Susana Afonso, CMS: «A alteração do paradigma nas relações laborais é inevitável»
Quando Susana Afonso, partner da CMS Portugal, começou a trabalhar – e tem desenvolvido toda a sua carreira ligada ao Direito do Trabalho –, a generalidade das empresas nem Departamento de Recursos Humanos tinha. Muito mudou desde então, nomeadamente a valorização do capital humano. E a especialista acredita que vai continuar a mudar, havendo uma total alteração do paradigma nas relações laborais.
Por Ana Leonor Martins | Fotos Nuno Carrancho
Não escondendo que algumas alterações que têm sido feitas ao Código do Trabalho, muitas vezes não servem nem o interesse das empresas, nem dos trabalhadores – porque «a lógica de assegurar uma justiça e paz social através de regulamentação, por vezes feita numa lógica momentânea e sem se pensar no quotidiano das relações laborais, acaba por originar excesso de regulamentação e entropia», dificultando também falar de flexibilidade –, Susana Afonso defende que «há vantagens inequívocas em ter uma legislação laboral com um nível elevado de protecção dos trabalhadores, como é a nossa». Mas ressalva que «ir mais longe tem riscos graves para a economia do País e pode, ou já é, um motivo de afastamento de investimento em Portugal».
A especialista em Direito do Trabalho com mais de 25 anos de experiência acredita ainda que, apesar das assimetrias que existem entre sectores e empresas, o ambiente laboral em Portugal é, «genericamente, bom». Não obstante, o País tem um problema de retenção de talento. E «a razão é simples: há países em que as condições de trabalho são melhores, em que os salários são mais atractivos, ou porque são mais elevados ou porque a tributação é inferior».
Olhando para o futuro, defende que a preocupação do legislador deverá passar «cada vez menos pela adopção do modelo tradicional de trabalho subordinado, para uma única entidade, com dias e horário fixo», e antecipa que, «nos próximos 10 anos, vamos ter novas matérias para legislar, decorrente sobretudo do uso de inteligência artificial». Desafios não faltarão. Mas é esta «triangulação empresa, trabalho e lei», que gera «uma infindável multiplicidade de desafios intelectuais », que tem proporcionado a Susana Afonso «um desenvolvimento pessoal incrível».
Como classificaria o “ambiente laboral” em Portugal e que leitura faz do mundo do trabalho actual?
Genericamente, é bom. Não há dúvida de que hoje há melhores salários, há mais benefícios sociais, há mais respeito pela conciliação com a vida pessoal, há mais formação profissional e, nesse sentido, há um ambiente laboral genericamente melhor do que há uns anos.
Portugal, no entanto, ainda vive muitas assimetrias em matérias laborais. Há realidades muito distintas, sobretudo entre sector privado e público, entre empresas de grande ou pequena dimensão, entre sectores de actividade… São essas diferenças que geram as greves e manifestações a que temos assistido recentemente, mas não são representativas do ambiente geral.
Em termos de lei laboral e mundo do trabalho, o que diria ter marcado o ano de 2023?
Desde a pandemia que o mundo acelerou processos; acelerou processos no campo da medicina, das relações sociais e, como não podia deixar de ser, no mundo do trabalho. Ainda estamos a viver o impacto dessa pandemia, que em matéria de relações laborais fica marcado pela implementação de novos modelos de trabalho. Por isso, as empresas continuaram a debater-se com a adaptação ao regime do teletrabalho e com os riscos associados ao mesmo, designadamente o controlo da prestação de trabalho, o cumprimento de horários, os períodos de descanso e os encargos decorrentes.
É um ano que fica marcado pela revisão do Código do Trabalho. É, também, um ano em que se aprimoraram as relações de trabalho na chamada gig economy. Estas que, mais uma vez, viram a legislação a ser feita à medida dos acontecimentos e da qual já se antevê grande controvérsia.
O Código do Trabalho, e as alterações que têm sido feitas, como essa que refere, dão maior resposta às necessidades das facempresas, dos profissionais, de ambos ou de nenhum?
Já o disse noutras ocasiões, mas creio que é bom reforçar: sei que o legislador em matérias laborais procura balancear os interesses das empresas com o dos trabalhadores, mas a lógica de assegurar uma justiça e paz social através de regulamentação, por vezes feita numa lógica momentânea e sem se pensar no quotidiano das relações laborais, acaba por originar excesso de regulamentação e gerar entropias e comportamentos disruptivos de ambas as partes, empresas e trabalhadores.
No fim, muitas vezes não serve bem o interesse de nenhuma das partes.
Das mais recentes alterações ao Código do Trabalho, quais destacaria, pela positiva e pela negativa? Ou as que tiveram maior impacto, nas empresas e nos profissionais…
Pela positiva, o reforço dos deveres de informação aos trabalhadores. É certo que, muitas vezes, bastaria uma simples leitura da lei, mas a verdade é que há ainda muita iliteracia nessa matéria.
Pela negativa, destacaria a proibição de outsourcing após os despedimentos por causas objectivas, que vejo como uma interferência abusiva na gestão das empresas. Também as alterações ao regime da prescrição de créditos salariais, que é um regime que não beneficia nem as empresas – porque lhes retira o incentivo para negociarem com os trabalhadores compensações superiores –, nem os trabalhadores – porque, ao reduzirem a capacidade de negociação das empresas, os empurra para os tribunais – e, por arrasto, nem o Estado, que vê aumentado o número de processos judiciais apenas com o intuito de se conseguir uma transacção judicial. Esta foi definitivamente uma solução infeliz.
Em 2021, tivemos o Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, em 2023, foi aprovada a Agenda para o Trabalho Digno… As alterações que têm vindo a ser feitas estão de acordo com as necessidades reais, de empresas e profissionais?
Por exemplo, dão resposta à cada vez maior “exigência” de flexibilidade por parte dos colaboradores, em termos de horários e espaço de trabalho, ou às particularidades da gig econony, de que já falou… Quando as alterações legislativas surgem à medida dos acontecimentos e quase sempre no pressuposto de que quanto mais restritiva for a lei, maior será a protecção dos trabalhadores, é sempre difícil falar em flexibilidade. Para mim, a maior preocupação do legislador deve estar na criação de rendimento e em assegurá-lo ao maior número de pessoas em idade activa, e isso, quer se queira ou não, passará cada vez menos pela adopção do modelo tradicional de trabalho subordinado, para uma única entidade, com dias e horário fixo. A entrada galopante num novo mundo, mais tecnológico, mais dinâmico, vai tornar evidentes as vantagens da actividade em função do resultado.
Leia o artigo na íntegra na edição de Janeiro (nº. 157) da Human Resources, nas bancas.
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