Estórias com Propósito: A contar (mais de 100 mil) histórias há oito anos

Há coisas a que não conseguimos atribuir um preço, devido ao valor que têm. Uma boa noite de sono é uma delas.

 

Por Fernanda Freitas, fundadora e presidente executiva da Associação Nuvem Vitória

 

Imagine ser criança e essa noite ser passada num hospital. Ao pensar nestas crianças – e nos seus cuidadores, que acabam por estar também internados –, decidimos levar para as pediatrias a magia dos contos de embalar à hora de deitar.

Quando, em 2011, presidi ao Ano Europeu do Voluntariado, consegui ter um retrato bastante fiel do que é a realidade do voluntariado no nosso país. Percebi, sobretudo, que são muitas as pessoas que, em Portugal, tomaram a decisão de dedicar parte do seu tempo aos outros, sem esperar nada em troca a não ser um sorriso. Comecei a designar esta “recompensa” como o nosso “salário emocional”: aquele que não se deposita em nenhum outro banco para além do dos afectos e da boa vontade.

Nessa época, já era voluntária há cerca de uma década, em ambiente hospitalar pediátrico: durante uma manhã, ora no IPO (Instituto Português de Oncologia de Lisboa Francisco Gentil), ora no Hospital de Santa Maria (ambos em Lisboa), enchia a sala de actividades com histórias divertidas que, por breves momentos, resgatavam as crianças daquelas quatro paredes e as transportavam para mundos encantados onde a dor não existe.

Esse serviço, contudo, deixou de existir… e senti-me verdadeiramente “órfã” de voluntariado. Ainda tentei outras propostas que me pareciam interessantes, mas cheguei a uma conclusão que ainda hoje partilho nas nossas formações: só podemos fazer o voluntariado que nos deixa verdadeiramente felizes! Não vale de muito ir fazer “aquela acção” que a empresa nos propõe se não nos identificamos com a causa e não sentimos o propósito. Um voluntário é pleno na sua entrega e dedicação.

Foi então que, em 2016, decidi implementar um projecto em que regressava às histórias junto de crianças internadas, mas num período do dia em que fizesse ainda mais sentido: à hora de deitar, promovendo uma boa preparação para uma noite de sono o mais tranquila possível.

Tinha acabado de fazer formação em Empreendedorismo e Inovação Social e ainda trazia uma frase gravada na memória: “Inovação social é resolver um problema negligenciado, de uma forma que ainda ninguém tenha feito.”

Assim, em Novembro de 2016, e com a ajuda de uma equipa fantástica e muitos, muitos parceiros que acreditaram em nós, lançámos um projecto-piloto para testar o modelo, em 12 camas e com cerca de 24 voluntários que, todas a noites, entre as 20h e as 22h, liam histórias às crianças internadas.

Hoje, somos quase 1200 voluntários que trabalham em 11 hospitais. Em cerca de 31 mil horas de voluntariado, já lemos e contámos 100 mil histórias a mais de 67 mil crianças internadas na Pediatria, bem como a pais, mães, avós e cuidadores em geral.

E se até agora só tínhamos estudos empíricos e baseados na percepção dos envolvidos, recentemente, um estudo realizado pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e pela Universidade Federal do ABC, no Brasil, demonstrou os benefícios fisiológicos e emocionais de contar histórias a crianças internadas. A pesquisa envolveu 81 crianças, de dois a sete anos, e revelou que aquelas que tiveram momentos com histórias relataram menos dor, encararam o tratamento de forma mais positiva e sentiram-se mais confiantes no ambiente hospitalar. Os resultados indicaram que o grupo que ouviu histórias teve o dobro dos benefícios em comparação ao grupo que participou numa sessão de jogos. Foram recolhidas amostras de saliva antes e depois das sessões, para medir os níveis de cortisol (a hormona “do stress”) e a oxitocina (hormona ligada à empatia), revelando uma melhora significativa no bem-estar das crianças.

O estudo destacou ainda o poder humanizador das narrativas, ajudando as crianças a lidar melhor com a dor e o medo. Contar e ouvir histórias é um acto natural, de ligação ao outro, de ressignificar momentos; elas estimulam a imaginação, a criatividade e a capacidade de resolver problemas, além de introduzirem novos vocabulários e conceitos. Ajudam as crianças a entender o mundo ao seu redor e a desenvolver habilidades importantes como a escuta atenta e o pensamento crítico. Além disso, as histórias oferecem um espaço seguro para que as crianças expressem os seus sentimentos e compreendam as suas próprias emoções. Em ambientes desafiadores, como os hospitais, proporcionam ainda um conforto emocional que ajuda a enfrentar estas situações com mais confiança e resiliência.

Ao longo de todos estes anos, recebemos centenas de mensagens a agradecer o nosso trabalho: o pai daquele miúdo que tinha acabado de ser internado em plena véspera de Natal e que recebeu a visita de duas pessoas para lhe contarem uma história – algo que não é “normal” acontecer num hospital e que marcou pela positiva aquela experiência… ou a mãe que nos disse que a filha não queria ir para casa porque não queria ficar sem histórias da Nuvem… ou o avô que nos pediu para contar histórias ao neto que estava em coma, porque acreditava que ele ia ouvir e gostar muito… Cada voluntário tem já a sua própria dose de “histórias dentro da história” da Associação.

Cada criança internada que conseguimos sossegar, descansa durante a noite e responde melhor aos tratamentos. Está mais serena e mais feliz. E é nesta felicidade que assenta a Nuvem Vitória: queremos continuar o nosso propósito de chegar a muitas mais crianças, um pouco por todo o País, que, longe de casa e por vezes sozinhas, têm, mesmo assim, um mimo ao deitar e podem ouvir, mesmo antes de adormecer: “Vitória, Vitória, acabou-se a história…”

 

Este artigo foi publicado na edição de Outubro (nº. 166) da Human Resources, nas bancas.

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