O “big brother” no trabalho remoto

Por Valter Ferreira – Data Scientist, Marketeer, Economista do território, Inovador e Especialista em cidades humanas e inteligente

O tema do teletrabalho ainda levanta muita angústia em alguns gestores, com medo que os trabalhadores percam capacidade produtiva e no limite não estejam realmente a trabalhar. Existe ainda um longo caminho a percorrer, pese embora que os resultados da pandemia de 2020-2022 tenham ajudado a desmitificar o falso estereotipo do teletrabalhador preguiçoso e distraído, pelo verdadeiro estereotipo do trabalhador que deixou de perder tempo em deslocações.

Mesmo assim, nos últimos meses temos assistido à confiança entre empregador e trabalhador, e também muitas vezes entre colegas, a tornar-se um verdadeiro campo minado. As empresas podem ter a intenção/interesse em identificar os trabalhadores que não estão a trabalhar (quando estão em teletrabalho), no entanto esta tendência de monitorização da produtividade, muitas vezes através de spyware representa um gasto de energias, dinheiro e deteriora relações. Por um lado, aqueles que são valiosos e produtivos vão se sentir incomodados com o excesso de controlo, por outro lado aqueles com maior expertise técnica vão encontrar modos de “vadiar” e jogar jogos nos seus computadores.

Li há relativamente pouco tempo um artigo na revista Wired que, e traduzindo livremente – “os trabalhadores estão a instalar máquinas virtuais para proteger os programas ofensivos – e o seu trabalho – do resto do que existe no seu comutador, ou seja, a criar mecanismos que permitam trabalhar numa janela e jogar noutra. Trabalhadores mais engenhosos podem explorar numerosas estratégias de controlar os esforços de monitorização dos seus empregadores”. No limite, os empregadores terão que pensar de forma mais estratégica a forma com medir e valorizar os seus trabalhadores do que pela pressão do relógio ou a monitorização de ecrãs.

Um estudo recente da Ricoh Europe indica que 65% dos empregadores não confia nos trabalhadores que trabalham remotamente, e 39% não acreditam que os trabalhadores em casa trabalhem com o mesmo empenho e eficiência, mas em contraponto apenas 19% apontam para a perda de produtividade desde que adotaram o teletrabalho.

Mas se o teletrabalho não surgiu agora, já é praticado há muito tempo, por muitas empresas, porque é que esta crise de confiança começa agora a ganhar corpo? Tenho em crer que o facto da sua acelerada disseminação a todos os trabalhadores e não só a alguns (escolhidos pelo empregador com base em diversos fatores que não vou agora explorar) poderá ter contribuído para essa desconfiança.

Também acredito que muitos, no início da pandemia, foram “mandados” para casa sem equipamento, formação ou mesmo vontade de trabalhar remotamente. Acrescendo o facto da incerteza económica e estabilidade do emprego gerar ansiedade e per si promover o desejo do trabalho individual e a desconfiança no outro.

Na minha opinião o cerne da desconfiança não está no trabalhador, mas sim no empregador, importa que as gestões de topo tenham presente que o teletrabalho ou hibrido e o trabalho presencial são coisas totalmente diferentes, e que ainda que esta falta de confiança exista, oferecer a possibilidade de teletrabalho será essencial para atrair e reter bons profissionais.

Recuando a março de 2020 com o fecho de muitas empresas devido à pandemia e ao boost do teletrabalho, existiram algumas empresas que levaram a monitorização dos seus trabalhadores ao limite, tendo havido relatos de instalação de software que controla o movimento do rato, de serviços de GPS no smartphone profissional, downloads aleatórios do screenshot do ecrã do trabalhador, controlar a presença através da webcam. Claro que todas estas ferramentas de monitorização levantam questões de privacidade e legalidade.

Na utilização destas ferramentas, a preocupação com a privacidade é claramente um dos elementos cruciais. Ainda que as estatísticas apontem para que “a generalidade dos trabalhadores remotos tenham os mesmos níveis de produtividade que em presença”, não é certo que não exista quem não tire partido da falta de supervisão física.

No entanto, deve ser muito bem considerado o que se pretende monitorizar, se é mesmo necessário, e quais as necessidades do negócio que são asseguradas com essa monitorização, balanceando-as com o direito à privacidade do trabalhador. A ter mesmo que existir monitorização esta deve ser o menos intrusiva possível e só deve recolher dados se os dados recolhidos forem efetivamente para ser utilizados para algo. Importa reter que o RGPD proíbe a tomada de decisão puramente automatizada quando a mesma impacta legalmente num individuo, assim os dados recolhidos por monitorização remota não devem ativar consequências automáticas para um trabalhador.

Penso claramente que a monitorização não é a resposta, e que não funciona. O um empregador que julga que sabe tudo o que os seus trabalhadores estão a fazer remotamente (e mesmo presencialmente) está a enganar-se a si próprio. Também a nossa natureza humana tende a focar-nos mais na execução de acordo com a medida do que com o objetivo, aliás perdemos muitas vezes mais tempo em perceber como contornar a medida do que com o trabalho em si. E por fim, claro, a monitorização é ineficiente e aumenta o problema da desconfiança.

Assim, e para construir uma confiança mútua entre empregadores e trabalhadores remotos importa, na minha opinião, que seguiam alguns passos simples como:

  • Aumentar a frequência das reuniões de ponto de situação;
  • Definir milestones tangíveis, que mostrem progresso, e que indiquem o rumo do trabalho “invisível” que está a ser feito;
  • O empregador ter disponibilidade para responder as questões/dúvidas e falar com os trabalhadores remotos;
  • Não negligenciar as relações presenciais, de vez em quando será necessário reunir as “tropas”;
  • Pensar em “equidade” em todo o momento, nenhum trabalhador pode, independentemente do regime de horário, pensar que outro tem mais ou melhores benefícios que o próprio.

Em suma, empregadores que estejam dispostos a conversar, dar feedback e a fazer solicitações regulares aos trabalhadores não têm motivo para monitorizar em versão “big brother”, antes pelo contrário, irão estimular uma relação mais transparente e inspirar os membros da equipa a dar sempre o seu melhor.

Ler Mais