Qual o vínculo laboral dos trabalhadores de empresas tecnológicas de transporte e entregas? Saiba o que diz a lei, da Califórnia ao Reino Unido, até Portugal
Por Ana Rita Nascimento, coordenadora do departamento de laboral da Pinto Ribeiro Advogados
Ao longo dos últimos anos surgiram diversas empresas de prestação de serviços através de plataformas electrónicas (doravante “empresas”) que introduziram no mercado novas formas de serviços de transporte de pessoas, comida e objectos vários, revolucionando a dinâmica nesses sectores.
Para os consumidores, apresentam novos serviços a preços mais acessíveis, para os trabalhadores representam novas oportunidades de rendimentos com recurso a acordos flexíveis.
Consideradas como revolucionárias e uma mais valia pela criação de empregos e favorecimento do crescimento económico, levantam questões a nível da aplicação das estruturas jurídicas já existentes, muitas vezes não adequadas a estes novos serviços, o que pode originar problemas diversos relacionados com o vínculo laboral desses trabalhadores, fomentando desigualdades de acesso à proteção social e à falta de garantias de um rendimento apropriado.
O vínculo laboral destes trabalhadores e a regulamentação destas actividades tem vindo a ser discutida em diversos países, no sentido de se apurar se devem ser considerados prestadores de serviços ou trabalhadores dependentes.
Vejamos algumas das posições envolvidas:
Qual a posição dos operadores de plataformas electrónicas?
Os operadores de plataformas electrónicas procuram afastar a obrigatoriedade de contratação por contrato de trabalho, nomeadamente porquanto acarreta um aumento dos custos, ao implicar a garantia de protecção social a todos os trabalhadores, incluindo o pagamento de um salário mínimo de acordo com o país onde trabalham, o pagamento de subsídio de férias e protecção em caso de doença, entre outros.
Refutando essa opção, os principais argumentos apresentados por estas empresas, a contestar que os trabalhadores devam ser considerados trabalhadores da empresa, são os seguintes:
- Natureza da empresa;
- Liberdade de escolha nas condições de prestação do trabalho;
- Meios utilizados para prestar os serviços;
- Meio de aferição da retribuição.
- Natureza da empresa
Estas empresas apresentam-se enquanto operadoras de plataformas electrónicas através de uma plataforma tecnológica, visto que o seu produto é um software desenvolvido para ser instalado em dispositivos electrónicos móveis – uma app. É através desta app que fornecem o seu serviço de intermediárias entre os prestadores de serviços e os utilizadores.
Empresas como a Uber recusam a qualificação enquanto empresas de transporte, afastando assim a qualificação dos motoristas, que utilizam essas aplicações enquanto prestadores de serviços da Uber, enquanto trabalhadores dependentes, dado que não desempenham a função central da empresa, que é meramente digital. Qualificam-se enquanto “agentes de reservas” que contratam trabalhadores independentes ou prestadores de serviços para que estes forneçam o serviço de transporte, não sendo responsáveis pela qualidade do serviço, nem pelas aptidões do motorista.
- Liberdade de escolha nas condições de prestação do trabalho
Outro dos argumentos dos operadores de plataformas electrónicas relaciona-se com a liberdade de escolha pelos trabalhadores das condições em que prestam o trabalho, nomeadamente na escolha dos clientes, dos pedidos aceites, da rota a realizar e inclusive do horário em que querem laborar, o que configura uma ausência de horário de trabalho.
- Meios utilizados para prestar os serviços
Também o facto de os trabalhadores utilizarem o seu próprio telefone e a sua própria viatura, seja ela um veículo automóvel, motorizado ou uma bicicleta, sustenta a posição dos operadores de plataformas electrónicas, na medida em que não são estes que fornecem os meios necessários para a prestação do serviço, típico numa relação de trabalho entre empregador – trabalhador dependente.
- Meio de aferição da retribuição
Por último, é invocado o argumento do meio de aferição da retribuição, que não é calculada pelo número de horas de trabalho, mas sim pelo número de serviços realizados, não sendo, além disso, necessário justificar faltas ou ausências, independentemente do motivo, pelo facto de, tal como já referido, ser o próprio trabalhador a definir o seu horário, auferindo a retribuição com base nos serviços prestados durante esse período, por si escolhido.
Qual a posição dos trabalhadores?
Os trabalhadores, por sua vez, argumentam que estas empresas fixam as condições essenciais para a prestação dos serviços e detêm os activos essenciais para a prestação dos mesmos, como as ferramentas informáticas que fazem a gestão dos pedidos e das entregas.
Por outro lado, a liberdade de escolha de clientes, de rota e a ausência de horário de trabalho são critérios que não podem ser apreciados fora de contexto, sendo necessário analisá-los no contexto de rede em que se inserem, nomeadamente tendo em consideração o facto de que, ao incluir um elevado número de distribuidores nessa rede, permite a concessão dessas liberdades a cada um deles, porque existirá um outro a cobrir o horário, não representando um custo para a empresa.
De realçar, defendem os trabalhadores, que esta liberdade é meramente aparente, dado que a possibilidade de o trabalhador conseguir um serviço tem por base a avaliação do próprio, que, por sua vez, se baseia no seu comportamento e desempenho, nomeadamente na sua disponibilidade e prestação da função. Acresce que, concretamente no caso da escolha dos clientes, em teoria o trabalhador pode decidir que clientes aceitar, mesmo com um limite de recusas, mas, na prática, esta alegada liberdade manifesta-se diretamente na classificação do trabalhador, afectando assim a possibilidade de prestação de novo serviço.
Por fim, de notar, no entanto, que, apesar de o vínculo do trabalho dependente poder trazer uma maior proteção para os trabalhadores, esta opção não é aceite por todos os trabalhadores que utilizam estas aplicações para trabalhar. A ausência de chefe e a liberdade, ainda que condicionada, de poder escolher os seus próprios horários, constituem caraterísticas importantes para a maioria destes trabalhadores, que continuam a preferi-las à estabilidade de um contrato de trabalho.
Vejamos agora de que forma esta questão é tratada em termos geográficos:
Contexto Europeu
A distinção entre empresa que fornece serviços digitais e empresa que fornece serviços de transporte é da maior importância, para se poder definir o vínculo laboral e definir a regulamentação a nível nacional e europeu.
Por um lado, se forem considerados operadores das plataformas electrónicas, e assim prestadores de serviços, a União Europeia pode regular esta matéria em todos os Estados Membros, de acordo com a legislação em vigor. Por outro lado, se forem considerados operadores que fornecem o serviço subjacente, como por exemplo o transporte, deverão estar sujeitas à regulamentação específica desse setor, cabendo a cada Estado essa regulamentação, dado que esta matéria é de jurisdição predominante dos Estados Membros.
Neste sentido, a Comissão Europeia elaborou um estudo, de forma a analisar o mercado e avaliar a necessidade e possibilidade de regulamentação a nível europeu. A 2 de Junho de 2016, a Comissão Europeia emitiu parecer fornecendo vários critérios para avaliar a influência e controlo destas empresas sobre os trabalhadores, parâmetro essencial a atender aquando da classificação enquanto intermediários ou fornecedores do próprio serviço, assim como a liberdade de escolha do preço, os termos contratuais, a remuneração, a natureza do trabalho e a propriedade dos ativos usados para fornecer o serviço.
O Tribunal de Justiça Europeu entendeu que a classificação do vínculo laboral nestas situações cabe a cada um dos Estados.
Sendo que, a mais recente decisão nesta matéria vem do Reino Unido, onde, no passado mês de Fevereiro, o Supremo Tribunal Britânico veio (à semelhança do que já sucedeu noutros países europeus, como em Espanha, em França ou na Holanda), considerar que estes trabalhadores devem ser considerados trabalhadores (dependentes) da empresa e não prestadores de serviços, passando a ter direito, nomeadamente, a uma retribuição mínima e férias pagas, uma vez que é esta que define as tarifas aplicáveis e que exerce um controlo significativo sobre os trabalhadores, colocando-os numa posição de subordinação.
Califórnia
O caso da Califórnia é um dos mais interessantes, não só por ser o local de lançamento da empresa Uber, mas também por ser demonstrativo da falta de consenso e da pressão que estas empresas exercem a vários níveis.
Em 2019, foi aprovada a Assembly Bill 5 (AB5), uma lei do trabalho que visa que os operadores de plataformas electrónicas considerem os motoristas como trabalhadores da empresa e não como prestadores de serviços, estando assim sujeitos aos deveres e direitos contemplados no Código do Trabalho para trabalhadores dependentes. De acordo com a nova Lei, para que os trabalhadores continuem a ser considerados prestadores de serviços é essencial que não tenham subordinação direta à empresa, desempenhem funções não essenciais para a empresa e tenham, em paralelo, uma actividade ou negócio independente no mesmo setor que o da plataforma que utilizam.
A alteração legislativa levou algumas empresas a ameaçarem deixar de prestar serviços na Califórnia, levando a uma votação pública – Proposition 22 – que veio isentar as empresas de qualificar os trabalhadores enquanto funcionários da empresa, embora estipule alguns benefícios típicos de um contrato de trabalho como um salário mínimo, seguro de acidentes e, nalguns casos, subsídio de saúde.
O caso português
Em virtude da chegada destas empresas ao nosso país e dos protestos que se fizeram sentir, foi necessário colmatar a falta de regulamentação para o trabalho prestado através de plataformas digitais, mediante legislação específica.
Assim, a 10 de Agosto de 2018, foi publicada a Lei n.º 45/2018, que veio estabelecer o regime jurídico da atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaraterizados a partir de plataforma electrónica, aplicável a partir de 1 de Novembro de 2018.
Contudo, o âmbito de aplicação da referida Lei refere-se apenas às empresas de transporte de pessoas, não regulando, por exemplo, os serviços de entrega de comida e objectos diversos ao domicílio; e abrangendo apenas plataformas que definam os termos e condições de um modelo de negócio próprio, excluindo as que apenas agreguem serviços.
Ao contrário do modelo adoptado por estas empresas noutros países, em Portugal a mencionada Lei impõe que a prestação deste serviço pressuponha uma relação triangular, da qual fazem parte os motoristas, os operadores de transporte individual em veículos (operador de TVDE), na qualidade de pessoas coletivas, e os operadores das plataformas eletrónicas.
O acesso à atividade de operador de TVDE é permitido em exclusivo a pessoas coletivas, não podendo os motoristas relacionar-se diretamente com as empresas operadoras de plataformas eletrónicas. Apenas com o propósito de cumprir este requisito, surgem inúmeras sociedades unipessoais como operadores de TVDE, sendo que, em muitos casos, o sócio-gerente é o próprio motorista. Dessa forma, tenta-se afastar a noção de contrato de trabalho, na relação entre os operadores das plataformas electrónicas e os operadores de TVDE, e uma vez que, e conforme resulta do disposto no artigo 11.º do Código do Trabalho, o trabalhador tem de ser uma pessoa singular.
A Lei veio ainda estabelecer um conjunto de pré-requisitos para o exercício da actividade de operador de TVDE, sendo que entre o motorista e o operador de TVDE deverá existir um contrato escrito que titule a relação entre as partes, e competindo ao operador de TVDE a observância de todas as vinculações legais e regulamentares relevantes para o exercício da sua actividade, incluindo as decorrentes da legislação laboral, de segurança e saúde no trabalho e de segurança social, reforçando a ideia de que a entidade empregadora poderá ser, quando muito, o operador de TVDE e não o operador da plataforma eletrónica.
No sector destas empresas na área de entrega de comida ou objectos diversos, ainda não existe regulamentação específica. A realidade actual é a da contratação enquanto prestadores de serviços.
Que futuro para Portugal?
A reacção, em todo o mundo, face à introdução destas empresas, foi de contentamento, nomeadamente em virtude do importante contributo para o emprego, para o crescimento económico e tendo em conta o nível de avanço tecnológico que as mesmas representam; no entanto, este modelo de negócios pode esconder uma realidade de desprotecção dos trabalhadores.
Estas empresas apenas conseguem os rendimentos actuais graças ao modelo aplicado, tendo as próprias assumido que, caso tenham de considerar os motoristas como seus trabalhadores, os preços teriam de ser substancialmente diferentes. Contudo, essa hipótese parece não ser uma possibilidade, visto que sempre que estas empresas não conseguem implementar o seu modelo ou são forçadas a adoptar regras divergentes do mesmo, optam por se retirar desse mercado.
Empresas como a Uber foram consideradas como empreendedores regulatórios por incluírem no seu modelo de negócios uma mudança na regulamentação. Este tipo de comportamento exerce uma clara pressão sobre o legislador. Assim, se, por um lado, impondo o vínculo laboral de contrato de trabalho para conceder melhores condições e estabilidade aos trabalhadores, acaba por, indiretamente, estar a decidir a retirada dessa empresa, que é considerada como benéfica e favorável à sociedade, sendo um símbolo do desenvolvimento tecnológico, do mercado nacional; por outro lado, ao não regulamentar e permitir a manutenção dos contratos de prestação de serviço, está a ceder a imposições de empresas, o que, em última instância, pode abrir a porta a que se queiram reger pelas suas próprias “leis”.
Na obrigação de o Direito acompanhar a evolução a todos os níveis, a solução poderá passar pela regulamentação no sentido do reconhecimento de um contrato de trabalho entre o motorista e o operador TVDE ou mesmo entre o motorista e a empresa operadora da plataforma electrónica.
Pode também manter-se a definição do vínculo como prestadores de serviços. Ou, ainda, prever-se a criação de uma nova categoria intermédia e híbrida, adequada à evolução dos vínculos laborais, ou mesmo contemplar uma alteração da presunção de laboralidade adaptada às novas modalidades de trabalho, que permitam uma maior adaptação e maleabilidade entre as regras legais e a realidade atual.
Portugal deve estar aberto a novas formas de negócio, apoiando oportunidades de crescimento económico e desenvolvimento tecnológico, mas será que com isso deve colocar em causa as condições de trabalho justas e a protecção social de que os trabalhadores são merecedores?
Na tentativa de balanço entre estes dois polos e face ao panorama mundial, que futuro escolherá Portugal?
Devem, ou não, os motoristas ser considerados como trabalhadores dependentes, com todos os direitos daí decorrentes? Ou será que a resposta deverá continuar dependente da forma como a relação de trabalho seja estabelecida?