E se o seu salário fosse pago em criptomoedas?
Quando, em 2008, o Bitcoin foi apresentado pela figura enigmática de Satoshi Nakamoto, o conceito de criptomoedas não tinha qualquer valor ou significado senão pela sua tecnologia estrutural, a blockchain, e pelo ideal disruptivo de criar uma moeda paralela às demais fiduciárias, com a perspectiva de escapar ao controlo do estado e dos grandes grupos de influência económica mundial.
Por Diogo Rodrigues da Silva, advogado-fundador da Maze Legal
Actualmente, o conceito de criptomoedas desenvolveu-se para o conceito de criptoactivos, uma vez que a blockchain cresceu para abranger os chamados non-fungible token, as stablecoins, e as finanças descentralizadas. Esse desenvolvimento aconteceu porque as criptomoedas passaram a integrar os portefólios de investidores e instituições, e naturalmente culminou na pretensão de utilizar os rendimentos obtidos com as mesmas como forma de pagamento. E se por um lado, houve quem comprasse pizzas com Bitcoin, há quem queira pagar os seus salários através destes activos digitais.
Apesar de os criptoactivos pertencerem aos tempos hodiernos e à realidade diária – basta vermos que já existem ETFs de Bitcoin a bater recordes que superam os do ouro – a regulação não tem acompanhado a velocidade da sua evolução, e, ao invés, parece até estar numa latente negação que abre caminho para a desvalorização da moeda fiduciária e reforço dos criptoactivos. Tal situação abre a necessidade de integrar nos institutos jurídicos existentes as novas factualidades, como é o caso dos salários pagos em criptomoedas.
Estas criptomoedas são, efectivamente, representações digitais de valores ou direitos com a capacidade de serem transferidos e armazenados digitalmente, sendo assim aptos a assumir a função de pagamento como moedas sem curso legal. E se cada vez mais instituições entram como investidores em criptomoedas, então querem também utilizar esses activos como moeda de pagamento aos seus trabalhadores. Pelo prisma dos colaboradores é também apetecível auferir criptomoedas como forma de pagamento uma vez que estas valorizam-se ao invés de seguirem o padrão inflacionário da moeda fiduciária, e muitas vezes valorizam-se em mais de 1000%.
No entanto, a legislação laboral e fiscal apresenta ainda algumas reservas que limitam a implementação das criptomoedas como meios de pagamento de retribuições aos trabalhadores.
No Código do Trabalho Português, as criptomoedas integram-se somente no conceito de retribuição em espécie. Sendo retribuição em espécie estão naturalmente limitados a não poderem exceder o valor de retribuição paga em moeda com curso legal. Quer isto dizer que não é possível pagar a actividade laboral de um trabalhador integralmente por meio de criptomoedas. Soma-se ainda a esta limitação, que a retribuição em espécie deverá ter como finalidade exclusiva a satisfação de necessidades pessoais do trabalhador ou da sua família. Está bom de ver que, in casu, tal finalidade poderá ser colocada em causa, uma vez que as criptomoedas são tidas como activos de investimento e não como meio de suprir as necessidades do trabalhador e da sua família.
Neste conspecto, este tipo de rendimentos não está sujeito a retenção na fonte, e, dessa forma, serão tributados apenas aquando da apresentação da declaração modelo 3 de IRS. E neste ponto levantam-se diversas questões, nomeadamente quanto ao valor sobre o qual incidirá a taxa de imposto aplicável. Isto porque os criptoactivos são muito voláteis (salvo as stablecoins que têm, a mais das vezes, lastro com o dólar e reservas garantidas para suportar o seu valor nominal).
Destarte, imagine-se um trabalhador que haja recebido o equivalente a dois mil euros em Bitcoin em Janeiro de 2024. No ano de 2025, imaginando que o valor desta criptomoeda sofre uma queda de 50%, e a aplicar-se a taxa de imposto sobre o valor da bitcoin em Janeiro de 2024, o trabalhador ficaria lesado e não auferiria o valor remuneratório que expectava, porquanto foi aplicada uma taxa de imposto sobre um valor superior ao valor actual do activo. Mas, podemos conjecturar que esse activo, proveniente de retribuição em espécie, possa também valorizar, e dessa forma ultrapassar os limites aplicáveis à retribuição em espécie.
Outrossim, ao abrigo da legislação em vigor, se esse trabalhador vender esses activos antes de decorridos 365 dias após a sua aquisição, então será ainda tributado em mais-valias à taxa de 28%, incrementando o peso fiscal sobre o mesmo.
Em suma, o pagamento de remuneração efectuado por esta via tem uma instabilidade que parece colidir com a certeza jurídica e a segurança que se pretende existir na relação laboral.
Nesta senda, no que diz respeito à segurança social, o entendimento existente é de que este rendimento concorre para a base de incidência contributiva, sem prejuízo de poder não estar sujeito (nos mesmos termos que não estão os pagamentos em dinheiro).
Dito isto, para terminar, fazer o disclaimer sobre o facto de a regulação dos criptoactivos ser algo efectivamente necessário, mas também muito ambicionado. Regular os criptoactivos significa reconhecê-los, dar-lhes valor social, económico e jurídico, mas também é um passo em frente rumo à ideia de reserva de valor (que até hoje em dia surgia como sendo o ouro) uma vez que regular vai permitir estabilizar preços e limpar o lixo que surge nestes mercados por instituições ou pessoas mais mal-intencionadas.
Neste meandro, e finalmente, diríamos que embora as criptomoedas tenham já viabilidade para serem utilizadas como meios de pagamento de salários, a legislação ainda não as trata como meios de pagamento principais, mas como excepcionais ou acessórios.