Filipa Pinto Coelho, Associação VilacomVida: «O termo inclusão devia perder o seu sentido, e seremos um só, e não dois mundos num»

Numa iniciativa da Associação Vilacomvida, nasce agora em Portugal o primeiro Café JOYEUX, um conceito solidário e inclusivo que tem por missão tornar a diferença visível, potenciar o encontro e propor mais emprego a pessoas que estão afastadas do meio laboral, como explica em entrevista Filipa Pinto Coelho.

Por Sandra M. Pinto

O Café JOYEUX foi fundado em França por Yann e Lydwine Bucaille, em 2017. Agora, quatro anos depois, o conceito chega a Portugal na sequência do acordo de aliança celebrado entre a Fundação Émeraude Solidaire e a Associação Vilacomvida. Em entrevista à Human Resources, Filipa Pinto Coelho, presidente da Associação VilacomVida, explica a missão e os objectivos deste café inclusivo e solidário.

Como nasceu a ideia do Café-restaurante JOYEUX?
A Associação VilacomVida, IPSS nascida em 2016 com o objectivo de aproximar a sociedade da diferença, para desmistificar preconceitos e assim beneficiar a inclusão de pessoas com dificuldades intelectuais e do desenvolvimento (tais como trissomia 21 ou as perturbações do espectro do autismo), preparava-se para lançar um conceito de restauração inclusiva muito semelhante – o CafécomVida – que esteve aberto como projecto-piloto deste modelo durante 18 meses em Santos. Quando soubemos da abertura dos Cafés Joyeux em França – em vez de “reiventarmos a roda” – convidámos a marca a internacionalizar a sua presença e missão, começando por Lisboa – e por termos a mesma visão sobre esta necessidade de incluir a diferença naturalmente nas nossas vidas, ela imediatamente aceitou.

A história dos Cafés Joyeux começou em França, em Dezembro de 2017, quando numa viagem de barco, o fundador dos Cafés Joyeux, Yann Bucaille, foi abordado por um jovem com autismo, o Theo (hoje imagem no logotipo), que lhe disse: “Capitão, eu gostava muito de ter um trabalho e de me sentir útil. Tu que és empresário, podes arranjar-me um emprego?”. Perante a resposta negativa por parte de Yann Bucaille, o jovem ficou triste e esta tristeza incomodou o fundador dos Cafés Joyeux, levando-o a criar este projecto, juntamente com a sua esposa, Lydwinne Bucaille.

Qual o ou os objetivos da iniciativa?
O Café Joyeux é a primeira família de cafés-restaurantes solidários e inclusivos que tem por missão trazer a diferença para o centro das nossas vidas e das nossas cidades, empregando – para então formar – jovens-adultos com dificuldades intelectuais e do desenvolvimento (DID). Para convidar cada vez mais pessoas a conhecerem a mais-valia na diferença, os cafés-restaurantes Joyeux propõem uma carta deliciosa, composta por pequenos-almoços, almoços e lanches, produzidos no local com produtos frescos e da estação, por uma equipa inclusiva e motivada composta por estes jovens e por tutores especializados na área da restauração, que têm por objectivo ajudar estes jovens a serem colaboradores autónomos e polivalentes no sector da restauração. Um aspecto muito inovador neste conceito é: contratar para Fomar, ao invés de formar para, quem sabe, contratar.

Chegam agora a Portugal, quais as vossas expectativas?
O primeiro café-restaurante Joyeux já abriu e agora estamos ansiosos pelo segundo, terceiro, quarto e quinto.. Temos um plano de expansão ambicioso, e a avaliar pela reação dos clientes, temos tudo para acreditar que será viável cumprir este plano e sonhar alto, à medida das capacidades e das necessidades destas pessoas extraordinárias mostrarem a força e a ambição de que são feitas.

De que forma analisam a evolução do tema da empregabilidade de pessoas com deficiência?
Este tema é naturalmente – e de forma consistente – uma preocupação social. Apesar do facto de existir, desde há muitos anos, um trabalho incrível que é efetuado por instituições especializadas na área da deficiência, – sentimos que é necessário trazer essa diferença para a sociedade para que esse trabalho seja mais facilitado. Costumo dizer que, antes de sermos profissionais, professores, potenciais empregadores, colegas, somos pessoas. E é esta dimensão social e humana da pessoa que tem que conhecer naturalmente, no seu quotidiano, a diferença, para deixar de ter medo de se relacionar com ela social e profissionalmente e assim, integrá-la naturalmente também na sua vida. Desta forma, acreditamos que, mais facilmente, os empregadores quererão dar este passo de integração – no sentido da não exclusão destas pessoas no momento de constituição das suas equipas – os professores acreditarão também mais naturalmente nas capacidades dos seus alunos com necessidades educativas especiais, os colegas na escola crescerão com maior consciência da mais valia na diversidade humana e procurá-la-ão, e por aí em diante. Temos por isso a enorme expectativa que este projecto venha a dar um bom contributo nesse sentido, pois é bem mais fácil do que pensamos desconstruir preconceitos se soubermos convidar as pessoas de forma positiva e natural a conhecerem esta parte da realidade, que no final faz parte do todo que é o mundo em que vivemos.

Tem evoluído de forma consistente?
O triénio 2016-19 revelou um decréscimo no número de pessoas com deficiência inscritas nos centros de emprego, porém a pandemia agravou esta situação e inverteu novamente os números, com um crescimento de 10% neste número de inscrições. Por isso, estamos felizes com a oportunidade e mensagem que pretendemos transmitir com este projecto, neste momento particularmente desafiante para muitas famílias.

Estão as empresas mais conscientes para a valorização destas pessoas?
Diria que sim, embora ainda sintamos que se trata de algo mais imposto que naturalmente procurado. Queremos contribuir, com uma comunicação positiva focada nos talentos e capacidades destas pessoas, para reduzir o estigma e aumentar esta proactividade.

No vosso caso, e sendo que há uma relação próxima delas com o público, qual tem sido a reacção das pessoas?
Tem sido uma reação muito positiva e acima de tudo muito natural. Penso que muitas vezes complicamos demais esta realidade. A energia que se cultiva no Joyeux é uma boa energia e em qualquer parte onde as pessoas se sintam convidadas e onde o ambiente for positivo, engaging e entusiasmante, onde a alegria seja parte da forma de ser e estar de uma equipa, tudo isto envolto numa carta apetecível e de qualidade, que também envolve e torna fácil e natural apoiar uma causa, talvez não fosse de esperar o contrário.

Como se processa a vosso processo de recrutamento?
O processo de recrutamento é um processo igual a outro qualquer. Uma vez identificada a data de abertura de um Café-restaurante Joyeux e definida a sua localização, anunciamos a abertura de um processo de recrutamento – fazemo-lo nas nossas redes sociais, na newsletter que as pessoas podem subscrever no site www.vilacomvida.pt e junto da rede de parceiros sociais com quem trabalhamos. Os candidatos chegam-nos por três vias distintas: i) a partir dos projectos de capacitação em contexto inclusivo que a VilacomVida já desenvolve para trabalhar a autonomia destes jovens-adultos; ii) a partir da rede de parceiros sociais que trabalham neste sector e com quem temos já uma relação estabelecida; iii) directamente através de contactos das famílias que tiveram conhecimento do projecto – ou mesmo da parte dos próprios candidatos – como foi o caso do Sebastião, que hoje faz também parte da equipa.
A entrevista de selecção conta com as pessoas responsáveis pelo negócio, pela operação e pela área de Recursos Humanos. Existe um guião de entrevista pensado de forma clara e descomplicada, e um contexto que permite ao candidato exprimir-se livremente. Na maioria dos casos, o candidato não está acompanhado durante a entrevista. Posteriormente, é tomada a decisão pela equipa de gestão, contactados os candidatos e iniciado o processo de formalização da relação contratual.

Quantos colaboradores têm neste momento?
Trabalha no café uma equipa inclusiva formada por três profissionais da restauração, que são também tutores destes colaboradores, e nove jovens-adultos com dificuldades intelectuais e do desenvolvimento, que trabalham por turnos.

Do que falamos quando referimos pessoas com dificuldades intelectuais e do desenvolvimento?
Falamos nomeadamente de trissomia 21, perturbações do espectro do autismo ou de outros casos de défice cognitivo, muitas vezes sem um diagnóstico específico, mas que impedem um regular funcionamento escolar.

Têm elas alguma formação antes de começarem a trabalhar?
Sim, o modelo está criado para que exista uma formação de 15 dias antes do início da operação.

Abriram em Lisboa primeiro franchising da marca JOYEUX, fora de França. É vossa intenção estender o Café-restaurante JOYEUX a outras regiões portuguesas?
Sim, temos essa ambição. Segura-nos a experiência positiva da replicação do modelo em França e a forma também positiva como decorreu esta primeira abertura. Acima de tudo, move-nos a enorme vontade de retirar de casa pessoas cheias de valor e talento, e encorajar os jovens que estão a terminar a escola – e respectivas famílias – para um caminho com futuro.

Há nesta iniciativa um forte sentido de missão, certo? Quais os vossos maiores desafios?
Sim, existe, mas é algo que nos alimenta muito também enquanto equipa – o Bem traz o Bem. Somos diariamente alimentados e transformados positivamente por este projecto-missão e isso torna tudo ainda mais entusiasmante. Uma vez comprovado que o modelo funciona, o nosso maior desafio é conseguir envolver os parceiros certos para que seja possível cumprir com o plano de expansão do projecto, inaugurar mais postos de trabalho e assim atingir rapidamente a sustentabilidade desta missão.

De que forma olham para o futuro destas pessoas e deste tema?
Esta é a nossa visão: um dia a diferença já não se vê, pois fará genuinamente parte de nós. Esperamos que daqui a uns anos, os cafés-restaurantes Joyeux sejam apenas espaços agradáveis, de qualidade, e que, à semelhança de outros cafés e restaurantes e de outras empresas noutros sectores, continuem a apostar em equipas inclusivas porque o modelo comprovou ser win-win em todos os sentidos. Esperamos também que o termo inclusão perca cada vez mais o seu sentido, pois seremos um só – e não dois mundos num.

 

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