«Há muito caminho a percorrer no que diz respeito à saúde mental nas empresas», defende o psiquiatra Vitor Cotovio
«O tema da saúde mental, para o bem e para o mal, está na moda», afirma Vítor Cotovio. Para o psiquiatra e psicoterapeuta, as pessoas começam agora a perceber que a pandemia tem fortes implicações, «independentemente do espaço onde estão e da actividade que desempenham, não apenas no aspecto sanitário, mas também na sua saúde mental». Em entrevista à Human Resources, o especialista analisou de que forma esta situação impacta as organizações e os seus colaboradores.
Por Sandra M. Pinto
A pandemia da Covid-19 alterou o modo de vida da sociedade moderna. As pessoas viram-se confinadas, as empresas obrigadas a instituir o teletrabalho, a economia quase parou e o sistema de saúde foi posto à prova como nunca o tinha sido. As consequências começam agora a fazer-se notar ainda mais. Economicamente os países tentam que inúmeros sectores não colapsem, enquanto as empresas remam para que exista um futuro e que o mesmo seja mais risonho. E as pessoas? Como está o ser humano individualmente a lidar com tudo isto? E os líderes? De que forma estão os responsáveis pelas organizações a agir perante os seus colaboradores?
Como deve ser abordado o tema da saúde mental nas empresas?
Muitas organizações já estão disponíveis e organizadas, principalmente na sua área de Recursos Humanos, para perceber e identificar aquilo que se passa com as suas pessoas. Algumas criaram estratégias, mesmo que aparentemente prosaicas com um “serviço” interno de saúde mental, enquanto outras estão já a encaminhar os colaboradores para entidades com respostas mais específicas de apoio psicológico ou consultas de psicologia. Existem exemplos de organizações a fazer a intersecção entre estas duas, potenciando o exercício físico ou fomentando práticas de meditação. Importa perceber aquilo que é útil para a qualidade de vida e para o bem-estar das pessoas, por isso, as organizações, e, em particular, os departamentos de Recursos Humanos, devem trabalhar cada vez mais temas como a qualidade da informação, da comunicação, a gestão do conflito e a gestão do stress, criando oportunidades para que estes assuntos possam ser tratados de forma interceptada, seja com formações, com apoio directo ou fazendo encaminhamentos para apoio nas situações em que há necessidades concretas e específicas de atendimento. E, desta discussão não pode ficar de fora a forma como as lideranças estão a ser exercidas.
Acha que os líderes estão devidamente conscientes da importância deste tema?
Vão estando cada vez mais. Não podemos dizer que isto acontece em todas as organizações mas começa a haver nos líderes, e nas áreas de Recursos Humanos das organizações, uma certa transversalidade nessa preocupação com o capital humano. É um processo de e em crescimento.
Não quer dizer que todas estejam a avançar ao mesmo ritmo e com a mesma percepção mas é um processo contínuo e todas estão a perceber que têm de o fazer, seja com um princípio mais utilitário – agora tenho que me preocupar com isto para ver se se produz mais – ou com um sentido verdadeiramente genuíno, alinhando os objectivos da organização com os objectivos das pessoas percebendo que o resultado é bom para todos.
Olhando ao conceito de “organizações autentizóticas” (de um investigador holandês da área da gestão chamado Kets de Vries, em que este as identifica como organizações potencialmente mais produtivas e amigas dos colaboradores), poderíamos dizer que esta é uma excelente oportunidade para que as nossas organizações caminhem à luz deste foco: trabalhar o propósito – para o que é que serve aquilo que estamos a fazer -, potenciar as competências dos colaboradores, deixar claro o sentido de impacto da sua actividade e criar um sentimento de pertença e de reconhecimento. Todas estas características constroem uma organização de confiança, autêntica e genuinamente preocupada com a saúde e a qualidade de vida dos seus colaboradores, não apenas em relação à sua prestação empresarial mas também em relação ao seu mundo familiar.
Parece-lhe suficiente o que as empresas estão a fazer relativamente a este tema?
Há muito caminho a percorrer. Há já muitas organizações sensíveis a este tema mas temos razões para mantermos alguns receios. Repare que, genericamente, no seu tecido empresarial, Portugal ainda tem uma forte mentalidade de chefia e não de liderança (com indivíduos que vieram de baixo e construíram a pulso a sua empresa num registo de autoritarismo), mas, felizmente, temos bons exemplos. Veja o exemplo da Delta: o Rui Nabeiro, é um indivíduo com funcionamento autentizótico que construiu uma empresa com estas mesmas características.
Mas temos alguns empresários que fizeram o caminho da sua construção pessoal e da construção da sua empresa num registo de comando, de controlo e muito visual; num registo de fiscalizar em vez de pedir os resultados (durante este tempo de pandemia foram muitos os exemplos de colaboradores que até poderiam fazer o seu trabalho a partir de casa mas que se sentiram pressionados a fazê-lo no seu local de trabalho, presencialmente, quando aparentemente não haveria necessidade de o fazer). Parece-me que existe ainda muito a cultura da fiscalização em vez de uma cultura de responsabilidade reforçando a autonomia e aquilo que está bem. Por isso, acho que ainda há muito caminho a fazer. Mas ainda tenho outra preocupação: que algumas destas organizações, que estão mais sensíveis às consequências do não cuidar da saúde mental (e que até aqui mostraram alguma disponibilidade para concretizar estas mudanças), ao passar a pandemia voltem ao registo anterior.
De que forma se agravou o problema com a pandemia?
A pandemia fez perceber, de forma directa, que são as pessoas que sustêm uma organização. Mas o problema é que muitas vezes diz-se isto de uma forma estereotipada, isto é, diz-se mas não se leva à prática na forma como se lida com as coisas. Neste tempo, ficou mais evidente que, neste sentido, as pessoas têm que ser valorizadas, tratadas, sem infantilização ou paternalismo, mas confiar-lhes um sentimento de reconhecimento e de pertença, genuínos e autênticos. E parte desta autenticidade assenta no conceito de exemplaridade, oriundo do filósofo Javier Gomá que fala da consciência que eu tenho do impacto do meu exemplo nos outros e a responsabilidade que daí advém. Se isto acontecer, a consciência e a assunção desta responsabilidade, eu tenho a capacidade para motivar, influenciar e persuadir o outro. Outro tema a não pôr de parte para esta abordagem é a escuta empática: não é a escuta selectiva (em que só ouvimos o que nos convém); não é a escuta blindada (em que não queremos ouvir aquilo que não está de acordo com o que concordamos) e também não é necessariamente a escuta dialéctica (em que eu só ouço o outro para poder argumentar contra ele). O exercício desta escuta empática, autêntica e genuína, não pode ficar apenas no registo da empatia, tem que gerar acção.
As pessoas procuram ajuda ou ainda resistem por acharem que há um estigma associado a esta questão? E havendo, de que forma se pode agir para fazer desaparecer ou pelo menos diminuir esse estigma?
Já procuram mais, mas continua a haver estigma. Costumo usar a imagem da pandemia como uma tempestade. O impacto da vivência global desta tempestade fez com que as pessoas sentissem que esta colocou todos com as mesmas inquietações ao nível da saúde mental. As mesmas angústias e ansiedades surgem quer seja um líder ou um colaborador mais operacional, seja pai ou filho, o mais abonado ou o menos remediado.
Nesse sentido a tempestade atacou mesmo todos: em alguns expôs fragilidades que já existiam, noutros abriu sentimentos normais mas que são por vezes disfuncionais e incapacitantes e por isso as pessoas sentem-se mais à vontade para falar porque sentem também que “toca a todos”. Mas isso não quer dizer, necessariamente, que se sintam mais à vontade para expor as suas fragilidades.
A diminuição do estigma passa pela abordagem natural do assunto: em qualquer contexto, tem que ficar claro que falar de um qualquer tema da saúde mental não é uma fraqueza. No que diz respeito ao estigma, tudo conflui para uma aposta muito forte na literacia em saúde mental: no fundo, explicar às pessoas o que são as coisas, para que se possam reconhecer e agir em conformidade. Ter bem seguro que inquietações e angústias não geram colaboradores descartáveis e incapazes e daí resultarem até bons e fortes exemplos (como foi exemplo quando o Horta Osório, falou abertamente do seu burnout e desde aí teve, com certeza, uma preocupação diferente na sua gestão com este tema junto dos seus colaboradores). Estes bons exemplos ajudam a criar a necessária naturalidade em relação à abordagem do assunto “saúde ou doença mental”.
Que consequências podem advir do facto de não procurarem ajuda?
Se a pessoa não procura ajuda e a empresa não diz (nem mostra de forma transparente e aberta à pessoa) que não é uma fraqueza ter angústias e ansiedades, pode tudo ficar camuflado e, obviamente, são de esperar repercussões no seu desempenho e na sua produtividade, no absentismo e no presentismo. Por isso, à organização interessa cuidar dos seus colaboradores e, em especial, cuidar da sua saúde mental, uma vez que esta tem consequências evidentes na missão daquela organização deixando comprometida a sua finalidade. É por isso que temos muitas organizações preocupadas com este tema e não apenas porque algumas passaram a ser altruístas. Algumas serão mais do que outras mas com certeza que todas bem sabem que, para além do altruísmo e da solidariedade – cruciais em todas as sociedades – para sobreviver também precisam de continuar a ter resultados, cumprir metas e alcançar a sua finalidade. Mas para bem cumprir este desiderato a saúde mental tem que estar assegurada. Mesmo que a tempestade seja a mesma, como o “barco” de cada um não é o mesmo e os “remos de cada qual” também não são os mesmos, as organizações têm que estar atentas para perceber se o barco e os remos de cada um são suficientes e bastam para ultrapassar a tormenta ou se precisam de ser mais musculados.
Que instituições existem para prestar essa ajuda?
Nas crises não acontecem só coisas más. Há de facto um nicho de mercado que se tem desenvolvido como resposta articulada com as organizações às necessidade neste domínio. O aparecimento de núcleos (internos ou externos às organizações) vocacionados para o apoio aos colaboradores que integram profissionais com formação específica em saúde mental (como psicólogos, terapeutas e psiquiatras ou até assistentes sociais) e que as organizações contratualizam no sentido de obviar e facilitar o acesso das pessoas às respostas em saúde mental, mostram-se aptos a reduzir o tempo que medeia entre a necessidade e a efectivação de uma resposta.
Uma pessoa em burnout, sem resposta, pode deprimir: por isso, nas organizações, para além das respostas que se criam “dentro” para que as pessoas sintam que contam, é importante que se busquem respostas realistas e especializadas que complementem (ou completem) o processo de acompanhamento, não gerando expectativas falsas porque senão “a coisa fica pela metade”.
Quando se está mal isso tem um tempo e um momento, e esse momento não é adiável. Não se pode obrigar ninguém a ter ajuda mas a disponibilidade de respostas tem que ser acessível e o caminho de execução muito claro, para que, quem procura ajuda saiba “os tempos e os passos” e não frustre as suas expectativas em relação à ajuda que procura. Volto a dizer, há muito caminho pela frente. O importante é pensar que depois de terminar a pandemia, o processo que fizemos foi necessário e continua a ser necessário para termos uma boa saúde mental. A saúde mental, não é mais importante que as outras mas é transversal a todas as nossas “saúdes”.
De que forma podem estas instituições ser ajudadas?
São muitas as organizações que se vão dedicando à saúde mental e parece-me, uma vez mais que, é fundamental que se desenvolvam respostas articuladas entre as organizações e as instituições que, comprovadamente, trabalham estes assuntos há muitos anos. A cada organização cabe a escolha da estratégia de resposta que melhor irá corresponder às necessidades e expectativas das suas pessoas. No uso deste “tempo de antena”, destaco o programa Mentalizar da Fundação S. João de Deus, que tem uma componente interessante de trabalho com organizações ao nível da sensibilização e primeiras respostas, e que depois podem ser complementadas com uma atenção mais “clínica ou terapêutica” nos centros S. João de Deus. A sugestão desta iniciativa tem apenas, para além da vertente institucional profissional, uma componente solidária muito importante. Mas existem, felizmente, diversas boas iniciativas que estão no mercado e às quais as organizações facilmente acederão.
E na sua perspectiva como será o futuro da saúde mental dos portugueses? Irá ela no futuro fazer parte das preocupações dos líderes e gestores?
À pouco disse que a saúde mental é um tema que está na moda mas eu gostava que não estivesse e não ficasse só na moda. Neste momento há uma preocupação para olhar para a saúde mental, em especial na área política – tanto assim é que no Plano de Recuperação e Resiliência está presente uma área específica a falar só sobre mental, com um orçamento de 85 milhões. O que é significativo, desde que lá cheguem. Mas este olhar e preocupação, entre aquilo que está conceptualizado e aquilo que é levado à prática, significa que há uma atenção maior. E isso é bom. Mas mantemos o mesmo raciocínio: sem uma forte literacia o tema da saúde e da doença mental ficará sempre estigmatizado. Continuará a ser diferente um colaborador ligar a informar que não está apto para ir trabalhar porque tem febre ou porque está com uma crise de ataque de pânico ou está angustiado. Ora todos já tivemos febre mas, felizmente, nem todos tivemos um ataque de pânico e por isso é mais comum se achar que o último é uma “frescura”. É muito preciso e necessário uma forte literacia em saúde mental, senão tudo pode continuar na mesma ou, sendo optimista, continuar a ser encarado discretamente e de forma circunstancial.
Que estratégias devem eles implementar no curto e médio prazo?
É importante a consciência de que é necessário construir três bons pilares, que não estão separados mas que existem sempre de forma sistémica e muito interligados:
- ter uma preocupação interna genuína e autêntica em criar condições para que os colaboradores tenham “melhores barcos e melhores remos” para responder às tempestades;
- ter ferramentas e meios internos para que existam respostas às preocupações que possam ser manifestadas e respostas externas específicas – atempadas e realistas – para as necessidades específicas;
- ter lideranças esclarecidas na saúde mental que genuinamente valorizam a autenticidade ética e empática: sem isto tudo o resto pode ficar boicotado.Em suma, as estratégias devem apostar na criação realista de valências de resposta internas e externas e na agilização do processo. Isto é, uma pessoa angustiada não pode adiar a sua angústia para dali a dois meses. Por isso, perante a situação, temos que perceber o que é que eu tenho para oferecer, como é que agilizo o processo por forma a garantir a acessibilidade e como é que aquilo que eu tenho para oferecer está interligado e integrado com a minha estratégia organizacional para o bem estar estar e qualidade de vida dos meus colaboradores e com a restante dinâmica de missão, objetivos e resultados.
Que ensinamentos ou alertas nos trouxe a pandemia um ano após o seu início?
Esta foi uma tempestade que deixou todos iguais, chefes e subordinados. E há de facto um ensinamento muito importante: a redução do ser humano à sua humildade.
Infelizmente vivemos ainda numa sociedade que mercantiliza tudo, até as relações humanas o que significa uma coisa “chata”: vivemos numa sociedade com seis V’s: muito Volume de informação; com muita Velocidade (não conseguimos ir a todas e portanto não elaboramos, acabando por não pensar); com muita Volatilidade (tudo muda); com muita Voracidade (estamos sempre a consumir); com muita Vacuidade de ideias (todos nós temos palpites sobre coisas que não sabemos nada e, no limite, até achamos que o nosso comentário no Facebook tem tanto ou mais valor do que o conhecimento científico). O que dá o sexto V: o Vazio existencial.
O vírus veio colocar-nos sob a ameaça deste vazio existencial e reduzir-nos, assim, à nossa humildade. Vamos ver se conseguimos aprender. Sofisticámo-nos do ponto de vista técnico e científico, mas o ser humano, que se desenvolveu desta forma, regrediu na forma de lidar com a falta de controle e a imprevisibilidade. É verdade que no passado distante lidamos com ameaças para as quais não tínhamos ferramentas. A imprevisibilidade e a falta de controle era o normal e tínhamos que lidar com isso. Achámos que o progresso e o conhecimento técnico-científico nos tinham vindo a apetrechar com estas ferramentas que nos vieram dar a certeza de que tínhamos o controlo de tudo.
De repente chega “uma coisa” que não vemos e que nos diz “que vivemos num clima de incerteza e que afinal não controlamos nada”. Tenho esperança que esta pandemia tenha conseguido colocar o Ser Humano numa postura mais humilde, com preocupações mais globais, mais altruístas, viradas para o Planeta, para o Bem Comum e, principalmente, interiorizando uma atitude de reflexão em relação à sua continuidade e à forma como evoluí percebendo que não se controla tudo e a importância da construção de ferramentas que ajudem a lidar com a imprevisibilidade e a incerteza e a integrar as nossas incapacidades. Não sabemos que outros vírus e pandemias se seguirão, mas, sem dúvida, poderíamos tentar controlar como nos preparamos para o futuro com “barcos mais robustos e remos mais musculados”.