Trabalhar a partir de casa: de marginal a regra?

«O cenário de pandemia pode ter contribuído para a generalização do recurso ao teletrabalho, concretizando-se de forma eficiente a vida pessoal e profissional e, de forma positiva, modernizar-se o mundo do trabalho numa sociedade, incontornavelmente, digital.»

 

Por Carla Naia, advogada especialista em Direito do Trabalho da Cerejeira Namora Marinho Falcão

Conto pelos dedos das minhas mãos os acordos de teletrabalho que fiz, desde que foi instituído o teletrabalho, no Código do Trabalho de 2003.

Até ao cenário de excepção que a pandemia impôs, era uma forma de trabalho marginal, reservada a poucas empresas, umas por força da actividade que desenvolvem (área digital e das tecnologias da informação), outras, maioritariamente, por terem políticas de incentivo à articulação da vida pessoal com a profissional, nomeadamente para acompanhamento dos filhos.

Já em 2002,  o Acordo Quadro Europeu sobre o Teletrabalho em que se inspirou o legislador português, apontava o teletrabalho como uma forma de modernização das relações laborais, concretizando a ideia de trabalho flexível com vista a uma maior autonomia e conciliação da vida pessoal com a profissional. Também realçava  os benefícios ambientais (redução de emissão de CO2) e o estímulo da sociedade digital. Já aí, evidentemente, era apontada a necessidade de salvaguarda da privacidade do trabalhador e o princípio da igualdade de tratamento destes, em relação aos trabalhadores em prestação de trabalho presencial.

Com o cenário da pandemia e da legislação extraordinária produzida, o regime de prestação de trabalho à distância passou de excepção a regra: trabalhar desde casa, sempre que as funções com isso sejam compatíveis. E o compatível, neste cenário pandémico, foi uma compatibilidade forçada, pois  as tarefas passaram a ser executadas desde casa, mesmo que parte delas devessem ser executadas presencialmente. Mas o risco de contágio sobrepôs-se à pura lógica laboral e foi afastado o carácter voluntário do regime, podendo ser imposto unilateralmente pelo empregador e sem suporte escrito. A urgência da protecção da saúde da população impôs a desformalização e a (suposta) simplificação do regime.

É incontornável  a penosidade acrescida em que muitos trabalhadores se viram, de repente, obrigados a trabalhar. A articulação das esferas pessoal e profissional  desapareceu  face a uma sobreposição daquelas. O(a) trabalhador(a) assumiu, no mesmo tempo e no mesmo espaço, o papel profissional e a multiplicidade de papeis  que a esfera pessoal o chamou a desempenhar: de mãe, de pai, de cuidador dos ascendentes, de cozinheiro(a), etc. E, no decurso do dia (mais longo) o portátil está ligado e o telemóvel permanentemente disponível.

Se, por um lado, existem profissionais que desejam ardentemente regressar ao seu local de trabalho e retomar a sua vida laboral normal, o certo é que outros, experimentando (à força)  este regime, perceberam que a execução da sua actividade é perfeitamente compatível com o trabalho à distância, prevendo-se que as empresas também isso concluam, com inerentes benefícios económicos para ambas as partes.

Provavelmente, o bem estar e motivação das pessoas mais aptas a trabalhar à distância pode aumentar e a produtividade das empresas também: o  trabalhador encontra-se num ambiente que ele próprio escolhe, com menos distracções, diminuindo o stress e aumentando a eficiência a que se soma a liberdade de poder trabalhar de onde quiser.

No entanto, em teletrabalho, e inexistindo fronteiras “geográficas” entre as esferas privadas e pessoal, mais imperativa se torna a necessidade de estabelecer regras de desconexão entre um mundo e outro. Tal necessidade justifica-se por um enorme leque de razões, a começar pelas da saúde psíquica dos trabalhadores e do respeito pela duração máxima do trabalho.

Do lado das empresas, o interesse em que a actividade seja prestada de forma eficiente e, provavelmente, mais centrada no resultado e não tanto no tempo de disponibilidade, justificam novas formas de controlo do trabalho à distância, respeitada a privacidade do trabalhador. A CNPD veio, aliás, recentemente esclarecer ser legítimo que o  registo dos tempos de trabalho (início, fim e pausa para almoço) seja feito com recurso a ferramentas tecnológicas (por exemplo login de acesso ao sistema) ou, simplesmente, pelo envio de um e-mail.

O cenário de pandemia pode, assim, ter contribuído para a generalização do recurso ao teletrabalho, concretizando-se de forma eficiente a vida pessoal e profissional e, de forma positiva, modernizar-se o mundo do trabalho numa sociedade, incontornavelmente, digital.

 

 

 

 

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