Vladimiro Feliz, CEIIA: «Para a maioria dos nossos engenheiros é o propósito que os move. Se fosse só pelo salário, não conseguiríamos reter»

Operando nas áreas da mobilidade e cidades e também do espaço, grande parte da actividade do CEIIA é baseada nos colaboradores e no conhecimento gerado por esses especialistas. Por isso, Vladimiro Feliz garante que procuram «acima de tudo boas pessoas, capazes, curiosas, que gostem de desafiar o que está instituído». Ainda que o salário seja importante, tem noção de que o propósito da empresa é muito atractivo.

Por Tânia Reis

 

No seguimento do 6.º congresso da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) que decorreu no CCB, a Human Resources conversou com Vladimiro Feliz, director no CEIIA, sobre tecnologia, talento, ética e o futuro.

É inegável que a IA veio para ficar. De que forma está a mudar o trabalho no CEIIA?

A Inteligência Artificial vem responder a um conjunto de desafios que temos na nossa actividade diária, naquilo que é mais rotineiro, que pode ser automatizado e transformado, direccionando-nos a todos para trabalho de maior valor.

Retira-nos a ocupação de menor valor para nos centrarmos em processos de desenvolvimento de tecnologia, de novos produtos e serviços para acelerar a neutralidade carbónica das cidades.

Hoje, acima de tudo, a IA está a ser aplicada não só no âmbito da tecnologia espacial, naquilo que é o uso da Inteligência Artificial, na componente de downstream do espaço para todo o desenvolvimento aplicacional da informação que vem dos satélites e de outros sensores terrestres, que pode ser trabalhada,  agregada e processada para desenvolver novos produtos e serviços, como a observação dos oceanos e florestas, a monitorização da pegada carbónica ou a transformação dos processos de mobilidade das cidades.

É uma ferramenta que começa a fazer parte de todas as plataformas inteligentes de dados e serviços que o CEIIA tem vindo a desenvolver nas suas áreas de actividade, nomeadamente na mobilidade e cidades e também na área do espaço, onde muitas vezes estas tecnologias se cruzam para responder a desafios comuns.

 

No debate, falou-se muito no tema das competências, do upskilling e do reskilling. Estão a apostar e a trabalhar nisso com os vossos colaboradores?
Temos isso em conta logo numa base de recrutamento, e hoje temos grandes escolas de engenharia em Portugal que já preparam, directa ou indirectamente, os alunos para este tipo de desafios. Muitas vezes são os próprios candidatos que, de forma autónoma e autodidacta, se preparam para estes desafios, com formações mais ou menos informais.

Temos, essencialmente em contexto de on-job training, programas de formação dentro das equipas para as preparar para estes novos desafios.

 

No momento do recrutamento, para que tipo de competências olham mais? As competências técnicas são fulcrais, mas no debate falou muito nas competências humanas, começam a olhar para esse tema?

O CEIIA é acima de tudo uma casa de pessoas, é um centro de desenvolvimento de produto, que baseia grande parte da sua actividade nas pessoas e no conhecimento gerado por essas pessoas. Assim, procuramos acima de tudo boas pessoas, capazes, curiosas, que gostem de desafiar o que está instituído.

O lema do nosso CEO e fundador, José Rui Felizardo, é “o futuro não se reivindica, constrói-se”. Portanto, queremos pessoas que não estejam confortáveis com o status quo, que tenham uma grande vontade de conhecer mais, de transformar e de construir soluções, que sejam realmente transformadoras do mundo. Quando estudamos para ser engenheiros, somos formados para resolver problemas do mundo, que melhorem a vida e a qualidade de vida das pessoas.

Numa primeira fase, olhamos para esta questão mais pessoal, mais comportamental e, obviamente, depois para currículos e escolas que nos dão confiança técnica, que depois, em contexto de trabalho, vamos aprimorando.

 

A engenharia aeroespacial está no top dos cursos com as maiores médias de entrada. As instituições de ensino estão a fazer um bom trabalho?

Diria que sim. E acho que, na área de engenharia em particular, os engenheiros portugueses dão cartas em termos mundial. Desenvolvem acima de tudo competências muito fortes de banda larga e têm já uma componente específica muito forte. O que trazemos ainda do pré-Bolonha, dos cinco anos de formação, fez com que as formações fossem mais sólidas. Hoje enfrentamos alguns desafios neste campo, porque há a componente das licenciaturas bietápicas, em que uma primeira fase é mais voltada para as ciências de engenharia, outra já para o mestrado mais orientado, mas notamos, de uma forma geral, que, na engenharia, os alunos tendem a fazer os cinco anos.

A verdade é que a matéria-prima que recebemos é muito boa e muito bem preparada e os melhores alunos estão no top mundial. Já nos alunos mais medianos, notamos às vezes que, na resolução de problemas, perderam alguma proactividade, mas que rapidamente, em contexto de trabalho, conseguimos trabalhar e pôr em prática nos desafios que lhes vamos colocando.

No CEIIA trabalhamos com as novas gerações desde muito cedo. Temos uma área dedicada a trabalhar com as comunidades, desde o pré-escolar ao ensino superior e até ao nível de doutoramento.

Numa primeira fase, na promoção das STEM, criar gosto, vocação e coisas muito rudimentares, orientadas para essas idades. No terceiro ciclo, já começamos a ter programas de maior imersão, de três dias, em que lidam com as temáticas que trabalhamos no dia-a-dia e em que levam um desafio para a sua comunidade escolar para ser implementado durante o ano lectivo, em torno da sustentabilidade da escola.

Depois no secundário e universidade temos programas, um deles é o SLI – Sustainable Living Innovators -, em que durante um mês temos os alunos em contexto de sala de aula a trabalhar desafios, em que trabalhamos não só soft skills, como também skills técnicas e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento de um conceito que termina com um pré-protótipo criado por esses alunos.

Por fim, existe toda a componente de teses, dissertações e estágios em que trabalhamos também a capacitação destes engenheiros para serem verdadeiros agentes transformadores da sociedade.

 

Portanto, há talento em Portugal.

Há. Temos é que não o deixar fugir.

 

Era precisamente aí onde queria chegar. Têm dificuldades em contratar?

Não, tivemos em determinados momentos durante a pandemia. Sentimos que havia muita rotatividade de engenheiros de software, mas temos noção de que o nosso propósito é muito atractivo. Não há no mundo nenhuma entidade com a dimensão do CEIIA que esteja a trabalhar desafios tão interessantes na área da engenharia, do automóvel, da mobilidade e cidades, na área da aeronáutica e do espaço.

Estamos a desenvolver, entre outras coisas, um automóvel de nova geração integrado com uma plataforma digital, que visa promover também a sustentabilidade das cidades e pensar nestas a partir da sustentabilidade.

Estamos a desenvolver um avião, oito satélites e todo um conjunto de soluções aplicacionais e ciberfísicas que nos permitam ligar de devices – pensados para responder a um serviço – a plataformas de dados e serviços que depois prestam serviços a diferentes entidades.

E este propósito de proporcionarmos a um engenheiro a possibilidade de fazer aquilo que sempre desejou no seu país, muito mais para os engenheiros portugueses, é excelente. Com isto, conseguimos também atrair engenheiros internacionais para trabalharem connosco em sectores altamente intensivos em termos de conhecimento e tecnologia. Portanto, diria que a dificuldade é atenuada por este propósito e que hoje conseguimos atrair os melhores.

 

E o que acha que justifica a saída de tanto talento?

Na engenharia, acima de tudo são desafios. Desafios transformadores que permitam exercer a nossa verdadeira vocação de engenheiros.

O salário é importante, claro, mas acredito muito na teoria de que o salário é um incentivo durante três meses. É algo que nos prende durante um período, porque rapidamente adaptamos o tipo de vida ao salário que ganhamos. Vamos sempre evoluindo e as necessidades vão sendo outras, pelo que queremos sempre mais do ponto de vista material. Mas sinto que, na grande maioria dos engenheiros que temos, – e por isso digo que procuramos, acima de tudo, boas pessoas – é o propósito que os move. Se fosse só pelo salário, não conseguiríamos reter. Hoje, existe o tema habitacional no país e digo-lhe que é mais difícil encontrar casa para os nossos colaboradores em Évora do que em Matosinhos, pois há menos oferta e o custo-qualidade é muito superior.

 

Voltando ao tema da IA, devemos olhar para ela como um assistente que nos vai ajudar?

Como uma ferramenta, como toda a tecnologia. Dependendo da nossa actividade, vai ter maior ou menor relevância e poderá não ser um mero assistente, pode ser muito relevante no trabalho. Porém, tem de haver sempre o olho humano para certificar, pelo menos nesta fase, o que a tecnologia entrega.

Ainda há muitas incoerências nas plataformas de IA que, com treino, irão melhorando, mas lidam sempre com o contexto informacional que conhecem, tal como acontece com o ser humano.

O que a IA tem é uma vantagem competitiva e dinâmica, a capacidade de processar a informação com o ritmo que nós não temos, de aceder a muito mais bases de informação do que nós. Já do ponto de vista da capacidade de ligar pontes, construir conhecimento, tem mais desafios do que o ser humano, por isso a criação de comunidades também nos ajuda a crescer como humanos e a diferenciar-nos da tecnologia.

 

Onde é que entra a ética?

Em tudo, porque quando temos tecnologia, a certificação dos algoritmos, o uso da tecnologia para fins lícitos ou ilícitos, a ética e moral têm aqui um papel determinante.

Na mobilidade autónoma, por exemplo, um veículo autónomo tem um possível acidente, em que não tem plano de fuga, e várias vertentes: matar o seu ocupante, ou ocupantes; matar uma criança; matar uma pessoa idosa; ou um atleta de alta competição, ou deixá-lo incapacitado. Qual é a opção que vai tomar? Nós, seres humanos, não temos estes vieses, e tenderemos, provavelmente, a defender-nos. Acredito que a principal tendência do ser humano é proteger-se e proteger os outros, mas, inconscientemente, vai-se proteger. O algoritmo vai ter de definir o que vai fazer, e como é que fazemos isso?

Hoje, os aviões já voam em grande parte de forma autónoma mas têm sempre dois operadores. Esta é uma das razões pelas quais a mobilidade aérea avançada urbana ainda não se disseminou, porque obriga a um operador e a diferença ainda não é muito grande para a tecnologia actual. Ou seja, ainda vamos ter de regular e regulamentar muito.

A ética e a privacidade são determinantes. Hoje há lógicas de poder implementadas com base em fake news, em conteúdos falsos, mas quando apareceu a imprensa também acontecia e não era regulada. Só que hoje o digital amplifica a informação, por isso terá de haver princípios regulatórios, éticos e de privacidade muito fortes, não diminuindo a competitividade da economia, mas salvaguardando a soberania dos países, a independência das pessoas e a liberdade individual de cada um.

 

Para terminar, três prós e três contras da IA…

Prós. O possibilitar que as pessoas sejam direccionadas para tarefas de maior valor acrescentado, tirando-as de trabalho repetitivo. A capacidade criativa e transformadora que dá a sectores tradicionais, como o financeiro, legal, saúde, que, com estas abordagens, podem ter disrupções importantes. E um terceiro, como todas as revoluções tecnológicas, a capacidade no desenvolvimento da humanidade e da economia em geral.

Contras. Obviamente, a iniquidade se não for tratada com bom senso. A questão ética, que é mais do que um contra, é um desafio. Como trabalhamos as questões éticas e de privacidade, como as soberanias e as liberdades pessoais e individuais. E acrescentaria à cidadania digital, a literacia digital.

 

Acha que vai estar disponível para todos?

Sim, mas vai estar disponível para todos em níveis diferentes, como tudo o resto. Com boas ferramentas, bons planos de capacitação e qualificação, acho que temos capacidade de democratizar mais a informação.

Miguel Fontes dizia que, hoje, a riqueza se concentra cada vez em menos pessoas, mas também se tiram mais pessoas da pobreza. E estes fenómenos ocorrem muitas vezes em paralelo. O digital amplifica e pode trazer qualidade de vida e maior capacidade para todos termos acesso à informação.

Mas, como já referi, se não houver a montante um trabalho na educação que nos permita ter espírito crítico sobre o que nos estão a dar, podemos resultar numa sociedade completamente estandardizada, em que todos dizem e fazem o mesmo. Temos de ter um sistema educativo e de capacitação empresarial, que nos prepare para termos espírito crítico sobre o que nos é entregue, seja do ponto de vista cívico, social, pessoal ou profissional.

E esse é o grande desafio. Não estamos a preparar as pessoas para terem essa literacia e cidadania digital.

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