Foi vítima de assédio (moral ou sexual) em contexto laboral? Saiba o que fazer
A lei consagra expressamente a proibição de assédio. João Dotti de Carvalho, associado coordenador da Telles, nas áreas de prática de Trabalho e Segurança Social e Direito Marítimo e Economia do Mar explica em que consiste o assédio no trabalho (moral ou sexual), quais os mecanismos de defesa que a lei lhe confere e o que pode exigir pelos danos causados.
Por João Dotti de Carvalho, associado coordenador da Telles, nas áreas de prática de Trabalho e Segurança Social e Direito Marítimo e Economia do Mar
O assédio, em particular no trabalho, é hoje um tema presente no nosso quotidiano, seja no contexto social ou familiar ou capaz de surgir numa simples conversa entre amigos. Se, por um lado, isso significa uma crescente e desejável consciencialização social, individual e colectiva (também ao nível das próprias empresas), para este fenómeno e para os efeitos devastadores que pode causar a nível pessoal e profissional em quem o sofre e também na própria organização onde ocorre, também é verdade que, resultante da dificuldade muitas vezes existente de distinguir a figura do assédio de relações e conflitos normais no âmbito de uma relação de trabalho, continuamos por vezes a deparar-nos com alguma banalização da expressão.
De acordo com a definição legal, consubstanciará assédio todo o comportamento indesejado, nomeadamente baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.
Como tem sido realçado, a amplitude da definição legal gera dificuldades, nela parecendo caber toda e qualquer situação que possa facilmente decorrer de um relacionamento menos harmonioso entre um trabalhador e a respectiva chefia.
Torna-se, assim, imperioso um esforço na delimitação da respectiva esfera de protecção, o que tem sido corroborado pela jurisprudência na aplicação da lei ao caso concreto, sendo possível identificar alguns traços estruturais na figura do assédio no trabalho, sendo eles: um comportamento indesejado com algum grau de reiteração (não apenas um acto isolado); intenção de afectar a dignidade da pessoa ou criar um ambiente hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador, que afecta e pode inclusive levar ao abandono da organização; objectivo ilícito, ou no mínimo, eticamente reprovável, traduzido na obtenção de um efeito desejado ou com o qual se conforma quem o pratica.
O legislador distingue o assédio moral do assédio sexual, sendo que neste os comportamentos indesejados, de natureza verbal ou física, revestem caráter sexual.
QUAIS OS MECANISMOS DE DEFESA E PROTECÇÃO QUE A LEI LHE CONFERE?
A lei consagra expressamente a proibição de assédio. No caso de ser vítima de assédio, a denúncia é a forma de dar a conhecer a situação e de permitir que a própria empresa a possa resolver.
Em regra, nas organizações de maior dimensão, existem hoje canais próprios criados para o efeito, que asseguram o anonimato e a protecção do denunciante. Neste âmbito, de realçar a obrigação legal de as empresas com 7 ou mais trabalhadores criarem um Código de Conduta para prevenção e combate ao assédio no trabalho, o que pode e deve consubstanciar um importante instrumento de auxílio, quer na identificação e qualificação das situações, quer quanto aos mecanismos de denúncia internos.
Nas organizações de menor dimensão, à partida, a denúncia poderá ser efectuada junto dos serviços de Recursos Humanos, que idealmente devem ter alguém identificado com essa incumbência especifica, que assegure também a necessária confidencialidade.
Importa ter presente que a denúncia assume especial relevância na medida em que a lei – no que representa uma excepção ao princípio da autonomia do empregador em matéria disciplinar e que tem levantado alguma discussão – impõe às empresas quando têm conhecimento de uma possível situação de assédio, um dever de investigar e, se for o caso, agir disciplinarmente, sob pena de incorrer na prática de contraordenação grave.
Por outro lado, como medida de protecção da vítima e eventuais testemunhas, a lei estabelece que as mesmas não podem ser alvo de sanções disciplinares tendo por base as declarações prestadas no processo, excepto no caso de terem agido com dolo, ie, conscientes de que a situação não integrava a prática de assédio e com o intuito de prejudicar o visado e a empresa.
Acresce, ainda, que o legislador salvaguardou a existência de eventuais despedimentos “sanção” decorrentes do exercício do direito de denúncia, estabelecendo que o despedimento promovido até 1 ano após a denúncia presume-se abusivo. Por outras palavras, parte-se do princípio que nestes casos o despedimento visa sancionar a denúncia e terá de ser a empresa a provar o contrário.
No caso de não existir ou se não confiar no canal interno de comunicação para o efeito, existe sempre a possibilidade de recorrer à denúncia a entidades fiscalizadoras, no caso à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) ou, no sector público, à Inspeção Geral de Finanças (IGT), as quais poderão e deverão confirmar a existência e adequação dos mecanismos de comunicação ou do Código de Conduta, quando exigível, e concluindo pelo incumprimento de alguma obrigação por parte do empregador, agir em conformidade.
DIREITO A UMA INDEMNIZAÇÃO PELOS DANOS CAUSADOS
O assédio pode integrar justa causa de resolução do contrato de trabalho por parte do trabalhador. O trabalhador vítima de assédio pode intentar acção judicial, que em casos mais graves pode inclusive revestir natureza criminal, no âmbito da qual pode exigir o ressarcimento dos danos que lhe foram causados.
O direito de indemnização abrange os danos patrimoniais, que integram as perdas materiais sofridas em virtude do assédio, como por exemplo os custos com assistência médica ou salários que deixem de ser auferidos, bem como os danos não patrimoniais (morais), que estão relacionados com a saúde psíquica ou física ou até com o bom nome ou reputação da vítima, relativamente aos quais, não sendo possível uma avaliação económica, será determinada uma quantia que pode variar de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
Em qualquer caso, importa ter presente que é pressuposto essencial para a possibilidade de efectivar este direito, que se concretizem os comportamentos que motivam o pedido e se faça prova dos mesmos (nomeadamente através de testemunhas ou de prova documental), assim como dos danos sofridos e relação causal entre esses danos e o comportamento assediante.
A responsabilidade pelo pagamento da indemnização será à partida apenas do assediante. Porém, no caso da empresa não ter accionado os mecanismos a que está obrigada em caso de denúncia, nomeadamente investigando e agindo disciplinarmente se for o caso ou, porventura, não tiver implementado um Código de Conduta estando a isso obrigada, poder-se-á colocar a questão de ser a própria entidade empregadora a responsabilizada, juntamente com o assediante pelo pagamento da indemnização devida.
De salientar, por fim, que desde 2017, com a nova lei de combate ao assédio no trabalho, a lei passou a prever que as doenças resultantes de assédio no trabalho sejam abrangidas pelo regime das doenças profissionais, com a consequente protecção aos trabalhadores decorrentes desse regime, nomeadamente, através o pagamento de compensações.
Em conclusão, a lei já estabelece mecanismos efectivos de protecção e garantia da vítima de assédio no trabalho, e das próprias testemunhas, que podem ajudar a lidar e combater esta realidade.
Em todo o caso, a dificuldade por vezes existente em distinguir alguns comportamentos que não consubstanciam assédio e a banalização desta expressão impõem também a consciencialização das consequências gravosas que poderão decorrer para o denunciado de uma denúncia infundada ou leviana.