Reportagem: A pandemia como acelerador de uma nova era na formação em Saúde
Num contexto em que a COVID-19 acelerou a digitalização do treino e da educação médica a nível global, os médicos Diogo Silva e Eduardo Freire Rodrigues fundaram duas startups, nobox e UpHill, respectivamente, que aplicam soluções tecnológicas ao treino dos profissionais de saúde. Numa entrevista exclusiva à Human Resources os dois especialistas falam da actividade das suas empresas num contexto de uma nova era para a formação em Saúde. Mudanças que demoravam anos a acontecer, passaram a realizar-se em poucos dias, o que nos leva a questionar se terá sido a pandemia o gatilho necessário para transformar a formação médica em escolas e hospitais.
Por Sandra M. Pinto
De um dia para o outro, as escolas médicas e as administrações hospitalares viram-se obrigadas a suspender todas as actividades de formação presenciais, originando uma mudança abrupta na maneira como a formação na área é encarada por todos os intervenientes. Com a situação de excepção criada pela COVID-19, surgiram novas soluções. alicerçadas na necessidade da digitalização dos processos.
«A pandemia criou o ambiente ideal para testar novas soluções», afirma Eduardo Freire Rodrigues, para quem a Saúde estava, essencialmente, conformada com o formato presencial. «Obrigou o sector a reinventar-se em poucos dias: o que estava latente e em fase de desenvolvimento acabou por ser lançado num ápice. A actividade assistencial abraçou as teleconsultas, as aulas e formações médicas adoptaram o formato online e a produção de conteúdo digital passou de excepção a regra. Os formatos presenciais praticamente pararam. E nunca a actualização foi tão relevante, tendo em conta a pressão que existia sob os sistemas de saúde e as alterações que aconteceram as estruturas hospitalares.»
Para o médico e empreendedor, a COVID-19 colocou todos numa corrida contra o tempo e contra a incerteza. «A necessidade de informação disparou e, por outro lado, chegava-nos das mais variadas fontes, umas mais confiáveis que outras. E acelerou o desenvolvimento de uma consciência colectiva no sector, e particularmente nas administrações hospitalares, da necessidade de digitalização.»
Diogo Silva concorda e reitera: «A actual pandemia obrigou a uma paragem global da formação presencial, contudo, a formação em si não parou. A formação contínua dos profissionais, sendo essencial para a melhoria dos cuidados, está a ser neste momento ainda mais fulcral para permitir lidar com a crise que se instalou, veiculando o conhecimento necessário para tratar os doentes e gerir as mudanças introduzidas nos processos das instituições.» Apesar da rápida transição para o formato online, «estes momentos formativos têm permitido reinventar os serviços e catalisar inovação com menor dispêndio de tempo e recursos, reforçando o papel que este formato irá ter no futuro como metodologia de formação de elevada efectividade», acredita o médido.
Fragilidades expostas
Como qualquer crise, também a pandemia veio expor ou tornar mais evidentes fragilidades já existentes. Na opinião de Eduardo Freire Rodrigues, além de uma excessiva dependência dos formatos presenciais e da falta de estrutura destas formações, que dificulta a sua transposição para os formatos digitais, «tornou-se evidente a falta de canais digitais de comunicação entre as equipas – o que, num contexto em que a co-presença física foi restringida, era ainda mais relevante – e, por fim, um nível de envolvimento digital muito baixo entre colaboradores e instituição».
Já Diogo Silva faz notar que a COVID-19 coloca desafios ao sistema de saúde nunca antes vistos e veio também catalisar a presença da tecnologia na relação com os doentes. «Se, por um lado, a pandemia demonstrou a resiliência e determinação dos profissionais, evidenciando o músculo e o potencial dos recursos humanos do nosso País, por outro lado expôs a fragilidade, complexidade excessiva e falta de acessibilidade condicionada pelos percursos do doente no sistema, nomeadamente no acesso a meios complementares de diagnóstico ou referenciação inter-hospitalar».
Apesar da forte resposta dos profissionais, e em linha com os modelos de resposta individual às crises, «a motivação e a energia das equipas está a dissipar-se, perdidas entre o desejo de retorno a uma normalidade que não existirá como a conhecíamos e a integração obrigatória de novos procedimentos e processos no seu dia-a-dia», sublinha, acrescentando que este vai ser, sem dúvida, um dos principais desafios da liderança em Saúde. «Será necessário motivar os profissionais e manter as equipas em forma para tornar a presença da COVID-19 no dia-a-dia profissional o mais “normal possível”, ao mesmo tempo que se tem de retomar a actividade assistencial, sob pena de os doentes não serem tratados para patologias não-COVID atempadamente.»
O papel da tecnologia
Na saúde, tal como noutras áreas, ficou evidente a importância da digitalização e o papel preponderante da tecnologia. Mas que vantagens pode efectivamente trazer à área da formação em Saúde? «No caso particular da formação em Saúde, as vantagens são essencialmente a flexibilidade que oferecem em termos de conteúdos e formatos, a personalização do treino para responder às necessidades específicas de cada profissional e, consequentemente, a maior eficácia da formação», enumera Eduardo Freire Rodrigues.
Particularizando na simulação, área que a UpHill – startup que fundou – trabalha, o médico fala de um método formativo que, pela interactividade que lhe é intrínseca, permite melhorar o conhecimento e a performance clínica em treinos rápidos. «Está provado que produz resultados positivos no ensino e que ajuda a prevenir situações de risco, na medida em que consente falhas e confronta cada profissional com os seus limites, ao mesmo tempo que permite aprender num ambiente seguro e realista.»
O fundador da nobox, por seu lado, realça que os formatos presenciais e expositivos para actualização profissional, nomeadamente conferências e formações em sala, não vão ao encontro das necessidades actuais. «O interesse noutros formatos está a crescer exponencialmente, como por exemplo formação contínua através de plataformas digitais, organização de webinars, simulação e treino experiencial à distância, microlearning ou outras.»
Diogo Silva acredita que estas novas metodologias formativas são capazes de promover uma aquisição de conhecimentos e competências de forma mais eficiente, apresentando-se para os gestores das equipas como aliados importantes. «Estas metodologias permitem também desenvolver experiências formativas altamente estimulantes para os profissionais, uma vez que se podem basear em jogos, projectos colaborativos ou aprendizagem mista com recurso a ferramentas digitais e formação presencial.»
O motor da mudança
Tornou-se evidente que muitas das mudanças que aconteceram durante a pandemia já estavam latentes, apresentando-se muitas delas como necessidades sentidas pelos intervenientes no sector. Agora, a questão assenta em perceber se terá sido a pandemia o gatilho necessário para transformar a formação médica em escolas e hospitais.
Na opinião de Eduardo Freire Rodrigues, a COVID-19 acelerou o desenvolvimento de uma consciência colectiva da necessidade de digitalização no sector e, em particular, nas administrações hospitalares. «Vimos isso com um conjunto de contactos que tínhamos em andamento e que, no decurso da pandemia, se transformaram em novos clientes, exactamente porque as ferramentas digitais emergiram, neste contexto, como a única opção», partilha. Ainda assim, o especialista ressalva que todos os esforços feitos anteriormente permitiram que as instituições tivessem a capacidade de se adaptar numa fase tão turbulenta.
Continua: «Em termos concretos, e particularizando no trabalho que desenvolvemos em conjunto com as instituições de saúde, destaco o impacto que a pandemia teve na digitalização do treino médico, e, especificamente, da simulação como via para as instituições conseguirem, de forma rápida e abrangente, preparar os profissionais e melhorar as suas competências clínicas. O contexto que vivemos veio também evidenciar a utilidade das ferramentas digitais para filtrar a informação científica, facilitar o processo de decisão dos profissionais, padronizar a prestação de cuidados e, por fim, aumentar a segurança dos doentes.»
Também Diogo Silva acredita que a esta “revolução” chegaria mesmo sem pandemia. «Mas criou certamente a oportunidade para que essa revolução aconteça hoje e não amanhã. Criou o ambiente para estarmos mais disponíveis para testar novas soluções, aprender com as falhas e corrigi-las, contrariando outras alturas em que a resistência à adopção inicial é muito grande. O momento criado pela crise coloca-nos perante a oportunidade de revolucionar a formação, apostando em novos formatos e evoluindo a partir dos modelos de formação anteriores.»
Contudo, chama a atenção para o facto de que a proactividade das organizações e dos profissionais em promover estas novas iniciativas vai ser determinante, pois «finda a fase de adaptação heróica e forçada à pandemia, certamente haverá forças que pelos mais variados motivos se irão opor a esta adaptação. O recurso a estratégias de gestão de mudança serão essenciais para minimizar as resistências e facilitar a incorporação de novos modelos pedagógicos no dia-a-dia da formação em saúde», sublinha.
Como faz notar Eduardo Freire Rodrigues, a verdade é que nunca antes se falou tanto na potencialidade da tecnologia, da inteligência artificial e ciência dos dados para ajudar a conter doenças infeciosas. «Também a telemedicina, que não é uma novidade, ganhou um novo fôlego na resposta dos hospitais face à epidemia. E não falamos de ferramentas sofisticadas capazes de fazer exames ou análises remotas, mas sim de ferramentas de comunicação básicas que ganharam terreno na comunicação entre médicos e doentes.»
Em Portugal, o barómetro sobre telessaúde e inteligência artificial, apresentado pela Associação Portuguesa dos Administradores Hospitalares (APAH) em meados de 2019, revelou que esta era já uma prioridade, mas havia barreiras à sua utilização, nomeadamente a falta de infraestruturas e a literacia. «Enquanto alternativa em alguns casos, ou como complemento da prestação de cuidados, as teleconsultas representaram a única via de acompanhamento à população, sobretudo para os doentes crónicos, quando os hospitais foram obrigados a interromper a actividade programada não urgente e, por isso, a sua implementação aconteceu na maioria das unidades.»
Ou seja, o actual contexto catalisou o teste e o uso de formas mais eficazes de aprender e de trazer conhecimento e competência para o dia-a-dia. «No formato digital, a efectividade destes programas pode conseguir-se através de formação experiencial, aprendizagem em ambiente de simulação com cenários digitais e/ou presenciais, construção de serious games, gamification aplicado na formação diária, microlearning através de ferramentas digitais que fragmentam a informação e a fazem chegar aos profissionais de forma mais fácil, e transferência de formação presenciais para formatos totalmente digitais ou mistos, tornando mais acessível e mais consequente o tempo investido em formação», concretiza Diogo Silva. «As possibilidades são muitas, mas dependem da vontade e proatividade em adoptá-las, percebendo que pode haver alguma resistência inicial, mas os resultados valerão a pena.»
Onde entram as startups?
A UpHill foi fundada por três médicos, com o objectivo de fazer a ponte entre a investigação científica e a prestação de cuidados nos hospitais, uma vontade que nasceu durante os anos práticos da sua formação enquanto estudantes de Medicina, por identificarem problemas que estão intimamente relacionados. «Por um lado, a quantidade de evidência científica que é produzida diariamente; por outro lado, a falta de tempo com que os profissionais de saúde se deparam no seu dia-a-dia para se actualizarem, filtrarem as fontes mais relevantes e transporem aquilo que são as recomendações teóricas para a sua prática clínica», explica Eduardo Freire Rodrigues, um dos fundadores.
A UpHill é uma startup que se encontra no cruzamento da medicina e da tecnologia e desenvolve um conjunto de soluções digitais para levar a informação científica mais relevante para a abordagem diagnóstica e terapêutica de um vasto conjunto de doenças aos profissionais de saúde, de forma intuitiva, rápida e eficaz, em diversos formatos, desde resumos de artigos, protocolos de actualização clínica e casos de simulação virtual.
«Neste momento trabalhamos com o sector hospitalar privado, ou seja, o nosso software de treino clínico avançado e análise de qualidade é utilizado em diversos hospitais dos grupos Cuf, Lusíadas e Luz Saúde», tendo sido recentemente lançada a app UpHill, através da qual qualquer profissional de saúde pode aceder aos conteúdos, protocolos e casos clínicos para simulação, agrupados por especialidades médicas, e investir o tempo que quiser na sua actualização, numa área específica e receber feedback personalizado sobre a sua performance.
Consciente de que, «como profissionais de saúde, assistimos diariamente a dificuldades na gestão das equipas e integração dos cuidados, das quais resultam ineficiências nos processos, problemas de comunicação, desgaste emocional dos membros das equipas e também dificuldades no tratamento dos doentes», a nobox «nasceu do intuito de colmatar estes problemas», partilha Diogo Silva. «Promove experiências formativas que completam o vazio na formação dos profissionais de saúde em áreas comportamentais como gestão de equipas, liderança, comunicação ou estratégia.»
Falando especificamente em objectivos, «a nobox procura contribuir para equipas de saúde mais felizes, mais organizadas e, assim, capazes de prestar melhores cuidados centrados nos doentes» refere o seu fundador. Procura fazê-lo com experiências formativas inovadores, como serious games, simulação de cenários reais ou formação experiencial, onde são trabalhadas competências essenciais para profissionais de saúde do amanhã: liderança, comunicação, gestão de equipas e inovação.
«Como nobox, criamos iniciativas que possam ter um impacto concreto e consequente no terreno. Temos desenvolvido programas formativos para várias instituições e entidades na área da saúde, bem como temos colaborado, em concreto com a Escola de Medicina da Universidade do Minho, num curso de pós-graduação. Um aspecto central dos seus processos de desenvolvimento de experiências é a aliança do seu background em saúde com metodologias de co-criação com os seus parceiros e clientes para construir modelos formativos próximos dos seus problemas e desafios diários, devidamente assentes em modelos e ferramentas validados.»
Tendências em destaque
Quanto a tendências para esta área, Eduardo Freire Rodrigues começa por destacar que a última década ficou marcada pela valorização de um tipo de prática clínica caracterizada pela utilização conscienciosa e criteriosa da evidência clínica atualizada. «Neste sentido, uma das tendências que caracterizará, cada vez mais, a prestação de cuidados, é o foco nos processos – a forma como os recursos se organizam em torno do doente – e nas pessoas – agentes que acabam por implementar esses processos», defende.
Para este especialista falar em Saúde significa falar, essencialmente, dois tipos de pessoas: as que prestam cuidados e as que os recebem. «Focar as pessoas é, por um lado, garantir os melhores cuidados a quem deles precisa, e isso implica criar ferramentas que suportem a mudança de comportamentos dos profissionais de saúde e das instituições a favor das melhores práticas clínicas. Diminuir a variabilidade dos cuidados, uniformizar os processos e aproximá-los da evidência científica tem um impacto tão positivo nos resultados para o doente como a introdução de novos fármacos», acredita.
Diogo Silva, por sua vez, constata que, «se ainda antes da COVID-19 já havia uma necessidade crescente de promover a colaboração interprofissional nos cuidados de Saúde, agora a capacidade das equipas integrarem os contributos dos diferentes grupos profissionais é cada vez mais necessária para prestar cuidados mais complexos e dirigidos para as necessidades específicas dos doentes».
A transição de produção em saúde para valor em saúde requer que os profissionais e as equipas alterem o seu paradigma de funcionamento. «Para isso, cimentado sobre as suas competências técnico-científicas, os profissionais têm de desenvolver competências de trabalho em equipa, gestão emocional e capacidade de inovar, para melhorar as vivências dos doentes durante a sua passagem pelos cuidados de saúde, ao mesmo tempo que melhoram os resultados em saúde objectivos e percepcionados pelos doentes», defende, concluindo: «Toda a mudança introduzida à pressão num sistema já sob pressão vai requerer, por parte das chefias intermédias e órgãos de gestão, uma capacidade acrescida de conduzir estes processos de forma eficaz e integrada, pelo que o desenvolvimento dos profissionais nestes domínios também será muito relevante.»