Consulting House: Uma estratégia digital para a liderança
Algumas mudanças são assim. Entram de rompante pela nossa vida e não deixam pedra sobre pedra. Mas tempo depois a vida volta ao que era.
Outras mudanças marcam a vida para sempre. As coisas não voltam a ser o que eram porque as perdas foram demasiado grandes, porque a nossa maneira de entender a realidade mudou, ou por conjugação de ambas. O terramoto de 1755 mudou não só a arquitectura do século XVIII, mas também a relação filosófica da Humanidade com Deus. O mundo não voltou a ser o mesmo.
Os problemas criados pelo aparecimento do SARS-CoV-2 e pela forma como lidámos com ele, entram nesta categoria de mudanças. As empresas foram obrigadas a enviar as suas pessoas para casa e o relacionamento interpessoal passou de presencial para virtual. O confinamento forçou as empresas a encontrar novas formas de liderar, mas algumas ainda acreditam que depois disto vão voltar à forma anterior de gerir pessoas. Que os modelos presenciais, mesmo que regressem, serão idênticos ao que eram antes.
Num exercício de risk assessment e scenario planning, em que participei com colegas de vários países em Março de 2020, categorizámos a emergência Por: COVID-19 como um slow moving disaster. Enquanto o mundo repetia o slogan “duas semanas para achatar a curva”, avisámos os nossos clientes que a perturbação global iria crescer em avalanche e que iria durar entre dois e cinco anos. Que não fazia sentido distinguir entre saúde e economia nas soluções implementadas, porque uma não existe sem a outra. Precisávamos, por isso, de soluções sistémicas globais. E as empresas teriam de se adaptar rapidamente a novas formas de trabalhar, o que requeria novas formas de liderar.
Quando distribuímos a força produtiva de uma empresa, precisamos de distribuir também a sua liderança. Temos de gerir as pessoas onde estão, não onde elas teoricamente trabalham. Após o período de “esperar para ver” o que o confinamento dava, que em muitos casos entrou pelo segundo semestre de 2020 adentro, a maioria das empresas lá se adaptou à nova realidade.
Primeiro foi a transposição
A primeira adaptação à disrupção foi uma transposição. Os gestores continuaram a fazer o que já faziam, mas à distância. Em vez de comunicar com as pessoas presencialmente, passaram a comunicar à distância. Em vez de reunir na mesma sala, passaram a reunir numa plataforma digital. Em vez de telefonar, enviavam mensagens na app. Mas não mudaram a forma de comunicar, reunir, nem de acompanhar as equipas.
Se antes tínhamos um dia de reuniões presenciais, passámos a ter um dia de reuniões virtuais. Se antes tínhamos interrupções presenciais, passámos a interrupções à distância. Se antes controlávamos as pessoas observando o que faziam, passámos a (tentar) controlá-las perguntando-lhes 10 vezes por dia o que fazem. Se não tínhamos tempo para dar feedback, isso não melhorou. Se já nos debatíamos para promover o desenvolvimento das pessoas, não passámos a fazê-lo mais facilmente.
A mudança de canal da relação não é uma mudança de substância, é uma mudança de formato. Uma relação transaccional não muda de natureza por passar a digital. Quando se tem um modelo de gestão da equipa baseado em centralização da decisão, controlo da execução e foco exclusivo na tarefa, a qualidade da relação não melhora por passar a ser distribuída digitalmente. Pelo contrário, pode até piorar.
Depois veio a “fadiga Zoom”
No fim de 2020 começámos a ouvir falar de “fadiga Zoom”. O sucesso da plataforma Zoom fez com que o seu nome fosse associado a um fenómeno global em que as pessoas começaram a fartar-se de estar oito horas por dia em frente à câmara, em reuniões, webinars, calls, e outros processos penosos. A produtividade que tinha crescido no início do confinamento, começou a sofrer.
Mas a fadiga não é do canal digital por si, é de coisas que não funcionam no digital porque já não funcionavam presencialmente. E qual foi a resposta? Fazer à distância o que já fazíamos presencialmente para descontrair. Transpusemos para digital as actividades presenciais que nos permitiam descontrair das actividades de trabalho presenciais que tínhamos transposto para digital e nos provocavam fadiga. Passámos a ter cafés virtuais com o chefe, encontros informais com a equipa, actividades de teambuilding online, jogos e animação à distância. Nada contra estas actividades em si. Mas fazer mais do mesmo que provoca o problema não costuma resultar.
A oportunidade de uma liderança nova
O digital trouxe (mais) uma oportunidade de repensar a relação de liderança que ainda não foi realizada por muitas empresas. A digitalização de uma relação transaccional continua a ser uma relação transaccional. Se o foco do líder está no seu benefício imediato, a relação torna- -se um veículo de entrega de resultados, uma transacção que pode acontecer presencialmente ou à distância, é indiferente.
Uma relação é uma sequência de interacções subordinadas a um propósito: amizade, parceria, liderança ou outro. Para categorizar a relação como de “liderança”, as diferentes interacções que a compõem devem ter um valor específico para a outra parte – neste caso o colaborador “liderado”. Avaliar o valor individual das interacções do ponto de vista do outro é um progresso necessário, mas a liderança deve ir mais além.
O propósito da relação de liderança é transformar o outro para que ele supere o seu potencial actual e atinja objectivos excepcionais. Este é um propósito global que deve subordinar a sequência de interacções que acontece ao longo do tempo, quer estas aconteçam presencialmente ou à distância.
Quando passámos a relação de liderança para o canal digital, perdemos uma oportunidade de lhe fazer um upgrade. Agora que a vamos passar para o canal híbrido, temos uma nova oportunidade de a transformar.
Passar de uma relação exclusiva no canal presencial síncrono a uma relação híbrida que inclui o canal digital, síncrono e assíncrono, é como passar de ouvir música em mono para estéreo. Mas se a música for má, a qualidade da aparelhagem não interessa. O digital não emenda os comportamentos errados das chefias. Comando e controlo presencial ou à distância podem ter diferenças de forma, mas não de substância.
Uma estratégia digital para a liderança?
Não houve uma estratégia digital para a liderança, porque não havia estratégia para ela antes e não parámos para pensar o que queríamos com a sua passagem para o digital. A maioria das pessoas acreditava que seria temporário e chutou a bola para a frente, mesmo que a baliza certa não estivesse naquela direcção.
Assim, na transição presencial-digital, muitas empresas focaram-se em competências de comunicação à distância, apenas porque esse era o défice premente. A tecnologia foi utilizada sobretudo para comunicar, o que é transaccional e cria dependência da presença síncrona do outro. Porque não viam o que as suas equipas estavam a fazer, as chefias sentiram necessidade de aumentar a frequência da comunicação, criando a “fadiga Zoom”.
Quando distribuímos a empresa no espaço, precisamos de gerar autonomia, confiança, competências e accountability de níveis diferentes, porque não é possível estar sempre em contacto com a equipa.
Na passagem para uma liderança à distância, a comunicação tem de ser substituída por compreensão. Tenho de compreender (do latim “agarrar”) o que o outro sabe, pensa e sente face ao projecto comum da empresa. E ele tem de compreender o seu papel e benefícios na criação da realidade futura da empresa. A compreensão exige comunicação, mas existe na sua ausência. É a compreensão que permite prosseguir trabalho em ambientes complexos e ambíguos na ausência de instruções directas. É a compreensão individual e partilhada do projecto e da relação que abre a possibilidade de transformação – propósito da liderança.
A tecnologia faz parte de um ecossistema que promove a produtividade nas empresas, em conjunto com a cultura empresarial, a sua estrutura e processos.
Cada um destes elementos capacita as relações de trabalho com ferramentas específicas, que devem ser tidas em consideração na definição da estratégia de liderança de cada empresa.
A tecnologia permite automatizar alguns processos de liderança e libertar recursos para actividades de maior valor acrescentado. Mas tudo começa com a definição do papel e propósito da relação de liderança. A tecnologia capacita este novo papel e propósito. Não temos uma nova liderança por causa da tecnologia. Temos uma nova liderança por causa da adaptação da estratégia da empresa a um mundo digital, que utiliza a tecnologia como facilitador.
Entender a “liderança digital” como aquisição de competências de relação à distância através de tecnologia, sem definir primeiro o seu papel e propósito em alinhamento com a visão e estratégia da empresa, é subordinar o propósito ao canal. Esta definição estratégica é urgente para que não se perca mais uma oportunidade de actualizar a cultura, práticas e resultados da liderança ao futuro desejado da sua empresa.
Este artigo faz parte do Caderno Especial “Transformação Digital” na edição de Julho (n.º 127) da Human Resources nas bancas.
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