Ainda sobre futebol de rua e gestão de pessoas

Por Isabel Moço, coordenadora e professora da Universidade Europeia

 

A gestão de pessoas é sempre uma área muito escrutinada porque toca no mais essencial da vida das pessoas e é conduzida por pessoas. As pessoas falham, e só não falha quem não faz, mas com o erro também se pode aprender. Por essas razões, as culturas que acolhem o erro e promovem que o mesmo seja usado para mais ninguém o cometer e para todos evoluírem com a análise do que aconteceu, com a identificação dos impactos que trouxe e de como atuar preventivamente, podem evoluir mais sustentavelmente e rápido. Refletindo sobre isto, dei por mim de novo a pensar no futebol de rua.

Quando algum jogador chutava a bola para fora do campo, nem havia hesitação – corria o mais rápido que podia e ia buscá-la. Assumia diretamente e quando era muito aselha, havia sempre algum que se solidarizava e lá ia buscar, uma ou outra vez, a bola. Os mais competitivos protestavam sempre, pois era um tempo que se perdia, mas também o aproveitavam para descansar e retemperar as forças. Se a bola saísse pela lateral, todos, mas literalmente todos incluindo quem assistia, gritava “nossa” e o uníssono dava ainda mais força para correr e ir buscar a bola. Tanta vez, a bola ficava da equipa que primeiro chegasse a ela e quem a ia buscar apressava-se a colocá-la de novo no campo para o jogo reiniciar.

Os gritos também serviam para assinalar as faltas, os penaltis, os cantos e os “fora de jogo”. Não havia árbitro com essa função, mas por vezes, quando sobrava algum que não era escolhido para jogar, fazia esse papel. Geralmente não se sentia necessidade, pois todos sabiam perfeitamente regular-se e controlar os outros. Quando acontecia um penalti, assumia a defesa da baliza o melhor jogador (balizas tantas vezes apenas assinalada com umas pedras, ou as tralhas dos jogadores no chão e, outras tantas vezes, apenas imaginada) – assumia essa responsabilidade e, de algum modo, protegia assim o mais frágil que tinha o papel de guarda-redes. Os gritos também serviam para resolver os lances mais polémicos e se isso não fosse suficiente, lá saiam uns empurrões e umas chapadas. Por vezes, o lance polémico e menos consensual, ditava o fim do jogo. Na maioria das vezes, o jogo só acabava quando todos estivessem cansados, o dono da bola fosse chamado para casa, ou chegasse a noite ou a fome. Jogava-se horas seguidas e as esfoladelas nos joelhos, o nariz a sangrar ou mesmo um escaldão solar, eram normais e ninguém queria saber disso.

Uma coisa curiosa é que não era preciso “vestir camisola da mesma cor”, embora nos “campeonatos mais a sério” até fizessem um esforço para ter algum comum na indumentária – geralmente a cor. Mas isso era muito acessório, porque o importante era correr atrás da bola e marcar golos. Recordo algumas situações em que uma equipa jogava em tronco nu, e esse elemento de identificação com os outros, servia para “vestir a camisola” e dar tudo por aqueles. Tanta vez, o que mais importava era jogar e não exatamente as condições em que se jogava, o que dava uma “vontade” inigualável e transformada num absoluto compromisso.

Um último registo tem a ver com a forma como se apurava o vencedor de cada partida. Mesmo que a diferença “no marcador” fosse muito grande, ninguém nunca se dava por vencido e, mais tarde ou mais cedo, lá aparecia a sugestão “quem marcar, ganha”. Quem estava a perder arriscava tudo numa derradeira jogada. Quem estava a ganhar sentia-se sempre desafiado a aceitar, pois os resultados e a confiança davam conforto para o fazer. E tudo se decidia em proveito de se alcançar a melhor experiência para todos, sendo que muitas vezes o resultado “virava” completamente.

Digam-me gestores de pessoas que leem este texto – de que falámos aqui? Do compromisso, à autorregulação, do erro aos papeis, dos resultados à experiência, parece que efetivamente tanto podemos estar a falar de futebol de rua como de gestão de pessoas.

Ler Mais