O egoísmo do altruísmo
É paradoxal pensar num tema destes, se atentarmos ao absoluto antagonismo de cada um dos conceitos. O altruísmo pressupõe uma espécie de disponibilidade em relação aos outros e ao mundo, é uma forma de partilha de algo só meu ou que só a mim se destina. Este só meu, não se reveste apenas de tudo o que é material, mas também, e talvez essencialmente, de muito do que é imaterial como as emoções, os sentimentos, as opiniões, etc.
Por Pedro Quaresma da Silva, coach certificado pela ICU Portugal
Ser altruísta tem muito a ver com a capacidade de cada um se partilhar a si próprio, mais do que o que tem. O sentido do altruísmo é, na minha opinião, a forma de me sentir útil na felicidade do mundo que me envolve, a consciência de poder fazer a diferença, a capacidade de acreditar que tudo poderá ser melhor, e poderá também ser a manifestação inconsciente da minha autoestima em favor dos que a não têm.
No sentido absolutamente inverso encontramos o egoísmo, aquele sentimento malfadado, pesado, negativo, um autêntico ladrão de energias. Na minha opinião, julgo haver uma confusão muito grande entre os conceitos de inveja e egoísmo, e estes são manifestamente diferentes.
Em traços muito gerais e de forma muito rápida e concisa, diria que, no egoísmo, foco em mim tudo o que existe à minha volta, enquanto na inveja quero para mim tudo o que não é meu. É assim qualquer coisa como, na inveja, os outros lutam e eu quero para mim, enquanto no egoísmo, só luto por e para mim.
Normalmente, um invejoso tem baixa autoestima, não acredita em si próprio, e vê-se como uma vítima da vida em que tudo acontece aos outros, mas a si próprio a vida não traz nada de bom. O invejoso está atento aos vizinhos por trás das cortinas da sua janela, não dá a cara. Não consegue ser assertivo e, quando precisa de ser frontal, não o consegue fazer sem se revelar agressivo, porque a inveja corrói as emoções. O invejoso, está sempre atento aos outros, mas no sentido negativo e destrutivo, enquanto o egoísta, está sempre atento a si próprio, e, quando atenta aos outros, é no sentido de perceber como poderá tirar os dividendos ou o mérito de algo que precisa para si. Basicamente, o invejoso quer para si tudo o que vê nos outros, e o egoísta fecha em si tudo o que está em si.
Mas voltemos ao tema a que me propus escrever, e ao que neste momento quem lê se interroga… afinal, como pode o altruísmo ser egoísta?
- Sempre que se utiliza o altruísmo como forma de autopromoção, isso é egoísmo.
- Sempre que se utiliza o altruísmo como arma de arremesso, isso é egoísmo.
- Sempre que se pratica o altruísmo num contexto social, e esse altruísmo não se verifica no seu meio pessoal, isso é egoísmo.
- Sempre que o altruísmo não é espontâneo, o egoísmo está à espreita.
Conheço gente realmente altruísta, do mesmo modo que conheço gente verdadeiramente egoísta. Conheço gente que está constantemente a ajudar, e que nunca fala sobre isso; conheço gente que não tem um gesto altruísta sem tirar uma selfie ou criar uma qualquer publicação numa qualquer rede social, na ávida procura de likes que lhes alimentem o ego ou a autoestima.
Sempre que usamos o altruísmo como forma de autopromoção, esvai-se a ideia do conceito mais puro do altruísmo. Sem qualquer intenção de sugestão de qualquer tipo de credo, em determinado momento diz a Bíblia que Jesus disse em Mateus 6:3: “Tu, porém, quando deres uma esmola ou ajuda, não deixes tua mão esquerda saber o que faz a direita”. Porque este é, e permitam-me repetir que o cito sem qualquer intenção de sugestão de qualquer tipo de credo, o verdadeiro sentido do altruísmo.
Nos tempos que correm, com os desafios e dificuldades criados pela pandemia e, posteriormente pela guerra na Ucrânia, os mais recentes acontecimentos na Turquia e na Síria, apercebemo-nos de uma onda de marketing em volta do altruísmo; são empresas a publicitar as suas doações, ondas de solidariedade acompanhadas de fotos dos seus criadores, são ainda pessoas individuais ou entidades a criar doações de algo que não partiu de si, ou a apropriar-se de ideias alheias para recolher os frutos de um altruísmo que não é seu.
Tudo isto numa imensa deturpação do verdadeiro sentido do altruísmo e unicamente com o propósito da sua autopromoção, num vergonhoso egoísmo ao redor de si próprio, com recurso ao infeliz acaso alheio como são os exemplos que dei atrás. Prova disso mesmo, é tudo o que se passa em outros países como o Afeganistão, o Iémen, a Síria, Israel, Palestina, etc… Países que, como não são europeus, não se revelam tão interessantes para o mediatismo necessário que alimenta o altruísmo de marketing.
Sempre admirei a capacidade de ajudar que, nos momentos cruciais, o ser humano manifesta e a exemplo disso podemos até recordar o que se passou em Pedrógão Grande no ano de 2017. Foi incrível a rapidez com que se organizaram tantas acções de solidariedade, como tão rapidamente se organizaram concertos, etc. Sinceramente, fiquei muito orgulhoso com as gentes do meu país, mas, a seguir, verificamos o outro lado da moeda, o oportunismo, a desonestidade, a corrupção, etc.
Não confundamos o bem-fazer, com alguma espécie de propaganda do eu.
Quando somos altruístas de facto não é nunca o conhecimento do público, nem tão pouco o reconhecimento do público que importam, mas sim a consciência de cada um que pratica esse tal altruísmo. Se quisermos, podemos até, de algum modo, analisar os diferentes efeitos do altruísmo e do marketing.
Ao praticarmos a entreajuda, o apoio ao mundo que nos rodeia, sem nenhum interesse de autopromoção, sentimo-nos especialmente leves, felizes, satisfeitos, de algum modo realizados. Sentimos que fomos úteis, que fomos pessoas de facto, que somos e mostramos ser humanos na melhor amplitude que podemos alcançar e proporcionar.
O altruísmo de marketing não é, nem pode ser leve. Esta forma de altruísmo, que não o é efectivamente, pressupõe um retorno. Ao contrário do altruísmo puro que nos deixa em paz, o marketing deixa-nos ansiosos, na expectativa do retorno do nosso gesto. “Quantas pessoas viram? Que comentários fizeram? Partilharam? Qual foi a reacção do público?”, etc.
Deixemos o Marketing para os técnicos de marketing, e o altruísmo para os seres humanos, e deixemos de confundir patrocínio com altruísmo.