O movimento FIRE e as políticas públicas – Já posso plantar morangos?

Por Isabel Moço, coordenadora e professora da Universidade Europeia

 

Nos anos 90, o livro “O dinheiro ou a vida” (Robin e Dominguez) lançou a debate a ideia de que assegurando a independência financeira seria possível, com alguma disciplina, mindset certo e foco, retirar-se do mundo do trabalho, mais cedo (face ao que as práticas e os sistemas de apoio, definem). Proliferam hoje, sobretudo nos canais digitais, os casos dos que arriscaram novo estilo de vida, o que se tornou, pela força que as redes sociais têm e que só elas têm, muito atractivo para milhões de trabalhadores.

São ainda surpreendentes, para os da minha geração, como se vive arranjando trabalho quando se precisa de dinheiro – mas é uma realidade já para muitos. Curiosamente, ou não, este livro, que se foca nos aspectos financeiros, chega traduzido a Portugal em plena pandemia (Julho de 2020), sabendo que estamos num país de baixíssima literacia financeira e com políticas públicas de extensão da vida activa – actualmente a idade da reforma em Portugal está nos 66 anos e quatro meses, ou 65 anos se tiver completado 44 de contribuições.

E porquê “curiosamente” este é um tema que tarda e custa a entrar no meio público e discussão em Portugal? Porque é que este livro, estas ideias, demoraram 30 anos a fazer “letra grande” nas notícias em Portugal, e são ainda vistas como de “idealistas” ou próprios das novas gerações? Alinham-se aqui algumas razões, numa tentativa de perceber porque faz confusão a tantas pessoas que alguém deseje/consiga reformar-se mais cedo do que o “normal”:

  • Porque foi precisamente um fenómeno extremo como a pandemia que fez muitas pessoas equacionarem o sentido da sua vida e de como estão a aproveitá-la. Não só relativamente ao emprego, mas em relação aos valores, aos consumos, aos hábitos, às prioridades e por aí adiante;
  • Porque temos ainda marcada na pele a herança salazarista do amealhar, onde a formiga é sempre de louvar e a cigarra – essa malandra, não soube levar bem a vida. E basta recuar duas ou três gerações para ainda o ver expresso em palavras e hábitos;
  • Porque a Segurança Social depende das contribuições dos trabalhadores e por isso, tendencialmente a idade aumentará em paralelo com a esperança média de vida, ou os sistemas sociais falharão. Claro que há sempre os sistemas privados, mas não são de facto acessíveis a todos;
  • Porque as novas gerações têm uma atitude diferente e instrumental face ao trabalho – felizmente, e isso faz com que o trabalho seja apenas um meio de alcançar um fim. Não está certo nem errado, apenas é diferente e as organizações ainda não sabem muito bem lidar com essa atitude;
  • Porque a fidelidade/longevidade no emprego/mesmo empregador há décadas que terminou e os trabalhadores hoje revelam uma atitude diferente face ao trabalho. As empresas também estão a mudar a sua forma de “vincular” e a promover os motivos que fazem as pessoas ficarem, e, cada vez menos, ambos acreditam no “emprego para a vida”;
  • Porque falar de dinheiro – quanto tenho, de quanto preciso, como o uso, …, ainda é um tema para recato e círculos próximos;
  • Porque é surpresa, debate e até motivo de algum achincalhamento, quando alguém se “retira” para fazer o que lhe dá na real gana, tenha 44 anos e se “reforme”, tenha 20 e resolva fazer um “gap year”, tenha 50 e tudo o que tem disponível use para viajar e aprender, ou seja o que for… bem à português, sempre um misto de invejinha boa e aspiração secreta;
  • Porque as empresas sabem hoje, perfeitamente (e se não sabem deveriam saber), que captar recursos nem sempre é fácil, por isso a aposta deverá ser em fazer com que as pessoas se sintam felizes e queriam ficar. Parece até que há empregadores que perante as notícias de que o futuro trará a extinção de milhões de postos de trabalho, ficam crentes de que isso “facilitará”, mas voltamos às questões da sustentabilidade da Segurança Social, avançando-se hoje já com a discussão da tributação de outros tipos de trabalho (por exemplo, sobre o recurso à robotização).

Poderíamos alinhar mais um conjunto de motivos que fazem com que a idade da reforma não decresça, em contramão com a vontade e conhecimento de como o fazer por parte das pessoas. Não sendo a conjuntura potencialmente facilitadora, ainda assim acredita-se que muitos seguirão este caminho, estes exemplos, porque de facto o que está certo é trabalhar para viver e não viver para trabalhar. Quem sempre me ouviu que eu quero é plantar os meus morangos, não se esqueça da segunda parte: quando eu o desejar.

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