Directiva Whistleblowing: já percebeu em que consiste exactamente? Traz novas obrigações para as organizações
A União Europeia impôs, até dia 17 de Dezembro, a transposição da Directiva Whistleblowing (UE) 2019/1937, para ser aplicada em todas as organizações públicas e privadas com mais de 50 colaboradores. A Human Resources partilha um artigo que esclarece tudo sobre o tema. O artigo faz parte da segunda edição do livro “O RGPD e os Recursos Humanos – Guia prático para a conformidade”, que inclui um novo capítulo dedicado ao whistleblowing e aos canais de denúncia interna que as empresas são agora obrigadas por lei a ter. O livro é da autoria de Simão de Sant’Ana, sócio da Abreu advogados, e Vitorino Gouveia, especialista em Segurança da Informação e Protecção de Dados.
Em 2009, a CNPD emitia uma deliberação na qual estabelecia os princípios aplicáveis ao tratamento de dados pessoais com a finalidade de comunicação interna de actos de gestão financeira irregular – a Deliberação n.º 765/2009 -, que delimitava tais linhas de ética a matérias relativas à contabilidade da empresa, aos controlos contabilísticos internos, à auditoria, à luta contra a corrupção e ao crime bancário e financeiro. Tal marcava o início da regulamentação sobre o whistleblowing.
Já no sector privado, e apenas com a revisão do Código do Trabalho em 2017, foi acrescentada uma nova obrigação à lista de deveres do empregador, segundo a qual, nos termos do artigo 127.º n.º 1 alínea k), o empregador deve «adoptar códigos de boa conduta para a prevenção e combate ao assédio no trabalho, sempre que a empresa tenha sete ou mais trabalhadores».
Mais recentemente, foi publicada a diretiva (UE) n.º 2019/1937, de 23 de Outubro, relativa à protecção das pessoas que denunciam violações do direito da União – também denominada de “Directiva Whistleblowing”. Com a publicação da mesma, os Estados-membros obrigaram-se a adoptar legislação nacional, com vista a transpor os princípios estabelecidos pela directiva – o que no caso português veio a suceder a 20 de Dezembro com a publicação da Lei 93/2021. (…)
Tendo em consideração o facto de a temática dos canais de denúncia/whistleblowing implicar o tratamento de dados pessoais, nomeadamente de dados pessoais de trabalhadores, chamamos a atenção para o facto de as organizações, no estrito cumprimento das suas actuais obrigações legais, não só necessitam de dispor de um canal interno a efeitos de recepção e condução das denúncias em matéria de assédio no local de trabalho, como também necessitam de dispor de canais de denúncia de âmbito mais alargado, por forma a incentivarem a realização de denúncias às violações nas variadíssimas matérias previstas na Lei 93/2021 – e mais protegerem os respectivos denunciantes.
De referir o extensíssimo âmbito/domínios sobre os quais as denúncias podem agora – ao abrigo da Lei 93/2021 – incidir, em concreto estipula o artigo 2.º da mesma, os seguintes:
i) Contratação pública;
ii) Serviços, produtos e mercados financeiros e prevenção do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo (matéria já anteriormente prevista da deliberação da CNPD);
iii) Segurança e conformidade dos produtos;
iv) Segurança dos transportes;
v) Protecção do ambiente;
vi) Protecção contra radiações e segurança nuclear;
vii) Segurança dos alimentos para consumo humano e animal, saúde animal e bem-estar animal;
viii) Saúde pública;
ix) Defesa do consumidor;
x) Protecção da privacidade e dos dados pessoais e segurança da rede e dos sistemas de informação;
xi) Acto ou omissão contrário às regras do mercado, incluindo as regras de concorrência e auxílios estatais, bem como as regras de fiscalidade societária;
xii) Criminalidade violenta.
Denunciantes protegidos = trabalhadores protegidos
O objectivo da Directiva (UE) 2019/1937 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro de 2019 e da lei nacional que a transpõe – Lei 93/2021 de 20 de Dezembro – traduz-se na criação de regras e formalidades que incentivem as denúncias por violações do direito da União, pois esta é uma das formas mais eficazes que as autoridades nacionais e comunitárias têm de tomar conhecimento de situações potencialmente contrárias aos diversos normativos vigentes na União Europeia, nomeadamente uma forma de combater diversos tipos de criminalidade.
Neste sentido, a legislação supra indicada vem criar um quadro legal de protecção aos denunciantes, estabelecendo as condições legais com vista a favorecer a exposição das situações que, na opinião do denunciante, possam constituir um ilícito. Mais visando a referida legislação assegurar as condições para que os denunciantes não venham a sofrer represálias em virtude das denúncias realizadas.
Assim, a Lei 93/2021 considera como denunciante «a pessoa singular que denuncie ou divulgue publicamente uma infração com fundamento em informações obtidas no âmbito da sua actividade profissional, independentemente da natureza desta actividade e do sector em que é exercida, é considerada denunciante.» e mais elenca, a título exemplificativo, quem poderá ser denunciante, a saber:
a) Os trabalhadores do sector privado, social ou público;
b) Os prestadores de serviços, contratantes, subcontratantes e fornecedores, bem como quaisquer pessoas que actuem sob a sua supervisão e direcção;
c) Os titulares de participações sociais e as pessoas pertencentes a órgãos de administração ou de gestão ou a órgãos fiscais ou de supervisão de pessoas colectivas, incluindo membros não executivos;
d) Voluntários e estagiários, remunerados ou não remunerados.
No âmbito da protecção dos denunciantes, a referida Lei 93/2021 mais vem proibir qualquer acção tomada contra o denunciante que se consubstancie num acto de discriminação, perseguição ou de retaliação.
No caso específico dos trabalhadores denunciantes, as seguintes prácticas por parte do empregador passam a ser proibidas na medida que se presumem como actos de retaliação contra os mesmos.
Em concreto reza o artigo 21.º n.º 6 do citado diploma legal que:
Artigo 21.º (…) 6— Presumem-se motivados por denúncia interna, externa ou divulgação pública, até prova em contrário, os seguintes atos, quando praticados até dois anos após a denúncia ou divulgação pública: a) Alterações das condições de trabalho, tais como funções, horário, local de trabalho ou retribuição, não promoção do trabalhador ou incumprimento de deveres laborais; b) Suspensão de contrato de trabalho; c) Avaliação negativa de desempenho ou referência negativa para fins de emprego; d) Não conversão de um contrato de trabalho a termo num contrato sem termo, sempre que o trabalhador tivesse expectativas legítimas nessa conversão; e) Não renovação de um contrato de trabalho a termo; f) Despedimento; g) Inclusão numa lista, com base em acordo à escala setorial, que possa levar à impossibilidade de, no futuro, o denunciante encontrar emprego no sector ou indústria em causa; h) Resolução de contrato de fornecimento ou de prestação de serviços; i) Revogação de acto ou resolução de contrato administrativo, conforme definidos nos termos do Código do Procedimento Administrativo. 7 — A sanção disciplinar aplicada ao denunciante até dois anos após a denúncia ou divulgação pública presume-se abusiva. |
Novas obrigações legais para as organizações
Com vista a facilitar a criação dos mecanismos de denúncia, todas as pessoas colectivas, incluindo o Estado, que empreguem 50 ou mais trabalhadores, passam a estar obrigadas a criar um canal de denúncia interna.
Tais canais de denúncia interna têm de garantir, entre outros aspectos, a confidencialidade da identidade ou o anonimato dos denunciantes e a confidencialidade da identidade de terceiros mencionados na denúncia, assim como mais têm de impedir o acesso de pessoas não autorizadas ao objecto da denúncia realizada.
Prazos de conservação
Mais recentemente e já ao abrigo da Lei 93/2021, as denúncias deverão ser conservadas durante o período de cinco anos e, independentemente desse prazo, durante a pendência dos processos judiciais ou administrativos referentes à denúncia.
De qualquer forma, o empregador deverá ficar sempre com prova bastante de ter dado seguimento à denúncia recebida e ao respectivo processo de whistleblowing, em conformidade com o previsto no respectivo regulamento interno.
Regime sancionatório
De notar que o incumprimento de diversas obrigações de compliance impostas pela Lei 93/2021 e/ou a práctica de actos de retaliação, entre outros, contra os denunciantes poderá constituir contraordenação muito grave punível, no caso de o agente ser pessoa colectiva, com coima de 10 mil euros até aos 250 mil euros, mais podendo o agente ser punido criminalmente, caso tal prática esteja tipificada como tal.
In O RGPD e os Recursos Humanos 2.º Edição, Edições Almedina