões manuais, tornando-as mais atraentes. A construção com impressão 3D, por exemplo, é uma área emergente que pode não só melhorar a eficiência, como também modernizar o sector, tornando-o mais apelativo para as gerações mais jovens.
Na minha opinião a solução está em permitir que o mercado se ajuste, mas sem perder de vista a importância de garantir condições que favoreçam o equilíbrio entre inovação tecnológica e a necessidade de trabalho manual qualificado. As reformas no ensino e a promoção das profissões manuais são essenciais para enfrentar crises como a da habitação e garantir o crescimento económico sustentável.
Não podemos construir o futuro apenas com engenheiros de software. Precisamos de carpinteiros, pedreiros, canalizadores—profissões que sustentam a nossa sociedade.